Читать книгу Humus - Brandão Raul - Страница 11

O SONHO

Оглавление

Índice de conteúdo


6 de dezembro


Chove. Cada vez vejo mais turvo, cada vez tenho mais medo. Estamos enterrados em convenções até ao pescoço: usamos as mesmas palavras, fazemos os mesmos gestos. A poeira entranhada sufoca-nos. Pega-se. Adhere. Há dias em que não distingo estes sêres da minha propria alma; há dias em que atravez das mascaras vejo outras phisionomias, e, sob a impassibilidade, dôr; há dias em que o céo e o inferno esperam e desesperam. Presinto uma vida oculta, a questão é fazel-a vir á supuração.


Esta manhã de chuva é um minuto no rodar infinito dos seculos, e os sêres que passam meras sombras. Tudo isto me pesa e pesa-me tambem não viver. Do fundo de mim mesmo protesto que a vida não é isto. A arvore cumpre, o bicho cumpre. Só eu me afundo soterrado em cinza. Terei por força de me habituar á aquiescencia e á regra? Crio cama e todos os dias sinto a usura da vida e os passos da morte mais fundo e mais perto.


—É necessario abalar os tumulos e desenterrar os mortos.


É o Gabiru que se põe a falar sem tom nem som. Um homem absurdo. Olhos magneticos de sapo. É uma parte do meu sêr que abomino, é a unica parte do meu sêr que me interessa. Ás vezes deita-me tinta nos nervos. Fala quando menos o espero. Chamo-o, não comparece. Se quero ser pratico, gesticula dentro do casaco arripiado:—A alma! a alma!—Singular philosopho! É capaz de desejar a morte para vêr o que há lá dentro; é capaz de achar vulgares até as coisas eternas. Ao lado da vida constroe outra vida. Sonha, e os seus sonhos são sempre irrealisaveis, transformam-se-lhe nas mãos em barro informe. Toda a gente se ri—já sonha outra vez... Para elle a vida consiste, encolhido e transido, em embeber-se em sonho, em desfazer-se em sonho, em atascar-se em sonho. Mezes inteiros ninguem lhe arranca palavra, dias inteiros ouço-o monologar no fundo de mim proprio. Ignora todas as realidades praticas. Na arvore vê a alma da arvore, na pedra a alma da pedra. Deforma tudo. Põe a mão e molha. Destinge sonho...


—A alma—diz elle—ao contrario do que tu supões, a alma é exterior: envolve e impregna o corpo como um fluido envolve a materia. Em certos homens a alma chega a ser visivel, a athmosphera que os rodeia toma côr. Há sêres cuja alma é uma continua exhalação: arrastam-na como um cometa ao oiro esparralhado da cauda—immensa, dorida, phrenetica. Há-os cuja alma é d'uma sensibilidade extrema: sentem em si todo o universo. D'ahi tambem simpathias e antipathias subitas quando duas almas se tocam, mesmo antes da materia comunicar. O amor não é senão a impregnação d'esses fluidos, formando uma só alma, como o odio é a repulsão d'essa nevoa sensivel. Assim é que o homem faz parte da estrella e a estrella de Deus. Nos vegetaes, nas arvores, a alma é interior, pequenina emoção, pequenina alma ingenua e humilde, que se exteriorisa em ternura a cada primavera: tocada pelo grande fluido esparso, onde andam as nossas lagrimas, vem á tona em oiro e verde, em deslumbramento. Nos mineraes, na pedra concentrada e recalcada, que dôr inconsciente, que esforço cego e mudo por não poder abalar as paredes e comunicar com a alma do universo! A pedra espera ainda dar flôr.


Para elle estas coisas ethereas são visiveis. Vê tão exactamente como eu te vejo a ti a paixão, o odio, o amor, os grandes fluidos desgrenhados d'oiro, de piedade e de genio. Há noites em que não resisto: fecho-me com elle a sete chaves. Tem-me estragado tudo. É o doido que em nós préga e nos deixa aturdidos. Ás vezes consigo afastal-o, mas succede que fico sempre com pena: se o ouvisse talvez fosse mais feliz e mais desgraçado... Desdenho-o, e sinto-lhe a falta quando o não tenho ao pé de mim. Deita-me a perder se me apanha desprevenido. Quasi sempre é elle quem manda em minha casa, e, mesmo quando falo como toda a gente fala, e quando rio como toda a gente ri, só a elle o ouço no mundo. Diz-me coisas que nunca ouvi, isola-me n'um valle apertado e scismatico, longe de toda a terra, arrasta-me, ou desespera-me. Desaparece como um cão vadio, e quando volta, com lama de todos os caminhos, folhas de todas as florestas, reflexos de todos os enxurros, vem exhausto, mudo e feliz. Vem feliz! É elle que me préga:—Toda a agitação é inutil. Não tenhas medo da desgraça!—E eu tenho medo da desgraça. Á força de habito cheguei a mantel-o no seu logar, mas nunca o pude suprimir, e quanto mais me aproximo da morte, mais saudades levo do Gabiru, que me estragou a vida toda.


Mora n'um velho pardieiro encostado á muralha, abafado d'um lado pela muralha da villa, que á noite redobra de porporções. O granito enegreceu, poliu-o a chuva, e a escadaria de pedra dá calafrios a quem entra.


—Essa alma, essa alma disforme, que vae de mundo a mundo, e que em cada sêr realiza uma primavera é que é tudo. O resto insignificancia. É ella que nos devora e faz da morte a vida e da vida a morte...


D'um lado a muralha de dentes arreganhados para o céo, do outro o sordido pardieiro, no alto a noite de luar como uma camelia gelada. Dentro d'isto sonho.


Ponho-me a olhar para elle—ponho-me a olhar para mim. Passou a vida n'aquella inutilidade, de que sae a revêr sonho, e com os côtos partidos a esvoaçar na noite dorida. Primeiro afundou-se em experiencias do laboratorio, á procura da pedra philosophal.—Ridiculo. Depois na aplicação da electricidade aos vegetaes, que se consomem de febre, que se desentranham em flôr, sem produzirem fructo.—Grotesco. Agora ninguem o arranca a infindaveis monologos cahoticos:—A morte! a morte! a morte!— Incongruencia, obscuridade e dôr tambem; a dôr de quem vem da irrealidade, encolhido e transido; a figura estranha de quem se debate com o sonho e sae da lucta esfarrapado e doirado. Se o tiram do sonho titubia e não sabe onde põe os pés. Tem as azas partidas. Comprehende então a sua inutilidade e desespera-se até reentrar na nuvem que o envolve. Puxa a si o misterio, e, entre as arvores e os fios eletricos que correm todo o quintal e ligam todas as arvores, ouço a sua voz magnetica, que impregna de sonho o luar todo branco:


—Isto é um fluido dôr, falta-me condensal-o. É uma nuvem que envolve tudo, que vem do turbilhão da Via Lactea, arrasta tudo comsigo, e ascende em espiral até Deus. Não, a sensibilidade não é individual, é universal. Basta ferir a sensibilidade, que vae dos nossos nervos até á Via Lactea, para transformar as noções do tempo, do espaço, da vida e da morte—basta deitar dentro d'um tanque uma gota de vermelho para tingir toda a agua. Deito-lhe sonho dentro...


7 de dezembro


A villa é tumular e encardida, mas oculta dentro dos seus muros um sonho desconforme. Talvez desconexo, mas desconforme. O sonho é d'elle: a propria casa de granito revê sonho. O Gabiru mistura, revolve, extrahe sonho do sonho. Debalde o que é mesquinho lhe mostra os dentes: o Gabiru não ouve, não vê, não sente. O sonho isolou-o da propria mulher transida de frio, no casarão que deu á costa como uma nau do passado, com o cavername roido pelo mar das trevas.


É um sêr quasi ethereo. Nem sei dizer se existiu, se a criei; sei que se sumiu n'um sôpro cada vez mais ephemera, com dois olhos verdes de espanto. Sei que me pegou sonho, e que fui levado, perdido, como uma coisa inerte...


Morreu transida de frio. Uma mulher palida—o que vale um passaro. Ternura e dois olhos verdes de espanto. Hesita, mal pousa os pés no chão, chora baixinho, e vae talvez acordal-o, queixar-se... Não se atreve, e esboça um sorriso logo molhado de lagrimas. Morre de frio. Agosto—morre de frio. Até para lhe sorrir se esconde, e põe-se então a olhar o muro (vou-te dizer o sitio) a falar com o muro, a queixar-se á grande nodoa de humidade da parede. Dois olhos verdes de espanto, um vestido de seda, e as meias rotas nos calcanhares. Um nada de ternura tel-a-hia salvo—ninguem o arranca áquelle sonho informe. Morta...


Ninguem. Depois que a perdeu tresvariou. Estende fios no chão entre as arvores, e as arvores, sob o fluido electrico, todo o inverno se desentranham em flôr. Pegou-lhes sonho tambem. É um desbarato, uma profusão que as devora. Absurdo. O quintalorio ao pé da muralha, que há seculos revê humidade, não é maior que um lenço; a primavera só chega aqui tarde e de mau modo, com pena das arvores de saguão. Arrepende-se logo. Já veem que o absurdo é maior ainda... Dezembro e primavera. O céo gelado, um brilho de estrellas em engastes novos, e, entre a carie das paredes, as macieiras baixinhas e humildes como exhalações de ternura. Mortas. Mortas, seccas de sonho. Mortas as arvores desfeitas em flôr.


—Este efluvio é que é tudo: a torrente de ideias e a torrente de paixões. A minha athmosphera, a alma, penetra a tua athmosphera, e dissolve-a, domina-a, conquista-a. Recua, tacteia, hesita. Mas escusas de falar para que eu te entenda. A materia muitas vezes não me deixa comprehender, mas é raro que eu não saiba logo quem tu és, e, mesmo que seja a primeira vez que te fale, as vezes que te tenho encontrado no mundo.—E logo:—A vida perdi-a a sonhar. Depois de morta é que dei com ella. Mas que importa! Acabei com a morte, vou resuscital-a. Viveremos sempre, amar-nos-hemos sempre...


A noite é d'aparato. A lua de coral sobe por traz da montanha em osso, e depois na chanfradura das ameias. Mais flôres—todos os galhos dão flôr. Sente-se, quasi se ouve, a dôr das arvores, dos sêres vegetativos, ao terem de apressar, de modificar a sua vida lenta, dispersos em ternura.


—Perdi-a, perdi a vida! Esqueci-a como esqueci tudo. Perdi-a e mais dois dias e tinha suprimido a morte!


Sob o fluido electrico o quintal tresnoita. Cae neve e abrem os primeiros botões. A arvore transforma-se n'um sêr dorido e esplendido—transforma-se em sonho—em sonho desfeito em flôr, em flores espezinhadas uma atraz das outras por camadas sucessivas. Os ramos espremidos escorrem dôr. Até as pedras deitam tinta. O quintal escorre sonho como a alma do Gabiru. Atrevem-se e acordam as coisas apodrecidas, e velhas pedras iludidas põem-se a cantar n'esse pio triste dos sapos, que sae da fealdade como uma inutil queixa de desventura. A noite concava e branca—gelada—cobre indiferentemente tudo isto. Que não cobre a noite? Quatro paredes negras, no fundo remexe o sonho. Perco tambem a noção da realidade.


—Tanta flôr!


—Para a sua cóva.—E pondo em mim os olhos atonitos:—O que é preciso é ir buscal-os ao fundo da mixordia, arrancal-os á obscuridade, juntar outra vez as boccas dispersas. Não morrer é nada: vou resuscital-os...


Imagina o negrume d'um poço—imagina dentro o espanto, e não sei que luz viva, não sei que dôr recalcada, não sei que de humilde, que quer viver apesar de dorido. Vivo, e a pata enorme que espezinha e esmigalha. Escuridão e oiro—silencio e oiro—espanto e oiro.


—Vê tu a arvore... Uma camada de flôr—um grito; outra camada de flôr—outro grito. Vê tu a arvore como se transforma n'um phantasma d'arvore, e depois em emoção!...


Suprimir a morte! É uma coisa grotesca. O sonho transborda, o luar transborda—branco e dôr—branco e sonho. Depois o silencio, depois a sua voz magnetica—depois a sombra immensa que ameaça desabar sobre nós, no quintal do tamanho d'um lenço. Desato aos gritos quando todas as roseiras, fartas de dar rosas, seccam, quando da cathedral e do silencio caem uma, duas, tres badaladas, que me apertam uma, duas, tres vezes o coração. E o Gabiru com olhos de phrenesi insiste:


—Não morrer é nada, suprimi a morte. O que é preciso é arrancar os outros ao silencio. É uma coisa simples, é uma questão de synthese.


—A morte,—afirmo-lh'o—é o repouso eterno.


—Repouso eterno, estupido! É exactamente o que está vivo, a morte. É o que está mais vivo.


Humus

Подняться наверх