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INTRODUCÇÃO
ОглавлениеAs tribulações dos santos são enigma: uma cousa parecem, e outra são e significam: parecem miserias da fortuna, e são concelhos da Providencia Divina, e signaes da felicidade eterna.
P. M. BERNARDES. (Silva de varios
dictames espirituaes.)
Na primavera de 1859, comprei, na estação de Santa Apolonia, um bilhete da via-ferrea, para a ponte da Assêca. Saudades do campo, ancias de sorver do seio da natureza um hausto de ar puro; e, acima d'isto, o meu dorido amor a quantos sitios guardavam para a minha memoria do coração vestigios da infancia, que tão depressa passara com as flores d'outra mais formosa primavera... A que vem isto?!... É a saudade, leitor! Se a sente, se a já sentiu, recorde-se, e perdôe-me.
Entrei n'uma das mais flacidas carruagens do comboi.
Vejam a egoista e brutal natureza do homem-corpo! Nem quando a alma padecia tanto, se dispensou a ignobil materia dos regalos das almofadas! A angustia lamentosa de Lamartine era sincera; creio: mas em que recamaras de asiatica opulencia se lamentava elle! Que requintes de luxo para o corpo, e anhelos de gloria para a felicidade do espirito lhe não infloravam ao poeta de Elvira a dupla existencia, quando elle escrevia:
Héritiers des douleurs, victimes de la vie,
Non, non, n'espérez pas que rage assouvie
Endorme le Malheur,
Jusqu'á ce que la Mort, ouvrant son aile immense
Engloutisse à jamais dans l'éternel silence
L'éternelle douleur!
E Petrarcha, tanto anno a chorar sonetos, aposentado no palacio d'um doge, rodeado de servos, e d'amigos, e de admiradores, n'aquella feiticeira Veneza, tudo a expensas da republica!
E todos os outros mestres de bardos melancolicos?
Que muito enganados andamos nós com os poetas lagrimantes!
Eu ia a scismar n'isto, quando me deu na vista um homem, companheiro de carruagem, o qual estava pendurando o chapéo no arame, e vestia a veneranda calva com seu barrete de troçal preto.
Cortejei-o, na hypothese de que elle me tivesse já cortejado, e eu não correspondesse, de abstrahido que ia a pensar no corpo e na alma, cousas disparatadas, que o leitor póde vêr mirificamente descriptas em S. Agostinho, e melhor ainda, em Xavier de Maistre; no primeiro, quando se confessa; no segundo, quando viaja á roda do seu quarto. O santo bispo chama ao corpo «bruto» e o conde francez chama-lhe «besta»—ao corpo entenda-se, e não ao bispo. Para mim tenho que o corpo é ambas as cousas, e muitas outras.
Se entro a desvariar, o leitor passa ao capitulo segundo, e isso é que eu não queria, porque os meus romances começam todos pelo principio, e este primeiro capitulo deve lêr-se.
Cortejei o padre. Parece-me que ainda não disse que era padre o meu companheiro. Dava-se logo a conhecer por tal n'aquelle apostolico semblante, se o não dissesse a volta e a sotaina, e o sapato de fivela de aço reluzente.
Correspondeu ao meu gesto com muita afabilidade, tirou-me da mão o chapéo para pendural-o, e offereceu-me rapé, depois de bater quatro vezes com os nós dos dedos na tampa da sonora caixa de tartaruga, marchetada de madre-pérola.
—Póde fumar á sua vontade, se fuma—disse-me elle.
Agradeci o agradavel consentimento, e offereci-lhe a minha charuteira, que elle não aceitou.
Recahi no meu lethargo. Agora era diversa a these: meditava n'esta palavra MORAL, e n'esta outra virtude, e lembrou-me Bruto. Todos sabem que Bruto, no ultimo instante de vida, dissera que a virtude era apenas uma palavra. Por isso é que eu ia conversando com o sanguento phantasma do heroico inimigo dos tyrannos.
—A moral!—dizia eu só commigo, depois que a imagem de Bruto se vaporou—a moral é que não é meramente uma palavra. Aqui vai quem poderia dizer-me o que é a moral. Este homem tem um rosto lucido e intelligente: como que estou vendo por elle uma boa alma.
Fitei os olhos suaves do sacerdote. Estava elle com os dedos inclavinhados e as mãos postas sobre o peito. Dava ares de profundo recolhimento, senão tristeza. Gostei de o vêr assim n'aquella postura, a mais artistica e significativa de paz, e conformidade vencedora dos maus e dos males da vida.
Comparei-me com elle. As minhas dores surdas, disfarçadas n'um sorriso convencional, e timorato do escarneo dos insultadores! O contentamento interior d'aquelle homem, revendo-lhe ao rosto, em suave tristeza, contrasenso se quizerem, mas expressão leal d'alma pura e sem temor! Aos olhos de um observador inexperiente, qual de nós dous seria o feliz?
Sahiu-se o padre do seu absorvimento, e disse-me:
—Serei indiscreto, perguntando-lhe onde tenciona ir?
—A Santarem.
—É um passeio aprazivel! O «valle» é um paraizo, povoado de saudades, que chamam sempre o espirito de quem lá teve uma hora de felicidade. Uma hora, digo, porque a felicidade d'este mundo, e só d'este mundo, não dura mais que uma hora.
—Ha quantos annos eu lá não fui!...—continuou o padre no tom magoado de entranhada saudade—E já agora é tarde... é o anoitecer da vida...
—Parece-me tão facil de satisfazer esse desejo!—interrompi eu.
—É facil, diz bem; mas é que ha saudades, que desabafam nas lagrimas; e outras, que se embebem d'ellas. A saudade do objecto, existente a distancia, converte-a em delicias a aproximação; porém, quando a saudade de um sitio é a dôr repercutida de vidas que lá viveram, e não podem reviver com a nossa, essa não tem allivio.
—Creio que tem—disse eu—é vêr e amar essas vidas em Deus, chamal-as em espirito ao lugar onde as amamos, e conversal-as na linguagem das lagrimas...
—E da oração...—disse o padre, e proseguiu, depois de breve silencio—Prouvera a Deus que todos os que soffrem de affeições perdidas tivessem o desafogo de buscal-as no céo...
E calou-se de súbito, cerrando as palpebras, e encruzando as mãos longas e ossudas sobre o peito.
Estavamos no «Poço do Bispo.» Pesava-me a idéa da separação, cuidando que o padre sahiria alli. É que já o estimava, captivo de sua linguagem e semblante. Eu sou assim com todos os homens, se me elles parecem intelligentes e desgraçados.
—Fica no «Poço do Bispo?»—perguntei.
—Não senhor; vou para os «Olivaes.»
—A passeio, ou é de lá?
—Vivo lá: tenho alli arrendada uma vivenda, umas ruinas pittorescas, em que me sinto bem. Estou alli como encasado n'aquellas paredes abaladas que parecem estar-me dizendo todos os dias: quando cahiremos nós comtigo?
Abriu um sorriso de extrema tristeza, e ajuntou:
—Se o senhor vier aos «Olivaes» alguma vez, e quizer hospedar-se na humilde casa, que lhe offereço, e sentar-se á mesa em que ha sempre o riso e vacca de frei Bartholomeu dos Martyres, pergunte pela quinta do Canavial, e procure o padre Alvaro Teixeira. Raras horas no anno estou fóra do meu quarto, ou dos arredores da casa. Encontra-me sempre, salvo se algum visinho lhe disser que o pobre presbytero passou a morar n'outra residencia onde as pessoas que me visitarem terão a caridade de pedir a Deus o descanço da minha alma.
Disse isto o padre sem o menor tregeito beatifico. N'aquellas palavras doridas sorria a consolação da esperança, e a jovialidade do justo que se não teme das contas finaes de sua alma com Deus, e da memoria, que de si deixou, com a justiça humana.
—Espero ir encontral-o com muita vida, senhor padre Alvaro Teixeira, e não será muito tarde. A sua povoação está ás portas de Lisboa; mas, ainda que muito longe fosse, eu iria passar uma hora com o homem communicativo e estimavel, para quem o coração me está fugindo com a palavra «amigo.»
—Agradeço-lh'a, e afago-a; respondeu, e estendendo-me a sua mão—Que o sentimento generoso sahe espontaneo do coração, sem consultar o raciocinio; ao passo que frequentemente as melhores qualidades do homem, que tratamos longo tempo, não vencem a descaridosa antipathia de um primeiro encontro.
—Como se chama?
Disse-lhe o meu nome. O padre repetiu-o tres vezes pausadamente, syllaba por syllaba, e depois exclamou de repente:
—Não me engano. É o mesmo. Eu conheço o seu nome ha onze annos. Entre os meus livros estão vinte paginas da sua infancia litteraria. Nem, talvez, já se lembre d'ellas! Pois não deve esquecel-as... Eu lhe cito o titulo: O CLERO E O SENHOR A. HERCULANO.
—É a verdade; são minhas. Classificou magistralmente a cousa: vinte paginas da minha infancia litteraria, felizmente esquecidas...
—Mas não as esqueça em si o homem de coração, que deve prevalecer ao homem d'estudo. Foi temeridade assentar-se á beira do caminho, por onde passava triumphantemente o primeiro sabio de Portugal; mas, feliz culpa, ditoso atrevimento o do rapaz, que não tinha exhauridas ainda todas as lagrimas da compuncção. Atrevimento reprehensivel fora o da porção do clero, que desenrolara do pulpito abaixo o sudario da sua ignorancia, disputando á sciencia o que era da sciencia, e arriscando a causa da verdade ás vaias de ingenerosos adversados, os quaes, não podendo hombrear com o historiador doutissimo no solio da sciencia, e castigar de lá os ignorantes, entenderam que bem mereciam do mestre apanhando-lhe a lama do chão das suas botas, e atirando-a á cara dos padres. No folheto do meu amigo não havia polemica nem sciencia; mas sobejavam conselhos aos parciaes do clero, que porfiavam em levar vantagem de injuria aos inimigos. Não se corra de ter, um dia, escripto que o padre é ignorante porque o não ensinam, e que as verdades santíssimas de Jesus não podem ser menospresadas pelas argucias da razão philosophica, nem pela rude e escura hermeneutica dos mal aviados defensores da exclusiva razão do catholicismo...
N'esta esteira foi navegando o padre, a todo o panno da sua muita critica e erudição. Pedem os leitores que os poupe ás conferencias do levita, e eu de melhor vontade os dispenso de ouvir-lh'as, mesmo porque me era preciso saber tanto como elle, para o não desprimorar da eloquencia com que me aligeirou em instantes a hora decorrida até os «Olivaes.»
Parou o comboi, e o padre suspendeu o discurso n'uma conjuncção.
—E portanto...—disse elle—Adeus, meu amigo, não ha tempo para mais.
—E portanto—disse eu—não o dispenso de concluir o seu discurso. Eu é que digo por hoje adeus ao valle de Santarem, e fico nas pittorescas ruinas dos «Olivaes.»
—Fica!—exclamou elle com alegria—Pois bem haja!
Saltei, dei a mão ao padre, e apresentei o meu bilhete ao conductor.
Merece chronica um episodio de instantes que se deu entre mim e o conductor n'esta estação. O meu bilhete designava a «Ponte da Asseca» e o conductor formalisado dizia-me que eu não podia deixar de ir á «Ponte da Asseca.» N'um breve discurso tentei debalde provar ao funccionario que a companhia não era prejudicada com o receber mais oitocentos e tantos reis acima da minha passagem para os «Olivaes.» O homem, que era belga, não entendia o meu vasconço de Poitou. O padre encostado ao cunhal da estação, arquejava de riso; o belga relanceava os olhos envinagrados, avinhados é mais exacto, d'elle para mim e de mim para elle, julgando-nos ambos cumplices na logração. A final soou, segunda vez, a campainha, e o habil empregado lá foi fazendo de mim um mau conceito. Isto prova que bem avisado andou o governo, collocando o intelligente belga, no lugar onde podia fazer tolices algum portuguez estupido. E, se não provasse isto, provaria a embriaguez do homem, e ainda assim a boa escolha.
—Ora vamos lá—disse o padre Alvaro Teixeira, encostando-se ao meu braço—Temos dez a doze minutos de caminho. Vamos pisando este chão que é como sagrado para mim. Repare nestas flôres das ribas e vallados, que eu vejo ha trinta annos, sempre com o mesmo viço e a mesma côr em cada primavera. Ha na natureza um aspecto de indiferença que exacerba a dor dos infelizes, se é que todas estas boninas não renascem para chorar commigo. Um poeta diria e pensaria isto. Quando alguns traços do passado se me varrem da memoria do coração, e, depois, acerto de encontrar-me com a madresilva, com a margarita, com a flôr do rosmaninho, revivem as lembranças todas, umas pungentes, outras doces de saudade; mas nenhuma de esperança... Esperança! Não se ri d'esta palavra na boca de um velho, que cahiria extenuado se apressasse a corrida após de uma esperança, áquem da sepultura?...
—Por que não? A esperança de encontrar mais um amigo, e depurar alguma alma empestada pelas más paixões, não é tão digna de si, e dos seus annos!? E além de que o senhor padre Alvaro não é velho.
—Veja se me lisongêa, meu amigo. Olhe se faz com as suas palavras a maravilha da fabula: rompa n'aquella pedra a fonte da juventude do corpo e a da alma. Remoce o achacoso velho que já conta... diga lá, quantos annos me faz?
—Cincoenta e seis, ou sessenta, quando muito.
—Não, senhor: tenho quarenta e seis.
Contemplei-o com assombro e piedade. Quarenta e seis annos aquelle homem, que me ia pesando no braço, e se abordoava á grossa bengala que lhe oscilava na mão! A luz dos olhos serena, mas quasi apagada. Os vincos da testa escalvada encruzados e fundos, travando-se em miuda rêde ao redor das orbitas. As faces arregoadas, lividas, e flacidas. As cordoveias do pescoço repuxadas pelos tendões descarnados. O dorso recurvo, e as extremidades tremulas e morosas nas articulações dos joelhos. Quarenta e seis annos! Que fogo voraz se retrahe no coração d'este homem, quando o involucro assim se fende e estala febra a febra! Foi a mão de Deus, que me guiou a ti, filho da dor, para me humilhar diante da tua paciencia!? Falla, falla, ensina-me a compor dos meus gemidos o hossana da victoria, sobre as agonias, que me vergam, quando eu mais me afadigo a despontar-lhe os espinhos com a rebellião insoffrida. Diz-me através de qual fibra illesa e invulneravel te vem do espirito aos labios esse teu sorriso! Dá que eu prove o fel de cada lagrima, que enxugaste com o punho da batina nas tuas faces aradas! Não cáias arvore bemdita, sem que eu colha fructos de benção d'essas magestosas frondes, que se abaixam até ao raso da minha miseria. Se adivinhaste um infeliz no homem, que deixou em tua memoria as vinte paginas do coração juvenil, deixa-o sentar-se á tua beira, a meio caminho da vida; aponta-lhe d'aqui o trilho menos escarpado da sepultura; ensina-o a converter cada espinho em flôr; cinge-lhe os rins com o cilicio que revigora a alma; dulcifica-lh'a com o travor das lagrimas penitentes; dá-lhe a força de homem, e reserva para Deus a tua essencia de anjo.
Este era o seu refugio, o seu descanço.
Fr. LUIZ DE SOUZA. (V. do Arc.)
A tristeza das ruinas é uma tristeza particular, da qual nem todas as almas se magoam. Já observei vezes sem conto isto mesmo no semblante das pessoas que foram commigo a visitar um palacio derrocado, ou as alpendradas d'um convento, ou algum lanço empenado de muro de castello.
No convento de franciscanos, cerca de Vianna, reliquias santas em cujas abobadas credes ouvir ainda o ciciar dar oração dos frades comtemplativos, estava eu, por uma tarde de estio, com um amigo, que escrevera muito sobre a poesia da cruz. Subimos a um teso d'onde se avistavam descampadas e fertilissimas varzeas. A fronte do meu amigo pareceu-me alumiada do sacro lume do estro. Esperei, com reverente silencio, a estrophe inspirada pela soledade, e esmaltada dos matizes do sitio, que eram poesias feitas para um genio que as bem soubesse ler. Entre-abriu o poeta os beiços, como flôr matutina o calice ao primeiro beijo do sol, e disse:
«Se fosse meu tudo isto que vejo d'aqui, ia viajar n'um vapor meu, comprava um palacio em Milão, outro em Paris, outro em Londres, e havia desbancar quantos luxos orientaes o Byron inventou para o seu Sardanapalo!»
Não respondi, de triste que fiquei, e de triste que já estava.
Outra vez, fui com outro amigo ao castello de Palmella. Desci ás masmorras em que não seria custoso com uma enxada trazer á flôr da terra as ossadas dos que alli morreram ha cem annos emparedados á ordem do conde de Oeiras. Refugi com o pensamento d'este laivo sangrento da historia, e fui em cata de glorias aos seculos primeiros d'aquelle baluarte da nossa independencia de Castella e da mourisma. Enleavam-me estas meditações, quando o meu amigo, cabisbaixo n'um angulo d'um bastião, resmoneou:
«Fizemos uma crassa tolice em não trazermos de Setubal um pedaço de carne assada e duas garrafas do Cartaxo, que era optimo vinho, e havia de saber-nos aqui que nem o nectar dos deuses.
Ora, este poeta era amantissimo de ruinas, quando as poetava no seu gabinete, em artigos, a um tempo, de saudade do que fomos, e fulminação contra os governos barbaros, que deixavam ao camartello iconoclasta demolir os vetustos moimentos da nossa extincta grandeza.
Outro caso:
Nos arrabaldes de Lisboa, ha um espaçoso jardim abandonado, junto de uma casa esburacada de balas, e aberta em largas fendas, desde o cerco de 1833. Por entre hervas e arbustos silvestres rompem algumas hastes enfezadinhas de rarissimas flôres, que teimam em reflorir na sua estação, como se a esperança lhes não morresse ainda de voltarem aos cuidados da mão delicada, que as semeara e amimára alli, com o coração em flôr tambem. Quem se lembra ainda da formosa jardineira que descia com o sol a colher ao seu jardim os mais gentis enfeites do seus cabellos? A formosa passou, e a rosa de toucar floreja ainda ao pé do myrto, á sombra da anemola e da romanzeira, abafada pelas moitas das papoulas, que são o ephemero adorno das sepulturas. Que triste eu scismava n'isto, quando o meu amigo, author de idyllios que faziam amar a botanica e adorar as flôres, rompeu n'esta canção:
—Este jardim, aqui ás portas de Lisboa, se o dono o pozesse a couve lombarda e feijão carrapato podia render vinte e tantas libras annuaes.
Disse, e perguntou-me se iriamos jantar ao Matta, ou á Taverna ingleza.
Por estas e outras, puz eu que a tristeza das ruinas é uma particular tristeza, da qual nem todas as almas se magoam.
Eu de mim, liberalmente dotado de dores minhas e intimas, já fujo de ir onde está a solidão lamentosa, parque nunca me ella deu o remedio que deu a muitos, mal feridos do mundo. E de ruinas é que fujo mais esporeado pela lembrança das más horas, e peçonha para muitos dias que tenho trazido de lá, em vez do balsamo, que a meu ver, só é salutar nas almas golpeadas, se a consciencia não se dóe com ellas.
As unicas ruinas de que tenho saudosa memoria são as da vivenda do padre Alvaro Teixeira, nos «Olivaes.»
A casa tinha claros vestigios de palacete. Os cunhaes estavam em pé, amparando alguns lanços de parede, recortados em escaleiras desiguaes. Através de nove janellas das quatorze da fachada coava-se o azul do céo, apenas interceptado por algumas vigas e ripas empenadas e torcidas pelo calor. Nas padieiras e cornijas amarelleciam fetos e outras hervagens resequidas que deixavam realçar o verde da hera. Esta marinhava do interior das paredes para os batentes e couçoeiras das janellas, sem portadas, e n'algumas enredava-se em urdidura tão agradavelmente tecida, que dissereis ser a natureza tanto mais de vêr-se quanto mais desalinhada é da esquadria da arte.
Entramos n'um largo portal, que abria para um pateo espaçoso, alcatifado de relva, nos pontos de juncção entre as lageas. As paredes circumpostas eram ladrilhadas de tijolo azul e apainelado, figurando passagens mythologicas e campestres. No rebordo superior d'este ladrilho, corriam em toda a roda argolões feluginosos, que deviam ter sido as prisões dos cavallos, nas tardes calmosas, quando os antigos senhores, refestelados nas suas cadeiras encouradas, vinham, do patim imminente ao pateo, gozar-se do espectaculo dos mursellos e alazões rinchando, escarvando, e folgando em airosas upas.
Subimos a escadaria do patim, e entramos n'uma sala pouco alumiada e muito extensa. De relance vi que o tecto era de castanho e profundo, com artezãos grosseiros, e um brazão de extraordinario tamanho e lavor no centro. D'este pendia uma corrente de arame e um grande lampadario, através de cujos vidros afumados, a custo uma tocha lograria coar o seu clarão. Ornato n'esta sala não vi algum, a não serem dous escanos de castanho, de altissimo respaldo, com a pintura duplicada a ocre das armas do tecto.
Segui o padre ao longo d'um comprido corredor ladeado de quartos, á imitação de dormitorio claustral. A maior parte d'estes quartos não tinham tecto, nem portas, nem pavimento. Na extrema do corredor estava uma velha sentada, quando apontamos á outra extrema. Levantou-se então, e forcejou por tirar do cinto duas chaves encambadas n'um atilho, operação não facil, porque o atilho se lhe enredara nas camandulas, e estas no fuso, e este no fiado.
—Não se impaciente, senhora Eufemia,—disse o padre.—Ande lá de seu vagar, que nós não temos pressa.
—Valha-me Deus!—disse a velha afreimada—este berzabum do negalho parece que tem cousa má! Não querem ver isto? Olhe onde o rosario se foi imbelinhar!
A senhora Eufemia já suava, e cada vez embrulhava mais as cousas, a tempo que o padre, tomando-lhe das mãos a tarefa, ia desdobando a miada, sorrindo e gracejando com a velha, que não podéra sahir-se d'aquellas difficuldades, por ter dous dedos da mão esquerda inutilisados n'uma grossa pitada de simonte, que resfolegou, em quando o padre pacientemente desenredava a cambulhada.
D'alli passamos á porção mais reparada e habitavel do palacete, e residencia do locatario. Era uma sala, e dous quartos contiguos. N'um d'estes estava a cama e livraria do padre; o outro era devoluto para hospedes. A sala tinha mobilia, que fora sumptuosa no começo do século passado: eram tremós dourados, cadeiras de estofo estreitas com espaldar alto e douraduras floreadas, mesas lisas orladas de embrechados a ouro, com fechaduras de prata rendilhadas, jarrões indianos com reluzentes matizes de escarlate e azul. Das paredes, cintadas de florões a oleo, pendiam os retratos de D. João V, ao de D. Pedro III e D. Maria I n'um só retabulo. Outros retratos innominados, afóra o do ministro da justiça no reinado de D. Miguel, João de Mattos Vasconcellos Barbosa de Magalhães, oriundo de Barcellos, e morto no desterro, adornavam, a grandes intervallos, as quatro paredes da sala, cuja limpeza abonava o cuidado da senhora Eufemia.
Abriu o padre Alvaro a vidraça do seu quarto, e eu fui á janella examinar os contornos da casa. Vi em baixo uma pequena parte d'um grande jardim cultivado e retalhado por meandros de murta e alecrim. O restante estava abandonado. Feixes de herva myrrada afogavam um cysne de pórfido, o qual se levantava sobre um pentágono de granito, no centro de uma bacia de marmore de todo sêcca, e esborcinada. Arvores de densa copa e muita grossura de troncos formavam, emmaranhando-se, a enorme sebe do antigo jardim. Através das clareiras interpostas aos troncos entrevi um paul, reliquias do que devera ter sido um vistoso lago. Rebalçavam-se no charco alguns patos, e saltitavam e ralavam as rãs como á competencia com as cigarras.
Defronte, a duzentos passos, vi uma casa nobre, toda ladrilhada de amarello, com as suas tres chaminés pintadas de azul, e brazão de armas, retocadas de novo, no triangulo em que remata o frontal do edificio.
—Quem vive n'aquella bonita casa?—perguntei eu.
—Aquella casa é d'um commerciante de Lisboa—respondeu o padre—Foi dos que foram donos d'esta em que vivo...
Observei no semblante do padre mudança de côr, e muita tristeza no olhar para uma das janellas do palacete. Dava a cuidar, pela insistencia com que fitava a janella, que devia alguem apparecer alli; mas tanto aquella, como todas as mais, estavam fechadas, e nenhum signal de vida, se não o chilrear das andorinhas ao longo das cornijas da casa, podia responder á observação attentiva do meu amigo. Não era observação, era absorvimento, por motivos que o leitor saberá opportunamente.
Como de golpe, sahiu o padre do seu transporte, e, voltando-se risonho para mim, disse:
—Vamos vêr se o meu amigo se conforma com a mesquinha hospedagem que lhe dou. Venha d'ahi.
Segui-o ao quarto visinho, onde estava a senhora Eufemia toda azafamada a desdobrar lençoes para a cama. Era esta um grande leito liso de pau preto com as quatro hastes do pavilhão. Completavam o adorno da camara duas cadeiras e uma banquinha, e lavatorio de ferro, onde já se via a fina e alvissima toalha. Na parede estavam doze estampas enquadradas em ébano, as quaes representavam a vida de Barnabé Chiaramonte, com referencia a Napoleão, segundo a conta Beauchamp na «Historia dos infortunios e captiveiro de Pio VII.» A alfaia mais rica do meu quarto era um festão de trepadeiras, com flôr escarlate, que ensombrava a metade superior da vidraça. A limpeza, a frescura, o perfume, e a doce melancolia d'aquelle recinto não podiam invejar pompas, se as ha, que mereçam comparação com as do meu saudoso e lindo quarto das ruinas dos «Olivaes.»
—Já sabe—disse o padre—que tem de fazer aqui penitencia da irreflexão com que se fiou da minha hospitalidade.
—Como isto é gracioso, senhor padre Alvaro!—disse eu sem simular o enthusiasmo—A poesia está aqui!
—A poesia dos prophetas de Jerusalem;—atalhou o levita—a poesia das lagrimas...
—E a da esperança, que é tão formosa, tão do céo, e dos desventurados n'este mundo!—acrescentei eu, enlevado no meu rapto de cinco minutos—Aqui, devem vir os luctadores invenciveis da má fortuna ungir os braços para sahirem de novo á arena. Aqui, restauram-se os alentos do espirito, extenuado por perdas do seu sangue, que—é a fé, a fé perdida dos pusillanimes, que apoucam a obra de Deus a uma guerra brutal entre o forte e o fraco, entre a creatura manietada, desvalida, e vil, e a besta-fera em toda a pujança dos seus musculos de ouro, da sua impavidez, e soberba. Mal d'aquelle, que foge o mundo, e se refugiarem si: é um engano; é render-se o homem ás garras do dragão que encerra, e nutre com a peçonha que a desgraça lhe vara no seio. O homem, desfavorecido dos acasos de que depende a felicidade, o bem, e a fortuna, não póde nada comsigo, nem deve estar lacerando-se com as suas proprias unhas para extirpar com o sangue a raiz do mal. Fóra de si é que está a salvação. Em Deus é que...
—Em Deus—interrompeu o padre. É essa a palavra, onde eu o estava esperando, meu amigo. Não se contradiga. Disse ahi que «a felicidade, o bem, e a fortuna são dependencias do acaso.» Quem isto sente, não acha absolutamente necessaria a intervenção da vontade divina nas contingencias, meramente casuaes, d'esta vida. Offerece-se-me cuidar que o meu amigo não meditou no desconcerto dos seus principios com as consequencias. Se a felicidade—a da consciencia, entendo—é obra do acaso, o acaso é a lei de Deus na ordem do mundo. O paradoxo salta! Não serei eu quem peça a Deus o milagre de fazer-se absurdo por meu respeito, até ao ponto de pôr á minha disposição uma cadêa de acasos felizes. O bem-viver, meu amigo, é tão rigorosa consequencia do bem-fazer, como a luz o é d'aquelle astro, que alli está no céo, protestando contra a sua theoria dos acasos. O homem não acha em si os allivios da razão, quando os vicios lh'a degeneram. A razão depurada dos sedimentos da antiga culpa, no crisol do Evangelho, é Deus. Deus não é sómente puro amor, é pura razão tambem. E, se não, veja que os bem-aventurados n'este naufragio da vida são aquelles que, rebatidos d'uma vaga contra a outra, emergem á flôr de cada escarcéo, abraçados á razão, taboa de infallivel salvamento. O embriagado da sua falsa fortuna, cuidando-se, um momento, domador das tormentas, póde sorrir de desprezo ou mofa, vendo quam dissaboridos e minguados passam os dias do justo. Aquelle dirá que o acaso prospero lhe bafeja a si, e o funesto ao outro? Dirá; no entanto, meu amigo, será tudo escuridade á volta d'este fatuo dos seus bens exteriores, quando a roda do acaso desandar. O interior, a quem me soccorro desconfortado, é a minha razão. Se as paixões me apagaram esta luz bemdita, a quem pedirei eu a esmola d'outra luz, se não a Deus?
Disse bem, meu amigo: «mal d'aquelle que foge o mundo, e se refugia em si.» Não andaria melhormente avisado o naufrago que, escapado do mar alto, entendesse que o salvar-se estava em ser revessado contra os penhascos das costas. Antes prolongar a agonia na esperança d'uma vela salvadora que nos póde chamar e reanimar para maior esforço. Antes esvasiar o calix da injustiça humana, sem o repellir, esperando que o Senhor dos mundos se amercie dos seus reptis, occasionando-lhes um dos imprevistos encontros, que lá estão delineados na sabedoria divina. A solidão, sem Deus, não serve para infelizes maus. Os bons, os absolvidos por sua consciencia, refrigeram-se, convalescem, e saram no ermo; bom é, porém, que não venham aqui ungir os braços para sairem de novo á arena. O proveitoso, o melhor, o sobre-excellente é que os luctadores invenciveis da fortuna não façam timbre em se degladiarem com ella, e deixem a arena aos vencedores lacerados de uma hora, e aos vencidos manietados da hora seguinte. Dito isto, meu amigo, pergunto-lhe eu se tem horas de jantar acostumadas.
Este remate, posto com um riso de graça, fez-me rir tambem. Como eu respondesse consoante mandava a cortezia, fomos para a mesa, que era proxima da cozinha, e ficava longe, em outro pequeno lanço habitavel da casa, para onde passamos, sobre um passadiço de tabões, fincados nas soleiras de duas portas.
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No has visto mas?... Vuelve á la pradera, hijo mio, por que hay en ella cosas mas dignas de tu atención......................... Dios estaba en medio de los campos. No le has visto? A él debe la pradera su belleza; las miradas de Dios animabam la claridad del sol.......................... No has oido mas que él murmullo de los arroyos, et gorgéo de las aves, y el viento que mecía las ramas de los árboles? Vuelvebe al bosque, hijo mio, porque tus oidos percibiran cosas mucho mas grandes...
ILDEFONSO MIRANDA (Himnos de
la primera edad.)
Passaram tres dias sem me eu lembrar que era delicadeza, se não dever, despedir-me do meu gasalhoso amigo: tão dulcificante me era aquelle remançoso descanço do corpo e socego de espirito.
A minha vida aligeirava-se a conversar, meditar, e lêr, toda instructiva e de proveito, sendo que poucas horas bastam á alma para se nutrir em colmeia copiosa, como era aquella, do mel que ao depois edulçora os azedumes de largos annos.
Tinha o padre umas horas da manhã, e sobre tarde, em que evitava delicadamente a minha companhia, e se fechava em seu quarto. Na terceira tarde, estava eu á beira da lagoa onde se rebanhavam os patos, e, por entre as frondes do arvoredo, vi o padre á janella do seu quarto, com o rosto entre as mãos, e os cotovelos apoiados no peitoril, e os olhos immoveis e fitos na casa fronteira do negociante de Lisboa. Naturalmente, e não sei se até curiosamente, relancei a vista para a casa, e vi, como sempre, as janellas hermeticamente fechadas. Estive n'este reparo até ao toque das Ave Marias. Padre Alvaro levou então ambas as mãos á cabeça, tirou o solidéo, e afastou-se da janella, já com as mãos erguidas.
Á hora do chá, a mais taciturna e recolhida do padre, disse-lhe eu:
—Vossa senhoria de certo não reparou ainda no meu apêgo ás suas ruinas; creio que não, porque é bom, e sente o bem que me vê gozar. Não obstante eu devia já ter dado por concluida a minha visita, sem comtudo julgar esgotada a hospedeira bondade do meu presado amigo. Não me culpe a mim, condemne a sua affectuosa convivencia, e o mundo tambem que me não dá outro amigo como o snr. padre Alvaro...
—Onde vai dar comsigo n'esse arrazoado?—atalhou.
—Era o prologo da despedida e do agradecimento que eu estava fazendo.
—Pois fique no prologo; e se, de força, quizer entrar no discurso, reduza-o á simples confissão de que está aborrecido, e quer ir espairecer nos «cafés» de Lisboa.
—Seria a primeira injustiça que o meu amigo fizesse, pensando tal de mim.
—Então, deixe-se estar mais oito ou quinze dias. Se quizer ir á caça, eu arranjo-lhe os petrechos; se quizer dar passeios mais largos, tambem lhe arranjo cavalgadura; se tem precisão de ir a Lisboa, vá e volte; se está bem e quer estar assim, não se despeça nem me agradeça, que o mesmo é lembrar-me que sou eu o obrigado.
O veneravel velho pozera-me então a mão no hombro, e eu respondi beijando-lh'a. Chorei, e sei dar a explicação d'estas lagrimas. Lembrou-me meu pai, cuja face eu beijei no esquife ha vinte e sete annos. As ultimas palavras amoraveis d'um homem de cabellos brancos, meu pai m'as dissera. Depois, não ouvi outras, senão as do sacerdote. Ahi está a razão das lagrimas, que o santo homem viu, e me galardoou com um abraço.
No dia seguinte, sahimos pela fresca da manhã, e subimos uma ladeira de olivedos, que no topo se espalmava em hervecida chã, assombrada de grandes arvores. Em nosso alcance, sahiu a snr.a Eufemia com o almoço, e retirou com ordem de nos trazer alli o jantar.
D'aquella eminencia iam os olhos a muito longe buscar a suave melancolia que levanta o espirito. Enlevavam as lezirias com as suas manadas de gado, os grupos alvejantes de casas, as granjas dispersas na esplainada, os pomares de laranja, os olivedos, e o rumorejo confuso e indistincto das aves, dos regatos, do brando ramalhar das arvores, e da toada de vozes distantes nas veigas, que se espraiavam ao sopé e em redor do nosso outeirinho. Estavam entre as arvores umas pedras musgosas convidativas de repouso. O acaso as talhára á feição de escabello com seus encostos. O padre sentou-se na menos commoda, e disse-me:
—Almocemos aqui. O meu mais longo passeio, ha vinte annos, é até este ponto do mappa-mundi. São estas as bellezas unicas, que eu mostro aos meus raros hospedes. Esse alamo, a que o senhor encosta o hombro, plantei-o eu em 8 de Junho de 1832. Tem vinte e dous annos.
Reparei n'outra arvore proxima, e vi duas iniciaes: L. A., quasi illegiveis pela sobreposição da casca.
—E estas letras escreveu-as tambem o snr. padre Alvaro?
—Tambem.
Obrigava-me a discreto silencio a brevidade da resposta, e o recolhimento visivelmente magoado do padre. Tomei do cabaz as provisões do almoço, e accommodei-as sobre a pedra que melhor se ageitava. Fiz o chá e servi o padre, dizendo chistes, que me occorreram, tocantes aos cenobitas, moradores das brenhas, estomagos fortalecidos por fructos silvestres e raizes, os quaes não sabiam sequer da existencia do chá hysson nem do assucar, nem da manteiga de Cork, ignorada até do proprio Theocrito, Columella, e outros amantes da natureza e do leite. Se o leitor não acha sal n'estes ditos, o padre tambem lh'o não achou. De instante a instante fez-se noite n'aquelle aspecto, um quarto de hora antes claro e aberto ao contentamento interior.
—Que tristeza é essa?!—perguntei.
—A tristeza do homem, que não póde ser anjo—respondeu elle, trabalhando por reprimir as lagrimas.
De maneira dizia elle estas breves respostas, que eu não sabia replicar, nem consolar.
Aquelles minutos do almoço correram assim tristonhos, e terminaram, tirando o padre do fundo do cabaz dous livros: um era o breviario da sua reza, o outro era um romance... Um romance! e, de mais, um romance denominado VOLUPTÉ, Voluptuosidade! isto oferecido pelo homem de Deus, pelo vaso de eleição, pelo santo, cuja mão eu beijei hontem com fervor d'um catechumeno inflammado por um raio de graça, que a oração do justo me trouxera do céo! A voluptuosidade de Sainte-Beuve, aqui, n'este sitio, ao pé do livro de Job, do rei penitente, dos dictames do Espirito Santo!...
Acceitei o livro, e li, no prefacio, estas linhas:
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
«Entende o editor d'esta obra que as pessoas nimiamente escrupulosas, acaso espavoridas pelo equivoco titulo que ella tem, pouco perderiam, em verdade, não lendo um escripto cuja moralidade, por mais grave que ser possa, só diz respeito a corações menos puros e menos despreoccupados. Ao revez, pelo que toca ás pessoas, convidadas justamente pelo titulo que repelle as outras, essas, não achando no livro o que desejam, não ha que temer o derrancarem-se.»
Fui folheando e salteando os capitulos, e os relanços da obra que mais brevemente podiam ensinar-me o enredo da historia. Comprehendi-a toda em trinta minutos de leitura. É um homem que amou, e cobriu com a mortalha de levita a mulher que amara e perdera. É a analyse minuciosa e pungente d'uma paixão; e poderia tambem ser instructiva a analyse, se o espectaculo das agonias d'um naufragio fosse causa a gelar de terror os futuros navegantes e deixar rugir o oceano sósinho com os seus furores.
Fechou o padre o seu livro, e eu continuei a lêr.
—Sainte-Beuve escreveu esse livro em fórma de carta a um amigo—disse o padre—Se o senhor tivesse em mim um amigo, capaz de escrever com profundeza e graça, e me pedisse conselhos, eu mais quizera ter-lhe escripto este romance que o «Manual d'Epicteto» ou a «Imitação de Christo.» Ahi verá o philosopho, o sabio, o mundano, o penitente, o christão, e o martyr, se quizer. E sobre ser tudo isto, é ainda mais, é o homem. Quão raros são os livros que bem definem o homem, a não ser o de Job: Homo natus de muliere..., repletus multis miseriis «homem, nascido da mulher, acervo de miserias sem conto.»
—Poderei fazer uma pergunta, sem preambulos, que m'a desculpem?—atalhei eu.
—Porque não? faça.
—Entre o senhor padre Alvaro Teixeira, e este homem que veio cingir os rins n'um claustro das margens do Tejo, ha uma dôr commum, não ha?
—Ha uma dôr igual, um mesmo calvario,—perdôe-me a profanidade—mas as veredas muito differentes.