Читать книгу Escândalo na realeza - Caitlin Crews - Страница 5
Capítulo 1
Оглавление«A única coisa que importa é a linha de sangue, a linhagem.»
Era o que o pai intimidante do príncipe herdeiro Ares dizia ao filho quando tinha pouco mais de cinco anos.
Com essa idade, Ares não sabia o que o pai queria dizer, não sabia a que se referia nem como podia afetá-lo. Com cinco anos, o que mais importava era as vezes que conseguia fugir da sua ama, que estava sempre a dizer-lhe que tinha de se comportar como um cavalheiro, para correr pelos terrenos do palácio. No entanto, tinha aprendido, dolorosamente, que não podia contrariar o pai.
O rei tinha sempre razão. Se o rei se enganasse, alguém se enganava.
Com dez anos, o príncipe Ares sabia muito bem a que o pai se referia e já estava farto de ouvir falar do seu sangue.
Era apenas sangue. Ninguém se importava se esfolava os joelhos, mas era muito importante que ouvisse as conversas sobre o propósito desse sangue, sobre a sua dignidade e transcendência, quando era o mesmo sangue que brotava quando se magoava a fazer alguma coisa que não devia ter feito, coisas que, segundo a ama idosa, eram as responsáveis pelos seus cabelos brancos.
– Tu não contas – dizia o pai, durante as reuniões periódicas que tinha com ele. – És apenas um elo na cadeia! Mais nada!
O rei estava sempre a atirar copos de brande ou diferentes garrafas contra as paredes dos seus aposentos enquanto o mau feitio ia subindo de intensidade. Ares não gostava desses encontros, embora nunca ninguém lhe perguntasse.
Além disso, tinham-no ensinado a não se mexer quando o pai gritava. Tinha de se sentar muito direito, olhar para outro lado e não se alterar. Com dez anos, isso parecia-lhe uma tortura.
– Gosta de alvos em movimento – avisava a mãe, num tom trémulo e com olhos amáveis. – Tens de aprender a manter a posição perfeita e a não transmitir os teus sentimentos, nem com um piscar de olhos.
– O que aconteceria se eu atirasse alguma coisa contra a parede?
– Não o faças, Ares. – A rainha sorria sempre com tristeza. – Por favor.
Começara a vê-lo como um jogo. Fingia que era uma estátua como a que fariam algum dia para ser incluída no Museu Real que havia na sala principal do palácio do norte desde que as ilhas que formavam o reino de Atilia tinham surgido do mar ou, pelo menos, era o que a história dizia.
– A nossa linhagem usa a coroa de Atilia há séculos! – gritava o pai, enquanto ele pensava que tinha de ser de pedra. – Agora, descansa plenamente nas tuas mãos, num adoentado que não consigo acreditar que tenha saído das minhas… entranhas.
Ares repetia-se que tinha de continuar a ser de pedra enquanto olhava pela janela.
Quando se tornou adolescente, já aperfeiçoara a arte de ficar imóvel na presença do pai. Aperfeiçoara-a, mas também a complicara, visto que cada dia estava mais certo de que não podia ter nenhuma gota do mesmo sangue que o rei idoso. Odiava-o tanto que não podiam ser familiares.
– Não podes dizer isso em voz alta – pedia a mãe, num tom cansado e com um olhar sério. – Não podes permitir que alguém da corte duvide da sua paternidade, Ares. Promete-me.
Naturalmente, prometera, teria prometido tudo à mãe.
No entanto, havia vezes em que o príncipe herdeiro não estava de humor para brincar às estátuas, algumas vezes preferia olhar para o pai com toda a insolência que conseguia reunir, desafiá-lo em silêncio para que atirasse alguma coisa contra ele e não contra as paredes do palácio, como o rei idoso e cada vez mais doente costumava fazer.
– És uma desilusão! – bramava o rei, cada vez que se viam, ainda que, felizmente, ele estivesse em internatos da Europa e isso só acontecesse algumas vezes por ano. – O que fiz para ser amaldiçoado com um herdeiro tão fraco e insolente?
Isso, naturalmente, estimulava-o para que cumprisse as piores expectativas do pai. Desfrutava disso temerária e desaforadamente.
A Europa era um campo de jogos muito grande e fizera amigos em todos os internatos exclusivos de que acabavam por o expulsar. Os amigos ricos e decadentes e ele percorriam a Europa de uma ponta à outra, dos Alpes às praias, dos clubes alternativos de Berlim às festas em iates no mediterrâneo.
– Já és um homem – comunicou o pai, quando fez vinte e um anos. – Nominalmente.
Segundo as leis do reino, com vinte e um anos, tornava-se príncipe herdeiro. A sua investidura afiançava o seu lugar e o dos seus herdeiros na linha sucessória.
Continuava a ser esse disparate da linhagem e, naquele momento, importava-se ainda menos do que quando tinha cinco anos. Naquele momento, interessava-se mais pela sua vida social e por tudo o que podia fazer com a fortuna considerável que lhe correspondia.
– Não receie, pai – replicou ele, depois da cerimónia. – Não tencionava horrorizá-lo e ainda menos agora que sou o seu herdeiro oficial.
– Já tiveste demasiadas farras… – resmungou o rei.
Ares não se incomodou em contradizê-lo. Primeiro, porque era verdade e, segundo, porque poderia engasgar-se com tanta hipocrisia. O rei Damascus fora muito famoso pelas suas farras e, ao contrário dele, estivera noivo da mãe desde que ela nascera… E era mais um motivo para que o odiasse.
– Diz isso como se fosse algo mau – replicou.
Já não brincava às estátuas à frente do pai. Já era um homem adulto. Segundo todos, era o herdeiro do reino e teria de levar tarefas a cabo em nome da coroa que usaria algum dia. Ficou junto da janela dos aposentos do pai e olhou para as colinas e para o mar azul cristalino.
Para ele, Atilia seria sempre assim. O murmúrio das ondas do mar, o cheiro delicado das flores, a extensão do mar Jónico à frente dele… Não o rei e a sua inclinação por destruir coisas e causar desassossego com a mínima provocação.
– Chegou a hora de te casares – concluiu o rei.
Ares virou-se entre gargalhadas, mas riu-se ainda mais quando viu que o pai estava sério.
– Não pensa que vou fazê-lo, pois não?
– Não tenho vontade de sofrer o suplício a que submeterias este reino e a mim.
– Mesmo assim, terá de o sofrer porque não tenciono casar-me – insistiu Ares, num tom ameaçador que era o que mais se parecia com tentar dar um murro ao seu pai… e ao seu rei.
Naquele dia, o pai partiu uma garrafa que era da família desde o século XVIII. Partiu-a um pouco à esquerda de Ares, embora ele não pestanejasse e se limitasse a olhar fixamente para ele.
No entanto, partira mais alguma coisa. Não eram os mil pedaços de vidro de um valor incalculável nem era o mau do pai, que já começava a aborrecê-lo.
Era o conjunto: Os títulos, a terra, a linhagem… Nunca significara nem a milésima parte de tudo isso para o pai. Não fora criado pelos pais, fora tutelado por uma série de empregados que o tinham levado a ver o pai de vez em quando e apenas quando tinham a certeza de que ia portar-se bem.
Não conseguia deixar de pensar que, na verdade, preferia não ser príncipe ou, se não houvesse outro remédio, preferia não ter de entregar a substituição da linhagem e todas essas tolices à geração seguinte. Não tencionava casar-se, não tinha o mínimo interesse e, além disso, opunha-se categoricamente a ter filhos.
Também não conseguia evitar pensar que o pai era um monstro precisamente por causa da linhagem e da coroa… e, sobretudo, era um monstro com o filho. Era frio com a mãe de Ares, mas era Ares que suportava as garrafas partidas e os arrebatamentos de fúria e não estava disposto a transmitir essa fúria aos seus próprios filhos.
– Não devias exasperar tanto o teu pai – comentou a mãe, anos depois, quando já tinha vinte e seis anos e voltara a ter outra conversa com o pai sobre o casamento. – Vamos ter de começar a trazer garrafas do palácio do sul.
Atilia era um conjunto de ilhas que formava um reino muito antigo no mar Jónico. A ilha do norte era onde se concentrava a atividade económica do país e, em consequência, o palácio do norte era a residência mais majestosa da família real. O palácio do sul, no extremo mais a sul do reino, era para relaxar e esquecer os assuntos de estado. Havia praias, tranquilidade e todo o desafogo de que podia precisar um homem que tinha o peso do reino às costas.
Ares não tencionava carregar esse peso, mas, mesmo assim, preferia o sul e fora lá que passara umas semanas antes de o pai o chamar.
– Não posso controlar o que o exaspera – replicou Ares, com ironia. – Se pudesse, os últimos vinte e seis anos teriam sido muito diferentes e ainda restariam muitos objetos frágeis no palácio.
A mãe teve de sorrir, como sempre, com delicadeza e tristeza. Supunha que fosse porque não podia protegê-lo do pai, não conseguia fazer com que o rei o tratasse como a tratava, com um desinteresse gélido.
– O facto de começares a pensar na próxima geração não é o pior que pode acontecer.
– Não posso.
Era uma convicção que se afiançara nele ao longo dos anos. Ares olhou com atenção para o rosto querido e gasto da mãe.
– Se és um exemplo do casamento ou do que temos de suportar para ser a rainha destas ilhas, não posso dizer que me estimule muito endossar esse prazer duvidoso a alguém.
Era verdade, mas ainda mais verdade era que Ares desfrutava da sua vida. Residia em Saracen House, um edifício palaciano dentro do complexo do palácio do norte, mas preferia a intensidade de Berlim, o bulício de Londres e a energia desenfreada de Nova Iorque.
Na verdade, preferia qualquer lugar onde o pai não estivesse.
Além disso, ainda tinha de conhecer a mulher com quem quisesse estar durante mais do que algumas noites, já para não falar de linhagens, tradições, pompa e solenidade para toda a vida. Duvidava muito que existisse uma mulher que o fizesse mudar de ideias e também não se importava muito.
– Sei como estás a olhar para mim e não sou suficientemente velha para não me lembrar das emoções da juventude e da certeza de que poderia prever as mudanças da minha vida – repreendeu-o a mãe.
Estava sentada, erguida e elegante, como sempre, na chaise-longue do seu quarto favorito do palácio, onde entrava a luz do sol para lhe dar alegria ou, pelo menos, fora o que ele sempre pensara.
– Espero que não vás contar-me com pormenores as emoções da tua juventude, sobretudo, quando achava que tinhas passado a maior parte dela num convento.
O sorriso da rainha deu a entender que havia algum segredo e isso alegrou Ares. Gostava de pensar que, na vida da mãe, havia mais do que o pai e esse casamento gélido.
– Tens de encontrar uma esposa com origens parecidas – comentou a mãe, sem se alterar. – Vais ser o rei, Ares. Seja como for o teu casamento, independentemente do que estipulem, tem de ser uma rainha sem mácula e o teu… «assunto» também tem de ser impecável. Entendes o que quero dizer?
Entendia, mas isso não queria dizer que tencionasse obedecer.
– Que tenho de adiar o casamento o máximo que possa – replicou Ares, com um sorriso. – Será um prazer obedecer.
Ares já tinha trinta e tal anos quando a mãe morrera de repente de um cancro fulminante que achara que era uma gripe. Continuava a chorá-la quando o pai o chamara ao palácio do norte alguns meses depois do enterro.
– Tens de saber que o que a tua mãe mais desejava era que te casasses – resmungou o pai, agarrando num copo de cristal como se fosse uma arma. – A descendência, a linhagem, é o teu dever mais sagrado, Ares. Já acabaram os jogos.
No entanto, a linhagem era algo de que gostava ainda menos, mesmo que pudesse parecer impossível.
A mãe deixara-lhe todos os seus documentos e os diários que escrevera desde criança estavam entre eles. Ares, durante os meses desoladores que tinham decorrido desde a morte dela, perdera-se nesses diários, pois quisera entesourar todas as lembranças que tinha dela, quisera voltar a senti-la perto.
No entanto, descobrira a verdade sobre os pais, sobre o pai, melhor dizendo, e o casamento real. Depois de ele nascer, tinham tentado ter outro filho, pelo sim pelo não, até os médicos deixarem muito claro que ela não poderia ter mais filhos. O rei não perdera um segundo e gabara-se abertamente da sua amante. Todas essas mulheres que o tinham mimado quando era pequeno, todas essas nobres com quem não pudera falar em privado… Como podia não ter adivinhado o seu verdadeiro papel?
O pai partira o coração da mãe várias vezes, cada vez que ia para a cama com uma mulher diferente.
Nunca gostara especialmente do rei, mas aquilo piorava tudo. Odiava o pai profunda e irrevogavelmente.
– Traiu a minha mãe constantemente e com toda a tranquilidade – acusou ele, com os punhos cerrados. – Mesmo assim, acha que pode falar do que mais desejava depois de falecer? Atreve-se?
O rei revirou os olhos.
– Estou cansado de te mimar e de te ver a recusar-te a cumprir as tuas obrigações.
– Se está tão interessado na sua linhagem, convido-o a tratar disso, visto que já parecia predisposto a fazê-lo. Vou deixá-lo muito claro, não tenciono fazê-lo.
– Bela surpresa – murmurou o rei. – Eras um pusilânime quando nasceste e sempre serás assim. Até estás disposto a renunciar ao trono.
No entanto, não lhe parecia que estivesse a renunciar ao trono porque nunca o quisera. Não só estava a garantir a liberdade, como também estava a garantir a de qualquer filho que pudesse ter. Estava a certificar-se de que nenhum filho dele seria criado naquele palácio de mentiras.
Além disso, recusava-se a tratar uma mulher como o pai tratara a mãe.
O pai voltou a casar-se com uma mulher mais jovem do que Ares e Ares provocou um escândalo quando não foi ao casamento. O reino estava com problemas e os assessores reais não sabiam o que fazer.
– O trono está manchado! – exclamou sir Bartholomew, o assessor mais veterano, que fora até Nova Iorque porque Ares se recusara a estar onde o pai também estivesse. – O reino perde a força. O seu pai casou-se com a amante e atreve-se a chamar-lhe rainha. Além disso, afirmou que se… acontecer alguma coisa, vai substituí-lo no trono. Não pode consenti-lo, alteza!
– O que posso fazer para o impedir? – perguntou Ares.
Vivia na outra ponta do mundo, passava o tempo a dedicar-se às suas obrigações reais, a gerir a organização de beneficência que criara com o nome da mãe e a desfrutar da vida o melhor que podia. A imprensa sensacionalista adorava-o. Quando mais odiavam o seu pai, mais adoravam a pessoa que fora considerada defeituosa quando era jovem.
Não tinha a mínima intenção de participar na corte do pai ou de jogar esse jogo da realeza.
– Tem de voltar para Atilia – declarou sir Bartholomew, na suíte do hotel que Ares considerava a sua casa em Manhattan. – Tem de se casar e constituir uma família imediatamente. O povo considera-se preso às suas decisões terríveis porque o seu pai não para de lhe chamar o príncipe playboy. Se voltasse e demonstrasse…
– Não sou o rei que procuras – interrompeu Ares, com delicadeza, embora o idoso empalidecesse. – Nunca serei um rei assim. Não tenciono fazer com que esta linhagem corrompida perdure mais além da minha vida. Se o meu pai quiser transmiti-la a outros filhos incautos, só poderei dar-lhes as minhas condolências quando forem maiores de idade.
Pensou na mãe, como fazia muitas vezes, depois de os assessores se terem ido embora. Daria tudo para poder estar um instante com ela para que o aconselhasse com esse sorriso triste e o seu contacto delicado. Conseguia ouvi-la a dizer-lhe que tinha de se casar como se continuasse sentada à frente dele com essa elegância e distinção.
No entanto, não tencionava seguir o mesmo caminho que os pais, morreria primeiro.
O telemóvel tocou no bolso e soube que seria algum convite para uma daquelas festas a que gostava de ir como se fosse um homem normal, não o herdeiro de toda essa dor e sofrimento. Olhou-se ao espelho e, embora odiasse, tinha de reconhecer que essa cara o fazia pensar mais no rei do que na mãe.
Endireitou-se para adotar a posição de que a mãe gostaria, para o caso de conseguir vê-lo. Depois, saiu para se perder na noite de Manhattan.