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III

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Ao romper da manhã, quando a consciencia principia, pouco a pouco, a acudir aos sentidos, até então tomados pelo torpôr de um somno profundo, Henrique de Souzellas sonhava-se commodamente sentado em uma cadeira de S. Carlos, disposto a assistir ao desempenho de uma opera favorita.


Moviam-se os arcos nas cordas dos violinos, violoncellos e contrabassos; sopravam, a plena bôca, os tocadores dos instrumentos de vento; agitavam descompostamente os braços os ruidosos timbaleiros; dedos amestrados faziam vibrar as cordas da harpa; a batuta do mestre fendia airosamente os ares, e comtudo não chegava aos ouvidos de Henrique, de toda esta riqueza de instrumentação, mais do que uma nota unica, arrastada, continua, plangente, baixando e subindo na escala dos tons, e sem formar uma só phrase musical.


Era de desesperar um dilettante como elle; torcia-se na cadeira, inclinava convenientemente a cabeça, fazia das mãos cornetas acusticas, e sempre o mesmo resultado!


Este violento estado de attenção, este esforço do sensorio, principiou n'elle a obra de despertar; principiou pois pelos ouvidos, mas cêdo se transmittiu a todos os outros orgãos.


Antes de dar a si proprio conta do que era aquelle som, e quasi esquecido ainda do logar em que estava, Henrique abriu os olhos.


A luz do dia penetrava já pelas frestas mal vedadas das janellas e espalhava no aposento uma tenue claridade.


Veio então a Henrique a consciencia do logar em que estava, e uma alegria profunda lhe dilatou o coração.


O leitor se ainda não padeceu de insomnias, de pesadêlos, ou de somnos febris, não avalia por certo o contentamento intimo, que se apossa das desgraçadas victimas d'esses demonios nocturnos, quando por excepção elles as deixam em paz, e lhes respeitam o somno de uma noite completa. Acordar só aos raios da aurora é um dos mais ineffaveis prazeres, a que elles aspiram na vida.


Penetra-lhes então nos membros um insolito vigor; a arca do peito expande-se-lhes mais livre e as sombras do espirito dissipam-se-lhes com aquelle clarão matinal.


Foi o que succedeu a Henrique. Pela primeira vez depois de muitos mezes, dormira de um somno a noite inteira.


Sentia-se com isto tão bom, tão vigoroso, tão contente que teve vontade de cantar.


Mas o som, que o acordára, aquella nota unica, em que se confundiam todas as notas da sonhada orchestra, ainda lhe soava aos ouvidos.


Prestando-lhe a attenção de acordado, conheceu que era o chiar dos carros—o mesmo som, que na vespera o irritára, agora assim a distancia, estava-lhe agradando, como nota extrahida por mão habil das cordas de um violino.


Não resistiu mais tempo ao impulso que n'aquella manhã o incitava ao exercicio, rara disposição no indolente filho da capital, que tinha por habito ouvir o meio dia na cama.


Ergueu-se e abriu as janellas.


Não é licita a comparação entre a mais surprehendente transmutação de uma d'essas apparatosas magicas, que tanto extasiam as multidões embasbacadas nas plateias e camarotes de um theatro, e as que de instante para instante, realisa a natureza. Descerrando o véo de nuvens que encobre o fulgor do sol, elevando, acima do horizonte, esse magestoso lampadario do mundo, ou o brilhante reflectidor que illumina as noites desanuviadas, a natureza opéra, a cada momento, as mais admiraveis e completas metamorphoses.


Durante o somno de Henrique realisára-se um d'esses effeitos magicos.


Abrandára gradualmente a violencia do sul; o vento, mudando, voltou em sentido opposto a grimpa do campanario; dispersaram-se as nuvens; luziram trémulas por momentos as estrellas, empallideceram perante o alvor do dia, e quando o sol assomou por sobre a crista das serras, estendia-se-lhe deante um vasto manto azul, tapetando a estrada, que tinha a percorrer. Só, muito para o occidente, ainda algumas nuvens amontoadas formavam uma como franja, que o astro nascente em breve tingiu de carmim e de ouro.


Foi pois a luz de um dia esplendido e a brisa, cheia de aromas, que vem dos campos nas alvoradas serenas que penetraram no quarto de Henrique, quando elle abriu as janellas.


A inesperada surpreza quasi lhe soltava do peito uma exclamação de prazer!


A aldeia, aquella mesma aldeia, escura e triste que, com o coração apertado, atravessára na vespera, parecia outra.


O sol da manhã baixára sobre ella, dissipára-lhe as sombras, colorira-lhe as verduras, reflectira-se-lhe nas presas, dispersára-se em iris cambiantes na espuma das torrentes e cascatas naturaes, perfumára-a de aromas, animára-a de cantos, transformára-a emfim na mais risonha paizagem, em que os olhos de Henrique, pouco habituados ás esplendidas galas do Minho, tinham nunca repousado.


O inverno despojára parte d'essas galas; embora! Até da propria nudez de algumas arvores resultavam encantos. As folhas crestadas, os ramos despidos, as moitas sem flores infundem tristeza; mas não tem a tristeza poesia tambem? Pode haver completa paizagem onde não haja uns tons escuros de melancolia?


Henrique de Souzellas, debruçado na varanda de pedra do quarto, não se cançava de admirar aquella scena.


Parecia-lhe estar assistindo a um milagre de fadas, que, n'um momento, elevam, nos ermos, jardins e paços, como os de Armida e Alcina.


Pois era esta a mesma aldeia, através da qual elle cavalgára de noite?


Os accidentes do terreno, aquelles accidentes, que tão do fundo da alma amaldiçoára na vespera, produziam, vistos então d'alli, os mais pittorescos effeitos. Abatia-se-lhe aos pés um não muito profundo valle, opulento em vegetação, e que a certa distancia se continuava insensivel e gradualmente com uma amenissima collina.


Além, um bello bosque de carvalhos seculares, que o inverno, privando-os de folhas, tingira quasi da côr da violeta, contrastava com a fronde sempre verde das laranjeiras nos pomares vizinhos, fronde por entre a qual se divisavam abundantes os dourados fructos, poupados pela mão do lavrador. As copas, como umbelladas dos pinheiros mansos,

A Morgadinha dos Cannaviaes (Chronica da aldeia)

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