Читать книгу Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto - Dinis Júlio - Страница 10

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—É a Biblia, os Lusiadas e o Paulo e Virginia. Já sei. É o costume—disse emfim Carlos, levantando-se, já impaciente e procurando subtrahir-se á torrente de perguntas, respostas, apreciações criticas, cotejos e citações, que saíam, em tom categorico, da palavrosa bôca do vizinho.

—Não ha tal—respondeu este, porém, tomando-lhe o braço e levantando-se igualmente.—Esses são a formula dos tres grandes sentimentos da alma—o da religião, da patria e do amor;—bem o sei; mas confesso-lhe, o que, por temperamento, mais me seduz é a pintura social e a analyse das paixões, e só tres homens as fizeram bem: Lesage, Richardson e Rabelais. A creação de Pantagruel e Gargantua é famosa!

—Quem dizes tu que tem uma garganta famosa?—exclamou, voltando-se, um dilettante, por traz de cuja cadeira os dois passavam n'aquelle momento..—Fallas de Ponti? Oh! que mulher! Que vocalisação! Que sentimento!

—Ahi tornas tu com a Ponti—disse um velho rapaz, pronunciado adversario da prima-donna e um da numerosa seita, que passa metade do anno a suspirar pelo theatro lyrico e outra a dizer systematicamente mal das companhias escripturadas.—És capaz de sustentar que vae bem na Norma. Se ouvissem a Rossi-Cassi…

—A Rossi-Cassi! Oh! por quem és, desalmado! Não sacudas reputações cobertas pelo pó do tempo! Pff! Que poeira! Vive da actualidade.

—Fallar na Rossi com esse enthusiasmo de conhecedor equivale a um assento de baptismo feito pelo menos em 1800.

—Nego—bradou embespinhado o velho rapaz.

Parce sepultis—disse o padre.

Lascia la donna in pace—trauteou outro dilettante.

Carlos e o jornalista tinham passado adiante. O jornalista ia já a fallar em librettos de operas, em Felice Romani, em Manzoni, no Ei fu! do Cinque maggio… etc., etc., etc…

Carlos foi retido agora pela mão de um rapaz, junto do qual tinham chegado.

—Aqui está quem nos póde informar—dizia o que o segurava.—Ó Carlos, dize-nos uma cousa: conheces a Laura Viegas?

—Não—respondeu Carlos, distrahido.

—Conheces por força. A filha do Viegas, d'aquelle brazileiro, que comprou a quinta do Pedroso.

—E então?

—Mas conheces? Bem. Que dote achas tu que terá aquella rapariga?

Carlos encolheu os hombros, significando a sua ignorancia e preparava-se já para seguir para diante, quando outro, a quem igualmente preoccupava esta sciencia dos dotes, o segurou por sua vez.

—Não tem que ver; o Viegas não lhe póde dar mais de nove contos.

—Triplique, e não lhe faz favor nenhum—disse, do alto da mesa, o padre, conseguindo passar esta nota por meio de uma briga travada entre os mais disparatados assumptos.

—Ora ahi tens!—disseram os disputantes, aceitando o auxilio, como de valia provada.

O padre limpava tranquillamente os beiços e enchia um calix de malvasia.

—Então diz o padre Manoel que o Viegas…

—O Viegas tem pelo menos…—dizia de lá o padre, elevando o calix entre os olhos e a luz, e revendo-se na limpidez do licor; e antes de completar a phrase, levou-o á bôca e despejou-o de um trago.

Depois continuou:

—Tem pelo menos … pelo menos…

Aqui, enxugou os labios e emfim concluiu:

—Sessenta e sete contos de réis.

—Ora!

Carlos passára para o outro lado da mesa, seguido ainda do jornalista, que lhe ía dizendo:

—É a questão do dia—O dinheiro—A litteratura resente-se…

E d'aqui passou a fallar de Alexandre Dumas, filho, de Emile Augier, de

Ponsard … etc., etc…

—Deixa-te d'isso;—dizia no ponto da sala a que os dois chegavam, um rapaz imberbe e ainda em estudos de preparatorios—a Emilia Victorina é outra qualidade de mulher. Ainda hontem, em casa do barão de Tavares, me encontrei com ella. Trajava de Maria Stuart. Era uma perfeita rainha, uma mulher distincta, esplendida.

—Foi, foi; já não é. Descobriam-se-lhe os primeiros estragos, quando em ti appareciam os primeiros dentes.

—A idade…—dizia outro.

—Ora a idade! a idade! A mulher tem sempre a idade que parece ter.

—Concordo; mas, depois dos quarenta e tantos annos, a mulher parece ter a idade que tem.

—Barbaro! Ó Carlos, que dizes tu?

—Digo que sim—respondeu Carlos, que nem attendera á discussão.

—Está esta creança do Duarte a affirmar que prefere a Emilia Victorina á Marianna Prazeres.

—E prefiro, repito.

—Não sejas impio. Quem não acha admiravel aquella bonita cabeça da

Marianna?

—E a mão? Aquella mão comprida e delgada, onde as veias se desenham em azul; a verdadeira mão artistica, aristocratica.

—No assumpto «mãos», peço licença para citar a primeira…—das provincias do Norte pelo menos, a da Clementina Rialva—lembrou um individuo, a quem a conversa arrancou a uma quasi modorra.

—Apoiado!—entoaram muitas vozes.

—A proposito da Clementina Rialva—exclamou uma chronica viva de boatos do dia—sabem que o Chico da Lousã, sempre a tira por justiça?

—Devéras?!

—Asseverou-m'o hontem o Brito, que, como sabem, é todo d'elle.

—Terrivel catastrophe!

—Deixa lá. O Chico o mais que quer é empregar-se. Ora o Rialva, pae, tem influencia e, feitas as pazes do estylo…

—Sim, as pazes sentimentaes dos quintos actos dos dramas.

—Que influencia tem o Rialva?—perguntou, encolhendo os hombros, um mallogrado aspirante á eleição popular.

—Não. Está feito! O cunhado é empregado na secretaria do reino…

—E o ministerio deve-lhe serviços.

—Estás enganado. Foi moda fallar-se ahi muito nos serviços eleitoraes do Rialva; pois eu digo-vos que elle nem quatro votos arranjou ao Roboredo.

—Como não arranjou? Ó menino! Pois quem levou lá o Roboredo?

—Quem levou lá o Roboredo, foi…

—Eu te digo, Pires; elle teve em tempo alguma influencia no ministerio, mas depois de um certo emprego na alfandega que pediu para o sobrinho, e que não obteve, abandonou a regeneração…

—Que sobrinho? O que nós em Coimbra chamavamos o gigante Polyphemo? Oh que alarve!

—Sempre foi um homem, que teve a habilidade de concluir o curso, e que nunca se pôde conformar com a existencia dos antipodas. Dizia elle que até lhe fazia mal pensar na posição incommoda, em que haviam de viver esses pobres diabos, se existissem…

—E um dia em que elle…

Unisona e estrepitosa gargalhada, partindo de um grupo, que estava já em pé no outro extremo da sala, interrompeu a historia.

Todas as attenções e todos os olhares convergiram para alli.

Eram quatro os rapazes que riam e riam até lhes caírem as lagrimas dos olhos. Junto d'estes, o quinto mostrava, em certo ar constrangido, poucas disposições para expansão igual.

—É impagavel este homem!—dizia um dos que riam.

—Que foi? que foi?—perguntavam os que não faziam parte do grupo, rindo já com anticipação tambem.

O dos ares constrangidos respondeu:

—Não façam caso; são doudos.

—Que foi? digam—insistiam todos na sala.

—É aqui o Claudio Pires, que fez uma das suas descobertas.

—Eu disse…—tentou este interromper.

—Silencio!—bradaram muitos a um tempo.

—O Claudio!—continuou um dos que mais ria—ouvindo aqui o Lourenço fallar com elogio em um systema de comportas que viu no estrangeiro, observou-nos que havia de se dar bem por lá, porisso que nada se lhe accommoda melhor com o estomago, depois de jantar, do que as comportas.

—Comportas de marmellos, ou assim uma cousa, é o que eu disse.

A justificação foi suffocada por um côro geral de gargalhadas.

—O barbaro era capaz de roer os diques dos Paizes Baixos e sacrificar a

Hollanda a uma geral inundação.

—Que terrivel capricho estomacal!

—Vejam do que está dependente a sorte dos imperios! Esta escapou a

Volney!

E os ditos succediam-se, e cruzavam-se os epigrammas, e a confusão subia de ponto com isto.

Até que emfim uma voz dominou o tumulto.

—Reparem que são onze horas e que é tempo de fazermos a nossa entrada solemne nos bailes de mascaras.

Era o velho rapaz que fallava, e erguendo-se da mesa, exclamou, enchendo o calix:

—Ás nossas conquistas d'esta noite!

—Apoiado!—disseram todos, imitando-o.—Ás nossas conquistas.

E seguiu-se tal arrastar de cadeiras, que parecia uma tempestade.

Passados alguns minutos, desembocavam do portal da Aguia os joviaes companheiros, depois de um jantar, que durara oito horas.

Os passos de muitos resentiam-se do emprego d'esta terça parte do dia.

Um dos convivas, que estivera até alli quasi sempre silencioso, tomou então o braço de Carlos e, apoiado n'elle, caminhou, com movimentos mal seguros, por o largo da Batalha, dizendo em tom confidencial e quasi commovido, estas palavras, que ia entremeiando com prolongadas aspirações no tubo do volumoso cachimbo.

—Carlos, tu és meu amigo; talvez o único amigo que eu tenho… Por isso vou confiar de ti a ultima das impressões que eu revelei em verso… Eu gósto de fallar d'isto só com quem me entenda. Os poetas precisam de um coração para ecco. Almas de sensitiva…

Apesar da intimidade, em que ia feita a confidencia, muitos dos que a ouviram acercaram-se d'elle, porque tinha certa nomeada o engenho poetico e improvisador do que fallava assim.

Alguns porém já tinham travado conhecimento com varias mascaras desgarradas, que encontravam caminho do theatro. Dois seguiam cantando a plenos pulmões o duetto da Lucia:

O' sole più rapido a sorger t'apresta

O poeta confidencial principiou a recitar com certo enthusiasmo quasi selvagem, o seguinte hymno ao tabaco, o qual, devemos confessar, não era muito para produzir ecco nos corações:

No centro dos circulos

De nuvens de fumo,

Um deus me presumo,

Um deus sobre o altar!

Nem d'outros thuribulos

Me apraz tanto o incenso,

Como o d'este immenso

Cachimbo exemplar!

Em divans esplendidos,

Cruzadas as pernas,

Fuma, horas eternas,

O ardente Sultão.

Subindo-lhe ao cerebro

O magico aroma,

Esquece Mafoma,

Houris e Alcorão.

Longe, oh! longe o opio,

Que os sonhos deleita

Da misera seita

Dos Theriakis!

Horror ao narcotico

Que vem das papoulas!

E ao que arde em caçoulas,

No altar do Caciz!

Que a raça gentilica

Das zonas ardentes

Consuma as sementes

Do arabio café.

Despejem-se as chavenas

Da atroz beberagem

Da côr do selvagem

Da adusta Guiné.

E a tal folha exotica,

Delicias da China,

Por nossa má sina

Trazida de lá,

Servida em familia,

N'um morno hydro-ínfuso?…

Anathema ao uso

Das folhas do chá!

Nem tu, ó alcoolico

Humor dos lagares,

Terás meus cantares,

Meus hymnos terás.

Embora das amphoras

Vasado nas taças,

Aos outros tu faças

A lingua loquaz.

Cerveja britannica,

De furor espuma!

De cousa nenhuma

Me podes servir.

Quando ouço do lupulo

Gabarem proezas,

Ás bôcas inglezas,

Desato-me a rir.

Nem venha da camphora

Prégar maravilhas

O das cigarrilhas

Famoso inventor.

Raspail é scismatico

E eu sou orthodoxo,

O seu paradoxo

Não me ha de elle impôr.

Meu canto é da America,

Paiz do tabaco,

Perante o qual Baccho

Seu sceptro partiu.

A Europa, Asia, e Africa

E a terra hoje toda

Este heroe da moda

De fumo cobriu.

Até na Laponia,

Da gente pequena,

Se fuma; e no Sena,

No Tibre e no Pó,

No Volga e no Vistula,

No Tejo e no Douro;

Que immenso thesouro

Se deve a Nicot!

Meus áridos labios

Mais fumo inda aspirem

Que os parvos suspirem

Por beijos, aos mil.

Não quero outros osculos,

Não quero outra amante.

Qual mais doudejante

Que o fumo subtil?

Tornadas Vesuvios,

As bôcas fumegam.

De nuvens que cegam

Vomitam montões.

Fumar! Oh delicias!

Prazer de Nababo!

E leve o diabo

Do mundo as paixões!

—Bravo!—disseram quantos o escutavam, devéras enthusiasmados com a musa do recitador.

O proprio Carlos sorriu, menos preoccupado já. Principiava a dissipar-se-lhe a nuvem.

—Quem compra uma senha?!

—S. João! quem quer?

—Doze vintens, meus amos, doze vintens.

Com estes analogos pregões caiu um bando de negociantes de senhas sobre os recem-chegados da Aguia, que trataram de obter bilhetes da melhor maneira possivel. Cêdo entravam no salão do theatro, onde já centenares de pessoas morriam de calor, de asphyxia e de tédio; e eram trilhadas, apertadas, esmagadas quasi, aos encontrões dos mascaras, arrebatados n'um galope vertiginoso.

O leitor, que todos os annos costuma saturar-se de fastio alli tambem, com boa vontade me dispensará de o constranger a repetir mais outra vez a operação, recordando essas horas de insipidez, a que se sujeita, sob pretexto de gosar o carnaval no Porto, e para fazer o que todos fazem;—uma das mais poderosas razões dos nossos actos na vida.

Pedindo venia por tanto tempo o haver demorado, em diversão fóra dos seus habitos, provavelmente mais pacificos—o que fiz só por a necessidade que tinha de mostrar em acção o caracter do nosso heroe e exemplificar o seu systema de vida e sua companhia habitual—concordo em que nos retiremos e vamos a scenas menos agitadas do que estas, que nem consolam, nem divertem.

Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto

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