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PROLOGO DA TERCEIRA EDIÇÃO

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«—Este foi o mais querido dos meus romances»

C. Castello Branco, Prefacio da

2a. edição do Romance d'um homem rico.

Quando Camillo Castello Branco escrevia no seu livro dilecto esta sentença:—«O homem não acha em si os alivios da razão quando os vicios lh'a degeneram», estava julgando a sua propria alma no tribunal austero da consciencia.

Não vejam n'isto censura, os melindrosos por conta alheia.

O romancista, se não é um armador de encommendas, um preparador de effeitos, um pintador de scenarios, um arranjador de visualidades, se sente como escreve, ao menos quando escreve, encarnando-se nos seus personagens, reconhecendo em si as paixões que lhes reconheceu ou que lhes attribuiu, se com elles ama, odeia, chora ou blasphema, faz como o sabio, o martyr da medicina, que, para se convencer e para não falsear a sciencia que professa, muita vez se envenena ou se dilacera.

Camillo era aqui o pensador, o philosopho, o analysador frio do seu excepcional espirito, ora embaciado, a ponto de não vêr distinctamente o objectivo da sua cogitação, ora transparente e brilhante, a dar-lhe lucida a verdade, fôsse onde fôsse o esconderijo d'ella, fôsse qual fôsse a distancia em que demorasse.

Se o romancismo é mester, o escriptor é artifice; se é arte, se é acto impulsivo, o romancista é poeta.

Quando Camillo Castello Branco escrevia no seu romance mais querido:—«Não sei que haja ahi outros incentivos que me chamem aos olhos as lagrimas do coração. Quem me quizer vêr chorar e vibrar de não sei que vehemente e religioso enthusiasmo, conte-me cazos da natureza d'aquelles: faça-me acreditar na existencia d'umas almas que vão entender-se com Deus por um raio esplendoroso da graça divina», declarava-se não mesteiral mas poeta, e denunciava o genero da sua poesia.

E como quem diz:—o symptoma da sua doença.

Pois não têem sido apodados de—loucos—os poetas? Se loucura é a desconformidade de actos ou de sentimentos com as regras da fria, pautadas e articuladas no codigo do senso-commum, vamos, que não têem os poetas muito de que se molestem no conceito da grande maioria dos seus contemporaneos; e mesmo da dos vindouros, os que deixam de si algum rasto de fatua phosphorescencia na travessia longa ou curta da sua derrota.

Loucura lucida, mas loucura incontestavel; loucura impulsiva e incuravel, nem sempre sem perigo para a sociedade, que os applaude e os escarnece, conforme a altura em que lhe vai a digestão.

A loucura de Tasso denunciada em vida, a de Petrarca reconhecida agora, a de Camões sentida sempre, então e hoje, a de Chatterton que se mata, a de Dante que se vinga, a de Victor Hugo que se contorce e conspira, a de Homero que mendiga e canta, a de Jeremias que prophetisa e chora, loucuras foram; por mais que os poetas d'hoje queiram malsinar aquelles homens de ajuizados, na propria defeza, estulta, egoista e cobarde.

Produziram prodigios, mas o prodigio é producto abortivo ou monstruoso; não cabe nas leis da normalidade.

Alguns têem conseguido furtar ao theatro anatomico da critica os vestigios do corpo de delicto; é certo. Virgilio, por exemplo, e Horacio, que se constituiram rouxinóes de Mecenas e de Augustos, poetas cezareos,—os Metastasios do imperio, um, inventando genealogias realengas:

«Mecenas atavis œdite regibus»

outro, cantando apotheoses divinas:

«Deus nobis hœc otia fecit.»

Era o utilitarismo, já então moderando a loucura do genio e segredando lhe estrophes accommodaticias.

Desde sempre, e felizmente, andou o são juizo a enxertasse no genio. Raras vezes pegou a enxertia; é certo.

O genio não é só o demonio incubo dos poetas, e demonio recalcitrante ao exorcismo; torna-se n'elles mais patente, porque, sob aquella forma, estrondeia, sem perigo de morte, e luz, sem perigo de incendio; ao menos—apparente. O genio expõe o sabio de qualquer genero a todos os perigos;—Archimedes deixa-se matar para não interromper a resolução d'um problema; Galileu ouza affrontar as lettras sagradas e só consegue apagar a fogueira d'um auto de fé por um acto de fé, ou de prudencia; Giordano Bruno é queimado deante do Vaticano, exactamente onde hoje se lhe levantou um monumento; Pasteur escapou da fogueira porque já nasceu no bom tempo, mas inoculando em si o virus-rabico expôz-se a morrer da peior das mortes; Daniel Carrion inocula o sangue da verruga persiana para vêr se era violenta a doença, e morre da experiencia; Parkinson inocula o lupus, expondo-se,—heroe sem hymnos!—á morte, pela humanidade; outro aproxima-se d'uma cratéra para devassar os segredos da erupção vulcanica.

Quantos insensatos!

Se depois da loucura da sciencia quizer alguem percorrer a da religião,—S. Macario, S. Simeão Stylita, Santo Antonio, as allucinações dos extasis em que se vê Deus e os ceos, o genio das prophecias, a inspiração dos apostolos, a coragem alegre dos martyres, que exuberancias de loucura, que degenerescencias pathologicas, provadissimas, incontestaveis, não está patenteando a sciencia nos estudos da sua extensissima symptomatologia?

E os impulsos irresistiveis que a honra e a gloria inspiram!...

A gloria! a honra..., mas que são honra e gloria? São tambem uns sentimentos, umas aspirações, uns sonhos, umas loucuras, umas desconformidades com as regras da fria razão, pautadas e articuladas no codigo do senso-commum. Produzem as monstruosidades de Alexandre no Oriente, dos trezentos nas Thermopylas, dos Gracchos em Roma, de Antonio em Philippes, de Henrique IV, de Crillon, da virgem de Orleans, em França; de Bonaparte na Italia, do Infante-Sancto em Fez, de Saldanha no Porto e em Montevideu, de Bartholomeu Dias, de Vasco da Gama e de Colombo, nos descobrimentos dos mundos, de Albuquerques e Almeidas nas suas conquistas, de Xavier no apostolado.—Deus, familia e patria!—O que estes motes produziram de loucuras!

E o amor... e a caridade! Quantos perigos, quantas abnegações, quantos desvios da razão e do senso-commum não produziram e não produzem! d'esses que espantam o mundo e se julgou,—ingenua simplicidade!—que honravam e ennobreciam a especie humana?

Tudo o que foi épico e se chamou grande e bello e mereceu canticos e triumphos e apotheoses e historia e monumentos e centenarios e culto, atravez de seculos e millenios, tudo hoje é condemnado pela sentença fulminante d'este bom-senso burguêz, comesinho, utilitario, pratico, omnipotente e inexoravel. A transformação parece completa; Sancho depôz Quichote, conservou o jumento e vendeu o rocinante; o judeu desenterrou o bezerro d'ouro, não para o adorar mas para o negociar; o codigo depôz a historia; a pirataria depôz o codigo; as notas e as acções bancarias collaram-se nas folhas da epopêa.

Christo prégára a fraternidade, mandando levantar os humildes e abaixar os soberbos. Era justo e bom. Transtornaram-lhe a lição: esqueceram-se do pedestal para levantamento da humildade e decapitaram a grandeza, tomando-a só por soberba. Não foi um nivelamento,—foi um rebaixamento; inutil por improficuo. E será inefficaz em quanto a sciencia, que já cura a raiva, não conseguir curar as loucuras que geram as grandezas, e com ellas o desnivelamento successivo da humanidade, o crescimento e multiplicação das desegualdades sociaes.

Ahi estão ellas—nas sciencias, nas artes, nos descobrimentos de toda a especie; mais humanos, mais proficuos talvez que os antigos, mas careceram d'elles; que não póde haver continuação sem principio. Das pobres, poucas e ronceiras naus de Colombo, do Gama, de Magalhães e de Cortêz, nascêram os milhares de transportes que cortam hoje, em rapidez vertiginosa, os mares do Levante, o Atlantico, o Pacifico, e rasgam e quebram até os gêlos do norte e do sul; dos que descobriram os novos mundos nascêram os que os andam a estudar, a povoar, a inflorar, a aproveitar para a humanidade; dos que batêram contra os isthmos nascêram os abridores de canaes; as assoladoras naus, que até escandalizaram Herculano, porque vomitavam metralha contra os povos sequestrados ao convivio dos outros povos do mundo, andaram, com graves perigos, nas sondagens dos mares, por cima dos quaes hoje passa livremente o commercio, por baixo dos quaes hoje se assenta o telegrapho.

Porém onde me levaria este incidente a respeito de loucuras do genio se não tivesse necessidade de volver os olhos ao livro do meu querido Camillo? Muito longe, de certo, porque me diz a consciencia que tenho estado a fugir de collocar na classe dos loucos o nosso presado romancista e poeta. É tão grave a conjectura, mesmo que só por conjectura eu tenho de o metter n'esta companhia, que me vi forçado a provar-me que a companhia póde ser de gente desafortunada, mas é provadamente illustre.

Nunca a fria razão, nunca o senso-commum fizeram couza que não fosse fria e commum. Excellentes caixeiros e guarda-livros do commercio, excellentes fornecedores, ou chefes de administração militar; na guerra, excellentes officiaes da fazenda, na marinha, professores, sacerdotes (para conegos, não para missionarios), juizes, magnificos ecónomos e descobridores de pechinchas—o espirito conservador—os Wychnú da sociedade, os bagageiros da marcha. Importantissimo, imprescindivel serviço faz á humanidade esta gente de são juizo e razão fria, mas, por conselho d'ella, nem a mãe defenderia o filho contra a féra, nem o bombeiro voluntario defenderia o invalido contra as chammas, nem o barqueiro salva-vidas defenderia o naufrago contra as ondas. Temperatura egual e morna;—a selvageria tropical, primitiva, tendo Sancho na presidencia e o velho de Camões no conselho de estado.

O senso-commum até, por concessão transitoria,—sagaz bom-velho!—já creou, para illudir e desnortear poetas e romancistas, uma litteratura; em odio ás artes, uma arte; em odio ao genio, engenhos. Louvavel empenho na verdade. Vê doenças graves e pretende cural-as; vê enxamear a loucura, a mais grave das molestias, e com ella exgota a sua therapeutica. Benemerito desejo! Mau será se a cura fôr peior que a doença.

De muito dizer-se ao theorico:—sê pratico!—faz-se d'elle ás vezes um ladrão, ás vezes um assassino, ás vezes tudo isto, com prendas variadissimas.

De muito se accuzar o sentimentalismo de Lamartine e o romantismo de Chateaubriand, nasceram Baudelaire e Zola;—um grande poeta e um grande romancista... contrafeitos; e com elles—o satanismo e o naturalismo; porém—naturalismo—de meza de autopsia ou de laboratorio chimico.

—«Faz-me tristeza pensar,—escreveu Camillo n'um dos prefacios do seu Amor de perdição,—faz-me tristeza pensar eu que floreei n'esta futilidade da novella quando as dores da alma podiam ser descriptas sem grande desaire da grammatica e da decencia. Uzava-se então a rhetorica de preferencia ao calão. O escriptor antepunha a frequencia de Quintiliano á do Collette-encarnado. A gente imaginava que os alcouces não abriam gabinetes de leitura e artes correlativas. Ai! quem me dera ter antes desabrochado hoje, com os punhos arregaçados para espremer o pus de muitas escrofulas á face do leitor! N'aquelle tempo, inflorava-se a pustula; agora, a carne com vareja pendura-se na escápula e vende-se bem, porque muita gente não desgosta de se narcizar n'um espelho fiel.............................. Já não verei onde vai desaguar este enxurro que rola no bojo a Ideia Novissima. Como a honestidade é a alma da vida civil e o decoro é o nó dos liames que atam a sociedade, lembra-me se vergonha e sociedade ruirão ao mesmo tempo por effeito d'uma grande revolução rigolboche.»—

Á republica das lettras, tão illustrada e illustre, hystérica, porque é feminina, e devendo ser democrata, porque é republica, faltava o tom e o vocabulario ultra ou infra-humanos da sem-ceremonia. A grande dama era talvez um tanto preciosa e afidalgada; pois bem; para se mostrar accommodaticia, ao arrancar-se dos altos cothurnos, entendeu que o melhor era ficar sem meias, como na Grecia e na Judeia, e não lavar mais os pés; imitação de Sancto Antonio, segundo o testemunho de Maudsley.

Não se modificou—transfigurou-se; o que, longe de provar juizo prova só mais uma degenerescencia pathologica da mesma doença.

Para que tentar esta cura? Se não fôsse inutil seria prejudicial. Na Phedra pôz Platão na bôcca de Socrates:—«Os maiores bens são produzidos por um delirio inspirado pelos deuzes.»—O—Est Deus in nobis,—que traduz, senão a loucura do genio? De Christo escrevia S. João—«Elle é possesso do demonio e está fóra do senso-commum, para que o escutaes?»

Feliz culpa esta do desvario genial, quando póde, em bem, em honra ou em gloria da humanidade exaltar a phantazia, depurar os instinctos, aprimorar os sentimentos, impulsar o estudo, agitar, excitar e electrizar a atmosphera social, varrendo d'ella os miasmas putridos d'esse positivismo absorvente e suffocante que paira e pouza sobre os povos como as nevoas densas da palude.

Tremenda culpa, se, nascido no charco, attrahe, como os nenuphares, pela sua belleza, e, simulando em volta de si chans floridas e aromaticas, toma, enreda, enlaça e asphyxia a descuidada gente que se lhe aproxima.

Para alguma couza fez Deus as flores dos campos e as aves dos arvoredos.—A muzica, os perfumes, os matizes, a transparencia do ether, as alegrias e as saudades; tudo tão sem cotação nos mercados, sem applicação culinaria nem apropriação inventariavel! E comtudo, patrimonio de todos.

N'um livro adoravel de Octavio Feuillet, livro que se dignou traduzir para portuguez o nosso grande romancista, diz uma velha fidalga a uma rapariga nervosa que pretendia simular de positivista:—«De mim digo que nunca me vangloriei de ser pessoa muito romanesca, mas folgo de crêr que ainda ha na terra almas capazes de sentimentos generosos. Creio no desinteresse, creio até no heroismo, porque tenho conhecido heroes. Além d'isso apraz-me ouvir chilrear os passarinhos no meu caramanchão e tambem me apraz edificar a minha cathedral nas nuvens que passam. Tudo isto póde ser que seja ridiculissimo, minha formoza menina, mas ouzo lembrar-lhe que estas illuzões são os thezouros do pobre; que este senhor e eu não temos outros e que temos a singularidade de nos não lastimarmos.»—

Conheço bem os rizos com que me estão lendo os moços da escola novissima. Sei-os de cór, pois com as suas criticas me têem por vezes honrado. Nunca me offenderam, nunca me defendi e nunca tentei redarguir, que nunca lhes quiz mal.

Tinha pena de vêr grandes talentos só cultivarem nos seus jardins as flôres do mal; tinha pena! menos por elles, que andavam embandeirados em triumphos e illuminados em glorias, que pelo bem que podiam fazer e não faziam. Emquanto se afastavam de mim admirava-os eu; e se os não applaudia era por vêr o desdem com que tratavam assumptos que eu tinha a ingenuidade de julgar sagrados.

Camillo Castello Branco deixava o coração dictar os seus livros, e d'ahi o segredo da popularidade que adquiriam. Fazia chorar e rir, indignar ou amar. Cobria as suas lagrimas com um véo de scepticismo que o mostrava mais viril, e deixava em vacillação os espiritos fortes sobre a verdadeira essencia da sua indole de escriptor.

Scepticismo embryonario; dúvida da propria duvida.

Desesperança formal nunca eu lh'a conheci.

Quando vacillava respondia a si proprio, depois de ler o livro do padre Alvaro Teixeira:—«A poesia está aqui!... Aqui, devem vir os luctadores invenciveis da má fortuna ungir os braços para sahirem de novo á arena. Aqui restauram-se os alentos do espirito, extenuado por perdas do seu sangue, que é a fé, a fé perdida dos pusillanimes, que apoucam a obra de Deus a uma guerra brutal entre o forte e o fraco, entre a creatura manietada, desvalida e vil e a bêsta-féra em toda a pujança dos seus musculos de ouro, da sua impavidez e soberba.»

—Deus—era o astro que procurava na noite das tribulações; e se não era a sua crença mais intima e familiar, era o seu mais ardente desejo a mais constrictora ancia da sua alma.

Quem ha de valer aos que delinquiram se não houver uma justiça paternal,—a da caridade?—«A solidão sem Deus não serve para infelizes maus»—nos diz elle no seu livro de consolações—O romance d'um homem rico—onde pretendeu exaltar, acima de todas, a virtude da resignação:

—«Queria ensinal-o a ser paciente, quando fôr desgraçado... Paciencia é a arma, é o triumpho, é a porção divina do homem, é a bemaventurança. A padecer é que os olhos da alma se destoldam e encontram os de Deus.»

E quando, a sabôr do seu intimo sentimento lhe corria a penna inspirada, ergueu a cabeça e observando o mundo atravez da janella do seu gabinete de trabalho, que a phantasia lhe transportára para uma cella de Vairão, acudiu com estas palavras prudentes:

—«Temo que me chamem milagreiro e tomem este livro como additamento á «Flôr dos Sanctos» de Ribadeneira. Não quero semelhante nota.»—

E tambem lhe não cabia a nota de adverso ao naturalismo. Alto espirito como elle é, não podia desconhecer que a verdade da representação das couzas, a exacção, é suprema perfeição nas obras da arte:—«Rien n'est beau que le vrai».—Por isso elle nos diz:—... «Hei de ir indo assim, dispendendo-me pouco em imaginações de que me sinto alcançado, e pondo as melhores tintas e pinceis na copia da verdade.»—

Mas ha naturalismo e naturalismo, segundo a escolha do assumpto ou a indole do artista que o reproduz.

O chôro é real; o rizo, tambem; o affecto, a paixão violenta, existem, e dão de si a heroicidade ou o crime. Se a obra litteraria ou obra d'arte que se funda n'estes affectos, sentimentos ou mostras externas de sentir, é romantica, forçoso é confessar que o romantismo existe na natureza.

Não desconheçamos porém que tambem é real o monturo, a podridão, a devassidão, o antro, os crimes, a sordidez, a blasphemia, a praga.

Comprehendo que seja conveniencia da litteratura e das artes ir procurar revelações e inspirações por todos esses theatros em que a humanidade se exhibe, no intento de que o mal se emende e o bem se vigorise; (como isto cheira a velho!) procurar unicamente o mal, o hediondo, o repugnante, aggravar mesmo a sua hediondez para bem lhe fixar a caracterisação e dal-o por unico realismo, é falsificar a verdade, é calumniar o que é bello e grande, é derrancar o bom gosto e damnar os costumes. É envenenar as fontes! que se a litteratura não é educadora, não é nada e para nada serve.

Se a familia, o individuo, as tendencias, os costumes são só aquillo que nos dizem os chamados naturalistas, refugiem-se nas grutas, como os eremitas do passado, os que foram formados n'outra escola com outros princípios e outras aspirações.

E como devem ser infelizes, a serem sinceros, aquelles que taes impuridades espremem dos bicos das suas pennas!

Vêrem a cutis fina e transparente d'uma mulher formoza e em vez de sentirem desejo de a beijar cuspirem-lhe! Devassarem-lhe, não com enleio e prazer, as veias azues, por onde corre um sangue generoso, mas, com asco, a futura escrofula, os herpes, a lepra e, já antemostrando-se sôb aquella mal empregada transparencia, o verme roedor da sepultura!—chamar-lhe á maceração poetica, de namorada mas virginal insomnia,—signaes de cançada lubricidade! Desconhecer que ha virtudes, achar na flôr só veneno, achar na bondade só hypocrisia, na heroicidade e na abnegação calculos interesseiros e mais nada, no lar só o vicio e o crime, é um naturalismo pessimista e, como tal, falseado logo na origem e pouco agradecivel nas tendencias.

Estas questões são velhas e estão dirimidas. Já nem se discutem. A proposito chovem uma vez por outra umas chufas sobre os que não acceitaram a nova lei sem restricções nem condições, e de quando em quando Camillo escreve a Corja ou o Euzebio Macario e Zola escreve o Sonho. Passos dados para a concordia senão para a unificação das escolas, couza por ora difficil mas não impossivel, n'um proximo futuro.

Ha na Brazileira de Prazins uma ultima, talvez definitiva, feição litteraria de Camillo Castello Branco. Alli encontram-se primorosos quadros copiados exclusivamente do natural. O preparativo d'um assassinato encommendado e ajustado, o carregar da clavina, a sahida furtiva do assassino por noite escura e a reza da mulher e das filhas ante o crucifixo, até que elle volta do seu mallogrado intento, dando logar ao jubilo, em acção de graças, da mizeranda espoza, que julga ter obtido o milagre pela intercessão das suas lagrimas e das orações de suas filhas, são primores d'arte dos mais subidos quilates.

O mercado de bentinhos, rozarios, medidas de sanctos e livrinhos de orações, á porta do templo onde funccionam os missionarios, e a murmuração dos vendilhões e mercadores, alternando-se no sacrilego bazar; depois ainda, o processo monstruoso insistente e asphyxiante dos exorcismos applicados á pobre hystérica, sobre sêrem paineis de genuina e tremenda verdade, revelam um estudo minuciosissimo dos procedimentos inquisitoriaes e do abastardamento e falsificação dos textos sagrados, postos á disposição d'um fanatismo intransigente ou d'uma hypocrisia revoltante.

Alli, sim, póde estudar-se o verdadeiro, o possivel realismo, n'um romance de costumes. Ir além, só com filiação no nihilismo da arte.

Camillo Castello Branco, o visconde de Correia Botelho, vê que os seus duzentos volumes começam a disputar-se com recrescente anciedade e vão sendo a mais e mais, reproduzidos, já em edições luxuosas, já em edições populares. É certo que os contemporaneos do grande escriptor se acham empenhados na sua glorificação em vida. Acclamado em plebiscitos—primeiro escriptor portuguez da actualidade,—honrado pelos poderes publicos, á porfia, procurado por todos aquelles que os combates da imprensa traziam d'elle distanciados, a unanimidade congrega-se em tôrno d'elle, no unisono d'uma apotheose sem exemplo.

Portugal do seculo XIX resgata assim nobremente os crimes de passadas ingratidões.

Elle o reconhece agradecido, aguardando n'uma anciedade dolorosissima vêr-se restituido ao estudo e ao trabalho—sua religião e seu confôrto.

Teve de abandonar a lida, o heroico triumphador. Aguia que desafiava os deslumbramentos do sol achou-se de repente involta em trevas caliginosas, colheu as azas, amordaçou o grito, e sente se despenhar no insondável abysmo d'uma escuridão a cada instante mais densa.

Como elle espreita, procura, esquadrinha um raio, uma restea, um relampago, tenue que seja, de claridade onde vislumbre uma esperança!

Eu tenho assistido a essa lucta que mais parece uma agonia.

A medicina acode-lhe desvelada; ensaia os seus prodigiosos meios d'acção, mas pede-lhe paciencia! e o homem que escreveu este livro, que soube dar tantos conselhos e offerecer tantos exemplos de resignação, não póde resignar-se.

Como todas as cazas lhe dão trevas, foge de todas as cazas, de todas as terras, e até de todo o convivio,—porque ouvir, somente,—aquelles que o procuram, é ter multiplicados testemunhos da cegueira, que mais, dia a dia, vae julgando incuravel.

Sabe que a sua anciedade o prejudica, mas o irrequietismo da nevrose póde mais que a sua razão; e dilacera-se no ergastulo.

Alguma vez, de longe em longe, um raio de luz furtiva e ephemera dá-lhe fugidia esperança; e elle pensa então e falla nas Chronicas duas rainhas que trazia em laboração e tanto deseja concluir. A medicina promette-lhe, com intima fé, a regeneração dos seus olhos, e elle escuta, provoca a demonstração, comprehende-a, espera! Esperança fugidia como o relampago que lhe cruzára pela retina! A descrença volta inexoravel e com ella o inferno e os tratos do sempiterno horror.

Então a ancia do suicidio toma-o de novo e elle afaga o rewolver, como seu ultimo recurso.

Tristissimo.

Assim vive,—se é vida esta dilaceração angustiosa mil vezes peior que a morte,—o nosso grande romancista, á hora em que escrevo estas linhas. Muitas vezes suffoca-o a dor, e elle pede em jubilos que a morte lhe venha n'um spasmo. Os seus raros e curtos somnos trazem-lhe pezadellos afflictivos; por isso pede muita vez que o não deixem dormir. Acorda era gritos lancinantes, estendendo convulsivamente os braços a procurar mão valedora....

Meu pobre amigo!

Comtudo a sciencia lucta e espera e com a sciencia espera, solicita, a amizade. Só elle não quer, ou não póde acreditar, sequer, n'esta esperança.

Vive hoje em Bemfica, em paiz primaveral; n'uma caza cheia de confortos e de luz, do seu e meu amigo Barjona de Freitas. Alli o visitam os seus mais intimos, esperando a cada momento vislumbres da nova luz que lhe faça esquecer tão fundos e tão prolongados tormentos.

Quantas vezes tem elle repetido:

—«Que eu veja! pouquissimo embora! o absolutamente indispensavel para poder trabalhar, e encerrem-me, por toda a vida, no carcere onde escrevi O romance d'um homem rico!»

Carnaxide, 1 de julho de 1889.

Thomaz Ribeiro.


O Romance de um Homem Rico

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