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O REGICIDA
V

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O padre Luiz da Silveira viera da Alhandra para Lisboa, chamado pela fama de prégador, em 1635, tendo vinte e quatro annos de edade.

A marqueza de Montalvão deu-lhe capellania em sua casa, e accesso á estima dos fidalgos mais parciaes do rei castelhano. Os sermões de padre Luiz degeneravam, pelo ordinario, em arengas politicas em prol da legitimidade dos Filippes, e invectivas ironicas adversas aos sebastianistas. N'aquelle tempo, tanto os esperançados no vencido de Alcacer-kibir, como os imaginativos de rei portuguez, eram chanceados de sebastianistas.

Em casa da marqueza beijara o padre a mão do arcebispo de Braga, D. Sebastião de Mattos e Noronha, um dos mais esturrados sustentaculos do dominio hespanhol, e tão execrado dos portuguezes como Miguel de Vasconcellos.

Affeiçoou-se o arcebispo ao capellão da marqueza, ouvindo-o prégar no anniversario de Filippe IV, de Castella, e de moto proprio lhe offereceu o emprego honroso e lucrativo de official do secretario de Vasconcellos.

N'esta posição, e com promessas de boa prebenda na Sé lisbonense, o sobresaltou a revolução de 1640. Dormia elle ainda o somno do justo, quando o ministro era espostejado no terreiro do Paço da Ribeira. A consciencia remordia-o já com os delictos oratorios, já com os aggravos feitos aos seus compatriotas, sob a egide de ministro despota. Escondeu-se, portanto, no palacio do arcebispo de Braga, que os conjurados teriam morto, se rogos de D. Miguel de Almeida o não salvassem, e se D. João IV, receoso do clero e de Roma, lhe não desse parte no governo provisorio, defraudando de tamanha honra fidalgos que jogaram a cabeça, proclamando-o.

O arcebispo, inflexivel á indulgencia do rei, urdiu, travado com outros da sua estofa, a malograda contra-revolução, a fim de reconquistar a graça de Filippe IV.

Carteando-se com o conde-duque de Olivares, confiou a mensagem da correspondencia ao seu commensal, padre Luiz da Silveira, que tres vezes desempenhara destramente a perigosa empreza, disfarçado em almocreve.

Planeada a tentativa dos conjurados, de accordo com a Junta de Madrid, chamada da Intelligencia secreta, padre Luiz, ou por que desconfiasse do bom exito, ou por que um leicenço de infamia lhe apojasse na alma, ou—e seria o mais improvavel—porque o patriotismo o esporeasse, resolveu delatar os conspiradores a D. João IV.

Outra versão correu explicando a perfidia do padre. Disseram que elle, a fim de alliciar um antigo parceiro, communicara o segredo da conjuração a Luiz Pereira de Barros, que tambem servira Miguel de Vasconcellos, com grande applauso e confiança do ministro; porém Luiz de Barros, como a esse tempo já fosse contador da fazenda, a revellação do familiar do arcebispo recebeu-a sem enthusiasmo, promettendo, todavia, reflectir antes de se alistar nos conjurados. Mas, como quer que o clerigo desconfiasse que Pereira de Barros denunciasse a conspiração, deu-se elle pressa na precedencia da protervia e da paga. Não se illudira, por que D. João IV recebera os dois delatores no mesmo dia, e os enviara conjunctamente ao seu ministro Francisco de Lucena, e este os mandara ao procurador geral da coroa, Thomé Pinheiro da Veiga.

Simultaneamente, novas denuncias asseveraram a do confidente do arcebispo, umas espontaneas, outras arrancadas pela tortura. Dois capitães, Diogo de Brito e Belchior Corrêa de França, postos a tormento, confessaram os nomes dos cumplices; não assim o opulento mercador Pedro de Baeça que, desde o cavalête, em que lhe quebraram os ossos, até o verdugo bamboar-lhe o corpo dependurado, apenas fallou para offerecer trinta mil cruzados pela vida, mostrando até final, como bom mercador, que a vida tambem era mercadoria.

Não podemos attribuir especialmente á delação do clerigo o malôgro da revolta: tão obcecados de medo de Castella tremiam os conspiradores, que não viram o carrasco em casa, nem se arrecearam da irreflectida escolha dos cumplices. No entanto, os pormenores da revolução, que devia estalar no dia 5 de agosto de 1641, começando pelo incendio do Paço da Ribeira e assasinio do monarcha, deu-os o padre Luiz, taes quaes os sabia da confidencia plenissima do arcebispo de Braga.

A 28 de julho, a mais selecta porção de conjurados foi aferrolhada em diversos carceres; e a 28 de agosto soffreram decapitação na Praça do Rocio o marquez de Villa Real, o duque de Caminha, o conde de Armamar, e o escriptor D. Agostinho Manuel. Quanto aos outros padecentes, por que eram plebeus, as agonias estiraram-se mais prolongadas, desde o serem cavalleados pelo algoz, e d'ahi, como ignominia aos vilissimos cadaveres, começou a estupida ferocia de os arrastarem e esquartejarem.

O amigo do padre Luiz morreu nas masmorras de S. Julião da Barra; o bispo de Martyria acabou socegadamente no claustro de S. Vicente; o inquisidor-geral, D. Francisco de Castro, dois annos preso, sahiu perdoado e d'ahi a pouco reposto em todos os cargos e honras, depois de accusar, com a promessa do perdão, as particularidades do plano sedicioso. Este abjecto prelado, que merecera depois a estima de D. João IV, era esbofeteado, passados annos, pelo principe D. Theodosio, que o detestava como denunciante dos seus parceiros de infamia. (Nota 9.ª)

O padre Luiz da Silveira, dado que el-rei o recommendasse a D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa, não tinha ainda, em 1642, recebido condigno galardão, pois que n'esse tempo esbrugava apenas o escarnado osso de thesoureiro de S. Miguel de Alfama. O arcebispo D. Rodrigo da Cunha era homem honesto e verosimilmente despresador do fementido padre que prégara a legitimidade dos Filippes, e denunciara os seus co-reos na trama contra a liberdade da patria.

Retrocedamos dois annos na biographia d'este clerigo. Quando, em 1639, o tanoeiro João Bernardes Traga-malhas resolveu aperfeiçoar a sua filha em lettra e leitura, já quando a menina, por muito encorpada, corria perigo em andar na mestra, indagou como cauteloso pae onde houvesse um sacerdote ajustado ao intento.

Inculcaram-lhe padre Luiz da Silveira, a quem muitos fidalgos confiavam a educação de suas filhas.

Quiz o Traga-malhas julgar do clerigo pela cara, e desagradou-se da mocidade do mestre; porém, como pegassem de conversar a respeito da soltura do genero humano, o official do ministro Vasconcellos tamanhas lastimas gemeu sobre os peccados do mundo, que o bom João Bernardes ponderou a sua mulher que o mestre de Maria Isabel era o que elle nunca tinha visto em padres.

Teria vinte e oito annos, ao tempo, o capellão da marqueza de Montalvão. Bem apessoado, limpo no trajar, polido pelo trato da melhor sociedade, sisudo nas fallas, grave e composto com aquelle geito nobre que lhe dera o pulpito, padre Luiz fez-se, a um tempo, respeitar e estimar da discipula.

Do adiantamento da menina, em materia de escripta, leitura e doutrina, eram sensiveis os effeitos, e bem provada portanto a aptidão tanto do professor como da alumna.

Maria Isabel, que até então só conhecia em leitura a Primavera de Meninos, do Brochado, por conselho do novo mestre lia o Clarimundo, de João de Barros, e os Contos do Trancoso; e quanto a escripta, sahiu-se muito habilidosamente imitando os Exemplares de diversas sortes de lettras, de Manuel Barata.

Ora os paes, quando admiravam as rapidas sabensas da filha, graças á assiduidade do mestre, de certo não sentiam sobresaltos que lhes agorentassem a satisfação, lembrando-lhes que houvera no mundo uma discipula muito aproveitada, chamada Heloisa. Se na mente de padre Luiz chammejaram memorias historicas de Pedro Abeilard, e o demonio da imitação entrou com elle, é o que vamos deprehender do capitulo seguinte.

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