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NA AGUIA D'OURO

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Era uma das ultimas noites do carnaval de 1855.

Havia menos estrellas no céo, do que mascaras nas ruas. Fevereiro, esse mez inconstante como uma mulher nervosa, estava nos seus momentos de mau humor; mas, embora; o folgazão entrudo ria-se de taes severidades e dançava ao som do vento e da chuva, e sob o docel de nuvens negras que se levantavam do sul. Graças á cheia do Douro, a cidade baixa podia bem prestar-se n'aquella época a uma parodia do carnaval veneziano.

Á porta dos theatros apinhava-se a multidão; os altos brados dos vendedores de senhas e os agudos falsetes dos mascarados atordoavam os ouvidos. Dos cabides dos guarda-roupas, provisoriamente armados nas lojas circumvizinhas aos principaes salões de baile, pendiam vestuarios correspondentes a todas as épocas e a todas as nações, e alguns, aos quaes não era possivel assignar época, nação, classe ou condição social conhecida.

Numerosos grupos de espectadores paravam diante das exposições de mascaras á venda e tornavam o transito n'aquellas ruas quasi impraticavel. Era uma fascinação analoga á que produz um conto de Hoffmann em imaginações excitaveis, e exercida n'elles por tantas mascaras enfileiradas, cuja diversidade comica de expressão e de gesto lembrava um enxame de cabeças mephistophelicas, surgindo á luz para se rirem das loucuras da humanidade.

Estes absortos contempladores a cada passo vinham a si, desagradavelmente acordados pelas pragas energicas dos conductores de carruagens, prestes a atropellal-os, ou pela interjeição pouco harmoniosa dos cadeirinhas obrigados por causa d'elles a irregularidades no andamento da sua grave e benefica tarefa. Só então, e ainda a custo, se dispersavam, para, alguns passos mais adiante, se agglomerarem de novo.

Se é licito comparar as grandes ás pequenas cousas, veremos n'estes a imagem de todos os inoffensivos scismadores d'este mundo, a quem sempre cruelmente vem despertar o embate dos afadigados em emprezas positivas.

A animação era geral na cidade.

Todos corriam com ancia… a enfastiarem-se, fingindo que se divertiam.

Alguma cousa havia tambem na Aguia d'Ouro, a anciã das nossas casas de pasto, a velha confidente de quasi todos os segredos politicos, particulares e artisticos d'esta terra; alguma cousa havia n'essa modesta casa amarella do largo da Batalha, que desviava para lá os olhares de quem passava.

Desde as tres horas da tarde que o tinir dos crystaes e das porcellanas, o estalar das garrafas desarrolhadas, o estrepito das gargalhadas, das vozerias tumultuosas, e dos hurrahs ensurdecedores rompiam, como uma torrente, do acanhado portal d'aquelle bem conhecido edificio; e por muito tempo essa torrente, á maneira do que succede com a das aguas dos rios caudalosos ao desembocarem no mar, conservava-se distincta ainda, através do grande rumor, que enchia as ruas.

Os criados subiam e desciam azafamados as escadas, cruzavam-se ou abalroavam-se nos corredores, hesitavam perplexos entre ordens contradictorias, vinham apressar os collegas na cozinha ou entretinham com promessas os impacientes convivas da sala.

No entretanto o modesto e solitario freguez, a quem uma velleidade estomacal convidára a ir ceiar a humilde costelleta, principal trophéo culinario da casa, era pouco attendido e, farto de esperar, retirava-se sorrateiro e cabisbaixo.

Sob apparencias de modestia, a Aguia d'Ouro parecia d'esta vez aureolada de não sei que magestade, condigna do seu emblema.

A luz escassa de um lampeão da rua, batendo sobre a ave de Jupiter, que corôa a taboleta do estabelecimento, parecia dar-lhe reflexos, mais brilhantes do que os do costume.

Que era noite solemne para a casa, aquella casa que tem já dado que entender a ministerios e a emprezarios lyricos, não podia haver duvida.

Cá em baixo, os serventes do café fallavam a meia voz e mostravam no olhar certo ar de preoccupação, certa importancia no gesto, como se effectivamente se estivesse passando cousa de momento no andar de cima.

O café contrastava porém com a animação que se percebia nas salas da hospedaria.

Estavam desertos os logares d'aquella abafada quadra, em cujas paredes ainda então existiam, e ameaçavam perpetuar-se, reproducções, em lona, dos combates que restabeleceram a independencia da Grecia; a luz amortecida dos candieiros não dissipava as sombras dos recantos.

O marcador do bilhar cabeceava com somno.

Os bailes de mascaras tinham derivado d'alli até os homens politicos. N'aquella noite as discussões sobre a guerra da Crimeia, então na ordem do dia, travavam-se ao som das walsas e das mazurkas, nos theatros.

Não é pois n'este logar, agora melancolico e quasi lugubre, que eu pretendo demorar o leitor.

Subamos, e, por entre os criados que encontrarmos nas escadas e corredores, penetremos na sala d'onde provém o ruido de festa que já noticiamos.

O leitor por certo conhece o recintho. As suas particularidades architectonicas não requerem tambem as fadigas da descripção.

É um jantar de rapazes a festa, a que viemos assistir.

Chegamos, porém, tarde.

O fumo dos charutos ennevoa a sala e empana o fulgor das luzes; o jantar vae no fim, a desordem portanto no ponto culminante.

Ha já calices partidos, vinhos preciosos extravasados, convivas em todas as posições, algumas indescriptiveis.

A vozeria é atordoadora. A confusão póde dar uma ideia de Babel.

Tratam-se simultaneamente todos os assumptos; as transições fazem-se com uma rapidez, que surprende e embaraça os proprios interlocutores; attenção, que se desvie um segundo, é attenção perdida; não encontra depois já o dialogo onde o deixou; ás vezes a conversa generalisa-se; momentos depois, distribue-se em especialidades por diversos grupos; mais tarde, generalisa-se de novo; em certas occasiões, todas as bôcas fallam, cada um se escuta a si; n'outras algum orador consegue por instantes fazer-se escutar de todos, até que um áparte, um incidente, um gesto, restabelece a independencia primitiva. Dão-se tambem verdadeiros encruzamentos de conversas; o dos pés da mesa responde ao dito que ouve ao da cabeceira, emquanto que os intermedios se entreteem de outros objectos; é um baralhar de palavras, em que a custo se tira a limpo a expressão do pensamento.

Alli falla-se em litteratura e ouve-se, de quando em quando, pronunciar o nome de algum romancista ou poeta de vulto ou da moda; perto, discute-se politica e julgam-se n'um momento, e com a mais desenganada critica, as primeiras capacidades financeiras, diplomaticas e militares da época; conversam mais longe de aventuras de amor dois rapazes fronteiros e, atravessando-se diagonalmente com tão agradavel prática, o dialogo de outros dois exerce-se sobre modas de casacos; um grupo exalta-se, tratando assumptos de theatro lyrico e premeditando pateadas e ovações; juntos d'este, dois enthusiastas de hippicultura fazem a historia pittoresca de compras, vendas e manhas de cavallos. A propria philosophia allemã fornece alimento á animação dos discursos; e tudo isto interrompido de gargalhadas, de cantigas, de juras e exclamações em todas as linguas.

Seria igualmente difficil determinar o elemento commum dos individuos reunidos alli.

Ha-os das mais diversas condições; desde o joven padre, que põe a tractos a sciencia e a paciencia dos cabelleireiros para disfarçar, quanto for possivel, os vestigios da tonsura, até o official do exercito, todo possuido das branduras civilisadoras do seculo e para quem a mesma caça é occupação barbara e afflictiva da sensibilidade; ha-os das mais diversas idades, desde o collegial de hontem, ainda imberbe e embriagado com as primeiras commoções da vida de adolescente, até o velho, que, ingenuamente persuadido de que o tempo se esqueceu de lhe ir contando os annos, deixa passar a geração, contemporanea sua, e insiste em viver, entre rapazes, vida de rapaz; ha-os em diversas circumstancias monetarias, desde o capitalista, que vê correr descuidado a fonte dos seus rendimentos, com tranquillisadora confiança no inesgotavel manancial que a alimenta até á classe dos encostados, verdadeiros martyres da moda, cuja vacuidade de bolsa lhes constrange a imaginação a fabricar systemas quotidianos para os manter, embora á custa de humiliações n'aquella atmosphera, fóra da qual já não sabem respirar; ha-os de todos os graus de intelligencia, desde o escriptor applaudido e que, sem favor ou com elle, conquistou reputação nas lettras, até o analphabeto, cujas sandices são saudadas com gargalhadas que ninguem procura reprimir na presença d'elle proprio.

Finalmente, esta reunião de elementos, debaixo de todos os pontos de vista tão heterogeneos, é uma porção da sociedade, que pretenciosamente se decora com o titulo de elegante e para pertencer á qual é difficil fazer resenha dos requisitos necessarios; pois que nem a propria elegancia—na verdadeira accepção do termo—é dote generico dos seus membros.

O motivo do jantar… O jantar não tinha motivo e era esta outra circumstancia que o caracterisava. Um jantar póde muito bem ser motivo de si mesmo: sendo possivel d'elle dizer-se de alguma sorte, em linguagem philosophica, que tem em si a «razão sufficiente da sua existencia».

Na companhia encontraremos alguem já conhecido nosso.

E como, até agora, só tenho apresentado ao leitor tres pessoas, não será prova de grande perspicacia, da sua parte, adivinhar qual d'essas tres será.

Effectivamente é Carlos Whitestone um dos convivas e não dos mais sisudos.

Ficava proximo da cabeceira da mesa. Carlos era quem mais vezes conseguira encaminhar a um fito unico todas as attenções e modificar a assembleia a ponto de se lhe poder referir o conticuere omnes da Eneida;—verdade é que não tão completamente o fizera como o heroe troyano, pois nem tinha destruição de Ilion a descrever, nem a paciencia dos tyrios a escutal-o.

Carlos Whitestone passava por estar muito em dia com os boatos comicos e escandalosos, de que sempre e em toda a parte é tão sôfrego o paladar social.

Por isso o escutavam todos com prazer.

Sinto que não chegassemos a tempo de ouvir o principio da narração, que elle levava em meio.

—O nosso homem—dizia Carlos, accendendo um charuto no de um jornalista; seu vizinho—apesar do aviso que recebera, resolveu na melhor das boas fés…

—Então é a boa fé dos maridos—commentou a meia voz um padre, que, atrazado nas operações gastronomicas, investia com denodo contra um tymbale de pombos, ainda miraculosamente intacto, e acrescentou:—Não sei de outra, que a exceda.

—Regula por essa a dos amantes ingenuos—acudiu Carlos ao commentario.

—Mas é de menos consequencias—respondeu o outro.

—Silencio, padre Manoel!—bradaram algumas vozes—Vamos lá, Carlos; e depois?

—Depois—proseguiu Carlos—enfeitou-se, perfumou-se, aparamentou-se, frisou-se…

—E tingiu-se; que não esqueça—acrescentou do fim da mesa uma voz.

—E tingiu-se; sim—disse Carlos—e feitos todos estes aprestos, caminhou para a entrevista.

—E como se realisava essa entrevista?—perguntou um militar.

—De uma maneira muito singular;—proseguiu Carlos—o conselheiro, todas as noites, depois de pousar na relva o chapéo, a bengala e as luvas, trepava como um eschilo, pela faia que fica junto da varanda e…

—Ora! Impossivel!—exclamaram alguns, rindo.

—Palavra!

—Isso é contra todas as leis da mechanica, aquelle bojo…—principiou a dizer um estudante da Universidade.

—Pelo contrario;—atalhou outro—é exactamente o bojo que o faz subir.

Lembra-te do principio de Archimedes. Os aereostatos…

A quéda do conselheiro seria uma bella experiencia para um curso de physica…

—Divertida…—annotou uma voz.

—Como exemplificando as leis da quéda dos graves… um tão grave personagem—concluiu o primeiro.

Estes sujeitos guindavam o calembourg ao supremo grau da escala do espirito.

—Então? deixem fallar Carlos; e depois?—disseram alguns curiosos.

Carlos continuou:

—N'aquella noite, porém, estava reservada ao conselheiro a mais triste surpreza; ao entrar na espessura da folhagem, deu de cara com o outro.

—Com o Victor?

—Exactamente, com o Victor. Imaginem agora vocês o soberbo dialogo, que se seguiu ao encontro.

—Devia ser preciosissimo! Que harmonioso certame de rouxinoes!

—O conselheiro principiou talvez por dizer-lhe:

Tytire, tu patulæ recubans sub tegmine fagi Formosam resonare doces Amaryllida silvas

—Protesto contra o recubans. A posição de Victor era menos commoda.

Mutatis mutandis, já se sabe.

—Ó padre Manoel, dize-nos como a tua latinidade exprimiria a posição em que estava o Victor.

—Não interrogues o padre. Não vês que elle está, como os antigos agoureiros, consultando as entranhas das aves? respeitemos a solemnidade do acto.

—Mas as consequencias, Carlos, quaes foram as consequencias?

—As consequencias foram as que vocês já sabem, o conselheiro…

N'este ponto, a narração de Carlos foi interrompida por o criado da hospedaria, que se aproximou d'elle para lhe entregar a carta.

—Com a sua permissão, meus senhores,—disse Carlos, preparando-se para abril-a.

—Bravo!—exclamou o jornalista—temos carta de algum Ecco impaciente.

E un foglio a me lasció—cantarolou um dilettante, voltando as costas da cadeira para a mesa.

—É a proposta de capitulação de alguma Troya sitiada—disse o militar.

—Cheira-me a fumo de gambiarra e ribalda; temos intriga de camarim.

—Antevejo então uma descarga de bilhetes de beneficio, a que poucos escaparemos.

Carlos sorria, ao abrir a carta.

—Ó Carlos, olha que são perigosos para as digestões os sobresaltos de coração—notou o estudante de medicina.

—Socega; é um excitante a que já estou habituado—respondeu Carlos.

De repente tornou-se serio.

—Má nova!—disseram alguns.

—O caso complica-se.

—As exigencias da beneficiada sobem até o acrostico, querem ver?

—Não é isso; aposto que mais outro conselheiro trepa uma segunda faia, e d'esta vez vinga o collega, na pessoa de Carlos.

Carlos não os escutava já. Ergueu-se, aproximou-se do aparador, e escreveu no verso do bilhete, que recebeu, algumas palavras á pressa.

Emquanto fazia isto, os companheiros do festim, fingindo dictar-lhe a resposta, diziam:

—Meu anjo, se no céo…

—Vôo nas azas do amor…

—Qual outro Leandro, eu, naufrago…

—Minha Heloïsa; se o infortunio de Abeillard…

—Julieta, quando o rouxinol…

Carlos voltou para a mesa, depois de fechar a carta e de entregal-a ao criado.

Esforçava-se por manter nos labios o sorriso; mas o esforço era visivel, circumstancia que, como sempre, lhe annullava o effeito.

—Que é isso?—disse o militar, que lhe ficava defronte—respiraste a peste n'essa carta?

—O nosso Manrique terá de correr a salvar a sua Leonora das garras de um conde de Luna?—disse o dilettante.

—Ulysses voltou aos lares domesticos; o que vale por um mandado de despejo aos…

—Um capellista, menos attencioso, insiste pelo prompto pagamento de uma avultada conta de enfeites.

—Um dominó leva a sua ingratidão até…

—Já vão numerosas as hypotheses—disse Carlos, enchendo um calix de vinho e procurando conservar ás suas palavras o tom jovial do principio da noite; depois acrescentou:—Este bilhete era para me recordar…

—Ai! recordações!…

Te souviens tu, de même, De nos transports brulants

—Para me recordar que era hoje o dia dos meus annos—concluiu Carlos.

—Devéras!

—É o que eu te digo.

Quan tu m'as dit: «je t'aime!» J'avais alors vingt ans.

—E estavas calado com isso.

—Se o ignorava! Quando o soubesse a tempo, não me teriam aqui.

—Então? Receber-nos-hias em tua casa?

—Tambem não. Costumo consagrar estes dias exclusivamente á vida de familia.

—Oh! oh! sentimentalismo!

—Britannico! Pés no fender, punch na mesa, Times na mão. E de quando em quando um monossyllabo rosnado, ou uma interjeição, que produz na garganta o effeito do acido prussico. Delicioso!

—Deve ser um céo aberto!

—Mas céo inglez, um pouco turvo de nevoeiros.

—E de carvão de pedra.

—Não esquecendo uma paraphrase de algum texto biblico.

—E umas variações vocaes sobre motivos do God save.

Carlos sorriu, respondendo:

—Creiam-me, de vez em quando, tem seus prazeres tambem um dia passado assim.

Eu quero acreditar que, dos circumstantes, muitos, se não todos, sentiam a verdade do que acabára de dizer Carlos, e tambem possuiam faculdades para apreciar estes intimos gosos de familia; mas envergonhavam-se de fazer tão claro, e em plena ceia de carnaval, tal confissão. Que querem? não está em moda trazer o coração á vista. É costume tratar, como ridiculas, todas as manifestações de sentimento; consideram-se como pequenas fraquezas que com milhares de outras, só se devem confiar na discrição das quatro paredes do nosso quarto.

Carlos porém não sabia dissimular; com verdadeira convicção e franca ingenuidade, dissera aquellas palavras, que lhe valeram allusões epigrammaticas ao que elles chamavam «respeitabilissima tendencia para pae de familias».

O bilhete, que motivára esta scena e que parecia haver impressionado devéras Carlos, era da irmã e dizia apenas:

«Charles.

É hoje o dia 19 de fevereiro. Fazes vinte annos. Julguei que seria desnecessario pedir-te para nos dares o prazer de te vermos comnosco. O pae esperava-te. Adeus.

Jenny

A este pequeno bilhete, Carlos respondeu apenas:

«Jenny.

Confiaste de mais na minha memoria; acredita que me esqueci. Não me succederia o mesmo de certo, se, em vez do meu, fosse o dia do anniversario de qualquer de vós. Fazes-me a justiça d'essa supposição, não é verdade? Agora não posso valer-lhe. Obriguei-me a seguir até o fim companheiros tão doudos como eu; e, quando os deixasse, não sei se ainda iria em estado de poder, sem profanação, sentar-me ao teu lado, á santa e patriarchal mesa de familia. Bem vês que nem vale a pena festejar o dia, em que veio ao mundo mais uma cabeça leve. Ámanhã te pedirei perdão… Como me lembrei tambem de fazer annos na segunda-feira de entrudo?!

Teu mau irmão

Charles

A final, após algumas explicações mais, um dos convivas levantou-se e empunhando o calix:

—Meus senhores, proponho que saudemos o anniversario de Carlos—bradou, em tom de brinde.

—Apoiado—responderam todos, imitando-o.

—Carlos—continuou o primeiro—bebo aos teus vinte annos! Contes pelos trezentos e sessenta e cinco dias, que se vão seguir ao de hoje, as paixões que fizeres nascer; e possas tu…

—Não se admittem longos speeches; olá! Bebamos!—disse uma voz.

—É sempre mais expressivo o gole que entra, do que a phrase que sáe—acrescentou outra.

—Até porque, devendo sempre dar-se a primazia ao mais sabio, é o vinho que a merece; pois é elle, n'este momento, o que mais sabe.

—Ora faze-nos o favor de nos poupar, ao menos agora, á difficil digestão dos teus calembourgs.

—Então? Bebamos!—insistiu o côro.

E o brinde foi geral.

Carlos correspondeu constrangido áquella saudação. Parecia-lhe estar vendo Jenny a olhal-o com uma expressão de amigavel desgosto; Jenny, a unica a fazer companhia ao velho negociante, que não pouco devia ter sentido a ausencia do filho. Durante toda a noite já não era para o pobre rapaz dissipar completamente aquella impressão penosa.

Apoderára-se de Carlos Whitestone um pensamento fixo, um quasi remorso de se ver alli; e este effeito, se não lhe distrahia completamente a attenção dos assumptos, que na sala se tratavam, enfraquecia-lhe a intensidade d'ella a ponto de nem já tomar parte nas discussões, nem o occuparem, por muito tempo, as ideias aventadas por os outros.

Á placa da camara escura, não preparada na officina photographica, é comparavel o pensamento, em occasiões assim. Lá se gravam ainda as imagens das cousas exteriores, mas, não as fixando a attenção, dissipam-se rapidamente, removidos os objectos que as motivaram.

D'ahi o tom distrahido e indifferente das raras observações feitas por Carlos no resto da noite, e a impaciencia de algumas respostas, que foi forçado a dar.

Entre muita cousa, que se disse na sala, eis o que elle ouviu, sem escutar; a qualquer d'estes assumptos não costumava Carlos, nas ordinarias disposições de espirito, recusar attenções, nem esquivar a concorrencia propria.

O jornalista, que ficava ao lado d'elle, interpellou-o pela preoccupação em que o viu.

Ora uma observação qualquer da parte d'este jornalista tendia fatalmente a degenerar em longa revista litteraria, que era difficil interromper.

—Que tem você, homem? O tal bilhete produziu um effeito quasi apopletico. Coragem! É negocio de coração? Alguma loura e nevada miss? hein? Oh! as inglezas! A desassombrada candura do seu suavissimo to flirting!—d'aquelle flartar, como, com tanta razão, traduz Garrett, á falta de melhor vocabulo.

E elle ahi principiava:

—Você já leu Garrett, Carlos? Que me diz d'aquellas Viagens, hein? Oh! é inquestionavelmente o melhor dos seus livros. Prefiro-as ás de Xavier de Maistre. Que eu não participo da admiração geral por Xavier de Maistre; é preciso que saiba.

Pausa, durante a qual saboreou um gole de Xerez. Depois de alguma asserção mais arrojada, a pausa era de rigor.

Carlos, já se sabe, não redarguiu. N'este intervallo, pôde ouvir o conviva proximo, que dizia:

—Eu agora o que desejava era ter, pelo menos, trezentos contos de réis; ia d'aqui a Paris; depois…

O jornalista proseguiu:

—Xavier de Maistre inspirou-se de Sterne; é evidente; ficou porém a grande distancia d'elle. A Viagem sentimental, sim. Oh! A Sentimental journey. É um livro delicadamente temperado de uma certa especiaria philosophica, unica que se combina com vantagem á litteratura amena. O humour morreu com Sterne.—Pausa.—A demasiada philosophia gela a inspiração litteraria. Ahi tem Pope. É frio, é árido, é marmoreo.—Pausa.—Os poetas francezes não teem tanta tendencia para se deixarem philosophicar, permitta-me o neologismo. Victor Hugo, ás vezes… Qual prefere você, ó Carlos, Lamartine ou Victor Hugo? Victor Hugo é mais byroniano. E é notavel que fosse Lamartine quem cubiçasse o Childe Harold. Força de contrastes! Aquelle Childe Harold! aquelle Childe Harold! Que me diz você áquelle Childe Harold? É o unico poema verdadeiramente romantico, que se tem escripto até hoje.—Pausa.—Perdôo-lhe o Poor, paltry slaves! com que nos mimoseia. E note que eu não sou admirador cego do Byron.

Nova e maior pausa, durante a qual o orador accendeu um charuto.

Carlos continuava calado.

Percebeu então que n'um grupo vizinho se dizia:

—Quem tem uma bonita parelha é o visconde de Custoias.

—Melhor é a do Manoel Galveias.

E mais adiante:

—Perdão, menino; mas para mim a synthese não é uma mera condensação dos factos analyticos; a synthese precede a analyse, e dá a esta a força que vae buscar ao mundo interior, isto é, verte n'ella o immutavel, os principios evidentes; Kant…

O jornalista continuava:

—Eu não me regulo pela critica convencional. É o meu systema. Não me resolvo a entoar amen á opinião dos povos.—Pausa.—Por exemplo, tenho a sinceridade e a coragem de confessar que não me fascina Dante.

Grande pausa.

—Padre Manoel—dizia n'esta occasião, do fundo da mesa, um dos convivas, apontando para o calix, que levava aos labios—Ecce Deus qui lætificat juventutem meam.

O padre sorriu, mas não disse nada. Comia.

—Porque a final de contas—proseguiu o discursador—você ha de concordar commigo; Dante é um rapsodista quasi como Homero. Que é a Divina Comedia, senão o compendio das crenças religiosas d'aquelle tempo?

Pausa.

—O que ha a respeito da revolução carlista em Pamplona?—ouviu Carlos perguntar.

—Nada mais se sabe por emquanto, apenas que estão implicados alguns sargentos, cabos e paizanos—respondia outra voz.

E continuava a dissertação litteraria:

—O grande merecimento de Dante é o da fórma. Lá essa qualidade tem elle. Logo os primeiros versos:

Nel mezzo del cammin di nostra vite

Acho porém dotes superiores em Boccacio.—Então que quer? É um espirito encarnado em corpo de menor vulto, mas… você já leu o Decamaron? Deve ler. É um livro excepcional. Ha n'elle alguma cousa que vae além do seculo, em que foi escripto. E esse é o signal supremo do genio. As imitações de La Fontaine são pallidas. Desengane-se. La Fontaine, a final, era contemporaneo de Luiz XIV. N'aquella côrte não podia existir a verdadeira inspiração. Abomino a litteratura d'esse tempo. Detesto Luiz XIV e o seu seculo.—Pausa.—Molière salva-se, mas porque? Porque o genero comico tem uma índole especial. Não é a inspiração que o regula; é a analyse, é a reflexão philosophica.

—Eu aposto—berrava um politico—que se os alliados se metterem a dar o assalto a Sebastopol, não fica um só vivo.

—Veremos—questionava outro.—Deixa Omer-Pachá occupar a estrada de Sebastopol a Simphirepol e depois fallaremos. Olha que elle já desembarcou na Eupatoria com quarenta mil homens.

O jornalista continuou:

—Ha um unico homem que admiro, em qualidades comicas, mais do que Molière, é Rabelais. Oh! o Rabelais é o meu livro! Ha tres livros que nunca tiro da minha banca de estudo, nem da minha mala de viagem.

Uma família ingleza: Scenas da vida do Porto

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