Читать книгу A Morgadinha dos Cannaviaes (Chronica da aldeia) - Dinis Júlio - Страница 21

VII

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A casa do recoveiro Cancella ficava n'uma das mais estreitas ruas da aldeia e ao lado de um pequeno quintal, objecto dos cuidados e das diversões do proprietario, que alli gastava algumas horas disponiveis da sua occupada e laboriosa vida.


Cancella era um verdadeiro Judeu errante da aldeia. A maior parte do tempo ia-se-lhe nas estradas; pernoitava hoje n'uma estalagem; viam-o ámanhã já a mais de seis leguas de distancia; acotovelava um dia a multidão nas ruas e feiras da cidade; no outro entretinha os curiosos da sua terra, deixando-lhes entrever os thesouros da experiencia adquirida á custa de muitos annos de fadigas.


As estradas em Portugal e os novos meios de transporte, que conjunctamente vieram, não destruiram totalmente esse typo dos antigos tempos, anterior a ellas. Além da época, que parecia dever marcar-lhes limite á existencia, passaram, sustentados pela fôrça dos habitos e justificados pelas irregularidades do serviço das postas; e Deus sabe quando de vez acabarão. Mas Cancella era além d'isso um recoveiro de uma especie rara e superior. Em todas as profissões ha sempre, no meio do vulgo, que as exerce sem enthusiasmo nem consciencia dos gôsos, superiores aos interesses, que ellas podem offerecer, certo grupo de escolhidos, que as idealisam, e enxergam um raio de poesia através das sombras, uma flor entre os espinhos. Cancella era d'estes; era o poeta da sua profissão. Tinha em si o que quer que era de um touriste, e assim aproveitava todos os ensejos que se lhe offerecessem de explorar algum ponto do paiz, ainda por elle desconhecido.


Este instincto levava-o frequentemente a Lisboa. As muitas relações do conselheiro, pae de Magdalena, com as familias da aldeia, e a barateza relativa das recovagens operadas por este meio primitivo, proporcionavam-lhe algumas occasiões d'isso, as quaes o Cancella de boamente aproveitava. Era de uma d'essas expedições que elle devia voltar aquella manhã, como o dava a entender a carta de Angelo.


Quando porém Augusto lhe bateu á porta, achou-a ainda fechada; escutou á fechadura, mas não pôde verificar o menor signal de que alguem estivesse dentro.


—É cêdo ainda—pensou comsigo.—Vejamos se estará em casa do compadre.


Seguiu mais para deante pela rua por onde viera.—A poucos passos mais, e do lado opposto, deparou-se-lhe outra casa de aspecto não menos rustico do que a primeira, uma pequena casa terrea, de uma só porta e uma só janella, e com o respectivo quintal ao fundo.


Do interior vinha um sussurro de vozes, como de conversa animada; julgando que seria o Cancella, de quem o proprietario era, além de vizinho, confidente e compadre, Augusto empurrou a porta, que estava apenas cerrada e entrou.


A primeira sala achou-a deserta. Era um aposento quadrado, todo adornado á volta de cruzes de pau, para as devoções da via sacra, e de imagens de santos e santas em caixilhos de todos os tamanhos. Mais do que os outros enramalhetado e enfeitado, via-se alli o bento registo de uma confraria, havia pouco tempo instituida na terra pelos missionarios, o qual occupava o logar de honra n'aquella devota exposição.


Era recente na aldeia o estabelecimento d'esta confraria, sociedade um tanto mysteriosa, por meio da qual seus interessados instituidores só visavam a dar o reino do céo aos filiados, contentando-se apenas, em paga, com o do mundo, do qual, lembrados de antigos tempos, teem saudades já. Os missionarios, certos evangelisadores em terras onde a palavra do Evangelho não é chave que abra a porta, pela qual entraram os martyres no céo, lá andavam por aquelle tempo, na aldeia onde se passa a acção d'esta historia, plantando a vinha, que elles chamavam do Senhor; as mulheres, abandonando os lares, seguiam-os como rebanhos; o culto catholico era por elles cada vez mais arrebicado com orações absurdas e ceremonias ridiculas, e o eterno anathema da ignorancia contra o progresso da sociedade servia de thema predilecto aos seus barbaros discursos.


Ardente proselyta d'estes apostolos de fé duvidosa, a sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, a metade feminina do casal em questão, tomára por modo de vida as devoções da igreja, onde ia chorar as desgraças da humanidade, que tão fóra via andar da estrada direita.


Augusto pouco se demorou n'esta sala; respeitando a alcova conjugal, que era vedada aos olhares profanos por uma colcha de chita de largas e folhudas ramagens, tomou pelo corredor, que conduzia á cozinha d'onde lhe continuava a chegar aos ouvidos o som de vozes, que primeiro o attrahira.


Ao contrario do que esperava, porém, só uma pessoa encontrou na cozinha, comquanto falasse com a vivacidade que em poucos dialogos se mantem.


Esta pessoa era o dono da casa, o sr. José do Enxerto, ou vulgarmente chamado ti' Zé P'reira—nome que lhe vinha do popular e ruidoso instrumento, o classico zabumba, que nas nossas aldeias tem ainda hoje aquelle nome.—Era muito para vêr e admirar a mestria, com que o nosso homem o sabia tocar nas festas e arraiaes, á frente das procissões e cêrcos, e finalmente em todas as solemnidades publicas.


O ti' Zé P'reira era homem dos seus quarenta e tantos annos; tinha no rosto, principalmente no nariz, vestigios evidentes das suas sympathias pela divindade celebrada nos antigos dithyrambos. Esposo da sr.a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, vivia em perenne sabatina com a sua cara metade, sujeitando-lhe todas as suas acções, mas salvando sempre o direito de protestar pela palavra. Ganhava a vida no officio de hortelão e, aos domingos e dias de festa, á fôrça de rufos e pancadaria na retesada pelle do seu companheiro inseparavel—o zabumba. Era aos cuidados e vigilancia d'este par conjugal que o recoveiro Cancella confiava o seu mais precioso thesouro, a pequena Ermelinda, uma mimosa creança, que lhe ficára á sua viuvez tão cheia de saudades, e a quem elle mais queria do que á menina dos olhos.


Ermelinda era afilhada da familia Zé P'reira, e a mesma a quem ouvimos referir-se Angelo no fim da carta.


Zé P'reira estava, como dissémos, só na cozinha, quando Augusto alli chegou: sentado, no meio da sala, sobre um alqueire voltado com o fundo para o ar, viradas as costas para a porta e a face para o lar apagado e vazio, falava, gesticulava e mudava de tom desde a nota mais grave e rouca da sua escala de barytono, até o mais agudo e desafinado falsete. A lingua pegava-se-lhe ao céo da bôca, difficultando-lhe suspeitosamente a articulação de algumas syllabas; era evidente que se apossára do hortelão o espirito familiar, o qual n'este caso, era um verdadeiro espirito, na accepção chimica do termo.


Ze P'reira era um homem baixo, já grisalho, sufficientemente nutrido, de olhos vesgos e que mais vesgos se faziam quando o enthusiasmo, o rapto artistico se apoderava d'elle; usava de umas suissas que pareciam tentar sumir-se-lhe pela bôca dentro; tinha longos braços, accommodados ás difficuldades e evoluções da sua arte, e pernas que, do joelho para baixo, lhe divergiam em angulo de mais de trinta graus.


Quando Augusto deu com elle, o homem monologava, gesticulando:


—Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... É forte desgraça!... Aqui estou eu!... Um homem casado... casado á face da igreja... que me casou em dia de S. Thiago o abbade que foi... e que Deus tenha em descanço. Não faltou nada... correram-se banhos deante de quem os quiz ouvir, e não houve quem puzesse impedimento... porque eu não devia nada a ninguem... sempre fui liso de contas... Sou casado com a Catharina do Nascimento de S. João Baptista, filha do Antonio Canhestro, do logar dos Fójos... E casado para quê? Faz favor de me dizer? Para que casei eu?... Forte desgraça a minha! Casei-me para isso!... Para vir para casa e achal-a vazia, o lume apagado e o caldo na horta... e a mulher a papar missas e novenas lá por essas igrejas... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha! É forte desgraça!... Bem morria eu de frio e de fraqueza, se não fôsse aquelle quartilhito... o ultimo, que sempre me deu sua aquella... sim... sempre me conchegou o estomago. Não que dizem que o vinho que faz, que o vinho que acontece... Pois casem-se com uma mulher que vá de madrugada para a igreja e venha de lá quando muito bem lhe pareça, e verão depois se o vinho não serve de cobrir muita lazeira que se soffre... verão depois... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... Diz que Deus que disse, que a mulher que era a carne da nossa carne e o osso do nosso osso... Deus devia de vez em quando tornar a dizer estas coisas... para não esquecerem... como se faz na escola com a taboada. A minha Cath'rina já o não sabe, aposto... e pelos modos os padres não lhe dizem isto na igreja... pois deviam dizer!... A carne da minha carne e o osso do meu osso!... mas é carne e osso que me não fazem caldo... Ora, senhores, que é forte desgraça a minha!... Como ha de um homem, se isto assim continua, pegar na enxada para dar uma cavadela, ou fazer qualquer sachada?... E tambem quero vêr como hei de no arraial e procissão de Santo Amaro, que não tarda ahi, dar sequer um rufo assim mais tal... assim mais scientifico? Eu se fôsse bispo...


A caudalosa corrente d'este soliloquio foi interrompida pela apparição de nova personagem á porta do quintal.


—Deixe estar, meu padrinho, deixe estar; tenha um bocadinho de paciencia. É um instante emquanto accendo o lume e lhe faço o caldo. Verá.


A pessoa, que assim falava ao entrar para a cozinha, era uma rapariga de doze annos, alva e franzina, como a mais delicada creança da cidade, com os olhos negros e expressivos de intelligencia e de doçura, e com os mais formosos cabellos louros que ainda enfeitaram uma cabeça infantil. Não havia n'elles sombra, que desvanecesse aquella côr deslumbrante; reflectia-se-lhes a luz nas ondas, naturalmente lustrosas, como em tenuissimos fios de metal; usava-os soltos e caidos, sem vislumbre de artificio, de um e de outro lado do collo.


Condizia com a expressão angelica do semblante o suave e affectuoso timbre de voz com que falára.


O leitor prevê de certo que é Ermelinda, a filha do Cancella, ou Lindita, como geralmente na aldeia lhe chamavam, a creança que tem na sua presença.


Ermelinda sobraçava um mólho de hortaliça, que fôra colher ao quintal, e dirigia-se com ella para o lar, que o descuido e a indifferença conjugal deixavam ainda apagado áquella hora do dia.


Dando, porém, com os olhos em Augusto, parou, sorrindo-lhe.


—Ai, pois estava ahi, sr. Augusto?! E o meu padrinho talvez sem reparar.


A estas palavras o desditoso marido voltou a cabeça e fitou em Augusto um dos seus desemparelhados olhos.


—Olá, sr. Augusto! Viva! Passe muito bem! Entre; esta casa é sua... De jantar não lhe offereço... porque... porque... Forte desgraça a minha... Olhe! repare para este desaforo!... Venho para casa, morto de trabalho... e vejo o lar apagado! A minha mulher está a ouvir missa, a confessar-se, a commungar... a tomar todos os sacramentos... acho que os está a tomar todos... Louvado seja Deus! Vem ahi tão limpa de consciencia, como eu estou do estomago... Ora, senhores...


—Deixe estar, padrinho... Verá como isto se arranja depressa... Olhe; o lume já está accêso—dizia Ermelinda, accendendo effectivamente o lume no lar.


—Já o devias ter feito antes, Lindita,—disse Augusto, sentando-se junto d'ella.


—Mas se inda agora vim das prêsas, onde fui lavar a roupa?


—Pobre pequena—disse o Zé P'reira—tambem não te ha de faltar lazeira, tambem!


—A mim? Agora. Não que eu não saí de casa com as algibeiras vazias.


—Pois sim... mas é sempre preciso coisa que conforte... Inda se tu bebesses... já não digo um quartilho...


—Credo, meu padrinho! Que está a dizer?


—Que espanto!... Ora, senhores, que parece que o vinho é bebida amaldiçoada, que todos lhe teem mêdo! É vêr se o padre na missa...


—Padrinho! padrinho! que vae dizer?—interrompeu Ermelinda, quasi aterrada.


—Eu digo o que é verdade, rapariga!... Tenho minha presumpção de nunca dizer senão a verdade... Lá o pespeguei na cara do sr. juiz de direito e mais do sr. doutor delegado e mais doutores, quando fui a um juramento, por causa d'aquellas pancadas no recebedor... É que nenhum d'esses santalhões, d'esses missionarios me teem que ensinar n'esse ponto... Os missionarios!... Eu, um dia, tiro-me dos meus cuidados e dou-me ao trabalho de lhes ir perguntar, quando elles estiverem no pulpito, se Deus lhes manda que tirem as mulheres de casa, para que os maridos não tenham que comer, quando voltarem do trabalho... Um dia inda lhes vou perguntar... isso vou...


—Olhe; a agua não tarda a ferver; verá que dentro em pouco...—continuou Ermelinda.


—Bem, Lindita, bem—disse Augusto—em paga da boa vontade, com que trabalhas, vou dar-te uma alegre nova.


—A mim? Diga.


—Trago-te visitas de alguem, que em poucos dias te dará em vez de visitas, um abraço.


—De quem? Ah!... Angelo escreveu-lhe?


—Como adivinhaste depressa!


—Pois de quem mais havia de ser? Mas diz que... em poucos dias... Então?


—Tel-o-hemos cá pelo Natal.


—Fala verdade?


—Assim m'o diz n'esta carta. Queres ler?


—Para quê?—respondeu a rapariga, fitando porém o papel com os olhos cheios de curiosidade.


—Ora lê, lê... Até para vêr se ainda te recordas das lições, que eu te dei.


—Ai, lá isso... mas, o caldo do meu padrinho...


—Deixa que o lume é que o ha de aquecer e não a tua presença.


Ermelinda approximou-se; tomando a carta das mãos de Augusto, começou a lêl-a com intensa curiosidade.


Zé P'reira proseguiu no seu monologo:


—A religião, senhores—dissertava elle—não manda tal... Isso é que não manda... A religião é a palavra de Deus... e Deus disse... sim... Deus disse... Deus disse muita coisa... Disse que por este deixarás pae e mãe. Ora a santa madre igreja é mãe, é, sim, senhores; que tem lá isso? mas não é mais mãe do que a outra mãe... e então... senhores, uma mulher não deve deixar por ella o seu marido; porque o marido, senhores, é o tudo de uma casa, e o ganhapão da familia. Ora, senhores, que é forte desgraça.


O monologo do desconsolado conjuge e a leitura de Ermelinda foram interrompidos por uma voz potente, que cantava na rua.


A Morgadinha dos Cannaviaes (Chronica da aldeia)

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