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O REGICIDA
VI

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Vimos, no capitulo IV, Domingos Leite e Roque da Cunha esquivarem-se rapidamente á presença do marquez de Gouvêa.

Ao separar-se, o allucinado escrivão murmurou sinistramente ao seu funesto amigo:

–Conto comtigo, Roque! Se algum de nós faltar ao que deve ao outro, esse seja infame!

–Seja!—assentiu o sicario de Pedro Barbosa, sacudindo-lhe a mão com a solemnidade cavalheirosa de um pacto de honra.

D'ali, de Pedroiços, onde o marquez residia, até Lisboa, Domingos Leite não desfitou as esporas dos ilhaes do cavallo. (Nota 10.ª)

Quando apeava no pateo de sua casa, vinha Maria Izabel, ao longo d'um corredor que conduzia ao jardim, com a menina no collo. A creancinha festejava o pai, batendo palmas, e exuberando de alegria no riso que tanto lhe brincava nos labios como nos olhos. Domingos fitou a mãe com torvo olhar, e apenas de relance olhou para a filha, como se o encaral-a de fito lhe traspassasse a alma.

–Olha a creancinha como se ri para ti!..—disse Maria Isabel entre meiga e atemorisada, já quando o marido galgava apressadamente as escadas.

Ella, apesar do susto que lhe arfava o coração, seguiu-o até á ante-camara. Ahi, Domingos Leite, voltando-se para a mulher, e repulsando as caricias da menina, disse-lhe com desabrimento:

–Largue a creança, e volte, que preciso fallar-lhe!

–Que modo de me tratar!—acudiu Maria—Tu que tens, Domingos? Que queres dizer-me? Podes fallar, que a tua filha não entende injurias, se m'as queres dizer…

A minha filha....—atalhou elle casquinando um froixo de riso por entre os dentes cerrados; e logo, arrugando a testa e alteando a cabeça com intimativa, bradou:

–Não me percebe!?

E, arrancando-lhe a filha do collo, sahiu com ella pendente dos braços, fechando a porta da ante-camara para que a mãe a não seguisse em gritos.

A creança, apesar do repellão, olhava para o pae com a mesma jovialidade. Domingos Leite, que parecia buscar a quem entregasse a menina, parou de repente, aconchegou-a do peito, beijou-a, lavou-a de lagrimas, e, soluçando no seio d'ella, queria talvez evitar que a mulher lhe ouvisse os gemidos. Deteve-se largo espaço assim, até que uma escrava, passando acaso, o surpresou n'aquelle lance. Como vexado da sua fraqueza, Leite Pereira entregou a menina á negra, e, enxugando o rosto, voltou ao quarto onde Maria Isabel estivera em rogos á Virgem, sem todavia saber que soccorros lhe cumpria pedir.

Entrou o marido, fechou-se por dentro, travou do pulso de Maria, empurrou-a para sobre um preguiceiro, sentou-se á beira d'ella, e disse:

–Porque treme? A innocencia não costuma assim tremer!… Porque treme?

–Pois eu vejo-te enfurecido sem saber que mal te fiz!… Sahiste de casa tão contente commigo…

–Quantas vezes a senhora escarneceu o contentamento com que eu sahia e entrava n'esta casa? Tinha alegria ou remorso de me enganar com juramentos sacrilegos, invocando o testemunho de Deus sobre a innocencia da sua vida de solteira?… Que responde?

–Voltas ás tuas suspeitas antigas…—balbuciou Maria Isabel, menos affoita do que tinha luctado n'aquella primeira noite.

–Não me irrite com referencias estupidas ás suspeitas antigas!—redarguiu o marido enfreando as arremettidas da raiva—Diga-me cá, barregan de clerigo, diga-me que conceito formou de mim, quando, depois de eu ter sahido d'aquella alcôva na primeira noite de meu deshonrado consorcio com uma manceba de padre Luiz da Silveira, voltei, passadas poucas horas, e me ajoelhei a seus pés, pedindo-lhe me perdoasse a injuria que fizera á sua puresa de menina solteira?

Maria Isabel soluçava uns gemidos que a estrangulavam. Elle arrancou-lhe as mãos do rosto, e bradou-lhe:

–Olhe para mim! Nada de momos! Responda: que juizo fez de mim n'este espaço de tres annos em que a tenho tratado com os extremos de noivo no primeiro dia da sua felicidade? Imaginou que eu fosse um vil, que se habituou á deshonra, a troco de vinte mil cruzados da sua infame mulher? Responda, que o seu silencio obriga-me a arrancar-lhe do coração a resposta!

–Não…

–Não… o quê?..

–Eu nunca te suppuz vil…

–Suppoz-me então enganado?…

–Enganado… não…

–Então, vil… uma das duas coisas… Em que ficamos: vil, conformado com a deshonra, ou enganado, isto é, persuadido de que tinha casado com uma mulher honesta?

–Meu Deus!—exclamou ella afflictissima—Matae-me, Senhor!—e punha os olhos sinceramente supplicantes na imagem de Jesus.

–Pois que suppunha?—insistiu Domingos Leite—Cuidou que a sua devassa mocidade seria segredo entre Deus e o padre? Nunca lhe gelaram terrores a alma, prevendo que um acaso viria explicar a rasão que eu tive para a injuriar poucas horas depois que lhe dei o meu nome honrado e a minha vida sem mancha? A senhora deve ter tido remorsos de mentir tão torpemente a um homem que tinha direito a encontrar esposa honrada! Bem sabia que eu não era marido que se vendesse, e trocasse a ignominia da pobresa pela ignominia de uma manceba de clerigo com alguns mil cruzados. Quem a privou de me dizer, quando fallou a só commigo; que na sua vida havia desaires que a prohibiam de amar um homem de bem? Recorde-se… Não lhe disse eu que, apesar de lhe querer com toda a alma d'um primeiro amor, como não acreditava na efficacia dos meus meritos, reflectisse antes de me acceitar como marido, e não viesse para os meus braços com o mais pequeno affecto sacrificado á vontade de seus paes?

Maria Isabel prostrou-se aos pés do marido, exclamando:

–Foi verdade…

–Foi verdade!… e a senhora mentiu-me, cobriu-me de lama, fez-me o successor indissoluvel do padre!.. E que sou eu então diante de si e diante do mundo? A irrisão dos meus inimigos, e a compaixão aviltadora dos meus amigos!…

E, levantando-se de golpe, sacudiu phreneticamente a mulher, que lhe abraçava os joelhos, e, dados alguns passos, parou em frente d'ella, cruzou os braços, e rouquejou convulsamente:

–Ó miseravel! pôde assim, formosa e rica, aos quatorze ou quinze annos, resvalar á voragem das loureiras secretas por entre os braços d'um padre! Amou-o? diga, mulher impudica, amou-o?

–Pelas chagas de Jesus Christo!—volveu ella, ajoelhando-se-lhe novamente—Eu sei que vou morrer… Se me tu não matares, heide eu matar-me!. Ai! minha querida filha!… Ó Domingos, não desampares aquella creancinha que é tua filha!…

–Matar-se!—replicou sarcasticamente—As mulheres na sua condição não se matam, porque… estão mortas… Quem teve a coragem de se deshonrar perdeu a força moral que dá a rehabilitação…

–Eu era uma innocente…—soluçou Maria Isabel—Não sabia o que era deshonra… Passára a minha infancia entre meus paes. Minha mãe era tão virtuosa que nem me precaveu contra a maldade do mundo…

E, como os arrancos lhe embargassem a voz, o marido, que parecia ferozmente interessado na confidencia, disse:

–Continue… Vae-me contar por miudos a historia da sua… queda… Conte.

–Oh!.. pelo divino amor de Deus!—clamou ella—que queres saber d'esta desgraçada?… Eu só soube que estava perdida, quando te amei, porque então senti que era indigna do teu amor!..

–E não obstante… diga o mais… Conhecendo-se indigna, fez-me descer na rampa da infamia para me nivelar com a senhora!..

–Pois bem!—bradou ella com vehemente resolução—Esmague-me, que eu sou punida, e o senhor vingado!

–Heide reflectir…—retrocou Domingos Leite serenamente—Nem todas as mulheres são dignas de morrerem ás mãos de homens honrados. Entretanto, dê-me o infernal praser de lhe ouvir contar a historia dos seus primeiros amores.

E, dizendo, sentou-se, indicando-lhe com um tregeito de cabeça que se assentasse a seu lado. Ella hesitou; mas um arremêsso de impaciencia, e duas fortes punhadas que elle deu no espaldar do preguiceiro, incutiram no animo de Maria Isabel a suspeita de não sahir com vida de tamanha angustia.

Sentou-se ella, a tremer, com as mãos cruzadas sobre o peito e os olhos piedosos fitos no perfil do marido.

–Conte lá,—disse elle com os cotovellos apoiados nas pernas, a face entre as mãos, e os olhos postos no pavimento—conte desde o principio essa historia… Como foi que o padre lhe fez saber que a desejava, e como foi que a menina de quinze annos acceitou as doutrinas do mestre.

O dialogo seguido a esta intimação demorou-se meia hora, que devia figurar-se um dia de tormentos a Maria Isabel: tão dilacerantes cortavam as perguntas no pudor d'aquella mulher.

Porém, finalmente, no rosto de Domingos Leite Pereira já vislumbravam sentimentos de compaixão, porque os do rancor tinham posto a pontaria em outro alvo.

As ultimas palavras d'elle, proferidas com gravidade, mas sem tom de ira, foram estas:

–D'hora em diante eu continuo a ser seu marido perante o mundo; mas diante da senhora sou um estranho. Emquanto a mãe de minha filha assim quizer viver commigo, essa creança, que eu adoro, será sua tambem; mas, se este viver lhe não quadrar, eu sahirei com minha filha; e farei que ella nunca saiba quem foi sua mãe. Esta sentença não condemna o delicto da sua impuresa; condemna o enorme crime de me ter acceitado como marido. Concorda na minha proposta?

–Sim… concordo… Eu viverei como tua criada, se assim o quizeres; mas não me tires a minha filha.

–Retire esse tratamento do tu—voltou o marido com sobrecenho.—Nem uma palavra, nem um gesto que indique a maior ou menor alliança de duas almas que se estimaram, ou tredamente se dissimularam… Esta casa é bastante grande. Podem viver n'ella duas pessoas sem se encontrarem. A senhora é rica: administre o que tem: eu não tenho nada que vêr com os seus bens de fortuna. Ficamos entendidos. Qualquer infracção d'este pacto, estalará em tempestade sem bonança.

O Regicida

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