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NEDDA

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Manhansinha.

A sala, de azuladas paredes seminúas, estava pobremente mobiliada: era no saguão da casa, e as duas mulheres entraram às tontas, até se abrirem de par em par as gelosias.

SAUL, de NEDDA esposo, ficàra a dormir na alcova.

E NEDDA, abysmada com a indifferença delle que apenas lhe não dirigia um monosyllabo desde a hora do facto, comprehendeu logo que DONA LOURA, a sua mãe, era uma interprete das indisposições do genro…

Num canapé, as duas mulheres, DONA LOURA, archaica nas suas vestias de capote e turbante, e NEDDA, deliciosamente matutina num roupão branco que descansava, sans-dessous, sobre a finissima camizêta de cambraias, – sentaram-se, afundando em concavos a palha flaccida do cansado movel…

– Esperava-te, maman, qualquer das horas. Quando vejo Saul levando-me entre dentes e indisposto como um burguês dispeptico, silencioso como uma esphynge e entristecido como um beato sem almoço, adivinho logo que vens por ahi como a mensageira da paz. E elle foi procurar-te hontem à tarde…

– Exactamente.

– Previ tudo isto. Ha cinco dias que nós não falamos, e, pensando-o na rua, hontem, vim ter aqui. Foi quando topei com elle, sentado naquella cadeira, lendo a Biblia, ou folheando-a, apenas… Vendo-o, assustei-me e não contive um gritinho de susto. Mas tornei immediatamente sobre os meus passos. Ha quatro annos que somos casados e nunca passamos dois mezes sem uma rusga. É sempre elle quem as promove com um resaibo de malentendido ciume. Aceito sempre o seu rompimento e nunca lhe dei a honra de capitular nas hostilidades. Quando ellas são de nonada, aqui mesmo se resolvem; mas, quando avultam como agora, elle te vai buscar como intercessora. Jà sei que vamos ter, como sempre, uma crise de amorosidades que me enfastiam. Lastimo é não conceber um filho desse homem para o embeiçar pela nova criatura e sentir-me menos jungida às suas intemperanças de… mal educado! Ás vezes, chego a ter nojo do senhor meu marido…

– Que blasphemia, Nedda! Dizes isto do teu esposo com um sangue frio que me pasma…

– Devias esperar isto. Cazei-me contra a minha vontade ao depois de ter o assedio do seu amor por mais de cinco annos. Tudo inventei para que um tal matrimonio não se fizesse. Por ultimo espalhei, e fiz conhecer-se em caza, por torna-viagem, a mentira de que Saul é um tuberculoso. Tanto mais eu o aborrecia, quanto a senhora e o papá intervinham, patrocinando a causa do moço platonico. Dá-me, na verdade, um insistente desejo de rir muito quando lembro os idealismos delle, seguindo a minha sombra, porque nunca lhe deixei o direito de enfrentar-se commigo em parte alguma… Expúz-lhe sempre que sonhos não me satisfaziam, nem eram para o meu temperamento homens vaporosos, poetas e doutores… Movi-lhe intensa guerra, apaixonando-me por Frederico Stöltze. Está! Com este provavelmente eu teria sido bem cazada. O pobre «allemãosinho» levou o caso muito a serio e cazou-se, logo que eu o abandonei, com uma defeituosa… Foi um despique, não ha a menor duvida, mas quem sahiu perdendo foi elle. Saul é um temperamento de phoca…

– Respeita o teu marido, minha filha!

– Pois não é, maman?

– Essas couzas não se devem dizer…

– Não tratarei de occultar o sol com a mão. Já disse e é mesmo: um temperamento de phoca. Só quer hybernar sobre os livros, deante dos quaes se abespinha como o animal sobre o gêlo. Eu, porem, quero muito sol, muita luz, muito calor, muita actividade… Maman, o que vocês velhos veem no cazamento é o interesse de collocar as filhas, porque ficando velhos receiam que nos tornemos muito sós no mundo. Por isso acontecem destas, cazamo-nos com a vontade dos papás encarnada na figura de um homem que não é a correspondencia de nosso instincto. Olha! Não intervirei nunca no cazamento de ninguem: cada qual commetta a sua doidice como quizer, e, se escolher um lorpa como Saul, arrependa-se de si mesmo e não me culpe a mim.

– Tu vês no homem uma excitação, Nedda, quando devias ver uma satisfacção.

– Deixasses eu escolher como tivesse querido, e estarias livre hoje dessas trabalheiras de paz… Saul, antes de meu marido ser, soffreu toda a minha repulsa. Cazada fui tolerante. Elle, no entanto, não sabe aproveitar-se de minha tolerancia e quer subserviencia, servidão, ou coisa similhante… Está enganado! Devias ter sanccionado a minha repulsa logo de principio. Lembras-te do convescóte dado aos chilenos, nas Salinas? Tu não foste, e Saul, que era apenas meu pretendente sem a menor esperança, moveu contra mim uma intriga terrorosa, porque viu, no campo, o primeiro tenente Santander amarrar os cordeis de minha botina que estavam difficultando-me o andar. Deves recordar-te de como energicamente o reprimendei, quando soube que lhe cabia a autoria do contado… Note-se que era apenas um pretendente, como muitos havia, todos suggestionados pela minha belleza pouco commum neste bairro de mulheres feias. Afinal, maman, que te disse elle desta vez?

– Saul comprehende o amor como uma esthesia, minha queridinha, e tu o comprehendes como um devaneio. Isto é proprio para as meninas. Tu te esqueces, e nisto eu lhe dou razão, que és uma senhora escrava da moral esponsalicia. Contou-me o teu marido um facto em que elle te surprehendeu. Realmente, se as cousas se passaram como podem ser suppostas, e elle não quer crer, tu andaste mal.

– Tu o ouviste, elle contou o acaecido a seu geito… Ouve, agora, como tudo se deu…

– E dispensavel Nedda. O passado está passado. O que é preciso é que não dês lugares a aleives e que poupes os amuos. A alma dos homens tambem calleja. Os amuos fazem pequenos callos, mas tempo virá em que, callejada a alma, o amuo será definitivo.

– Que teria isso?

– Um escandalo, minha filha!

– Para adquirir a minha liberdade maman, que tu sacrificaste, eu não me pouparei a um grande escandalo.

– Toma juizo, doidinha. É preciso acabares com estas zangas e receberes o teu marido como o teu senhor…

– Hein?.. Não me zangarás, maman, pódes ridicularizar-me como entenderes… Não me darei por achada.

– Não promovo senão o teu bem. Resolve a crise e sê… mulher de teu marido.

– Jà estás julgando o feito?

– Tu tens toda a razão, elle tem igualmente toda a razão. Harmonisem-se e sejam felizes.

– Pareces-me uma juiza a Salomão, com a differença de que o rei hebreu ouvia ambas as partes em conflicto, e tu julgas com a audiencia de uma só…

– Interpretas muito mal o meu genio.

– Não te interessa conheceres a injustiça de que sou accusada pelo sr. meu marido?

– Fala, minha filha! Mas tem a certeza de que, fosse qual fosse a accusação, eu nunca seria contra ti.

– Obrigada, maman! Quero, entretanto, justiça, e que, como Saul, não julgues pelas apparencias. Daria a vida para saber como elle te referiu o que se passou…

– Deixa o que elle me disse. Narra o que tu sabes…

– Pois bem! Na terça-feira, maman, de combinação com Saul, resolvi passar uma temporada num arrabalde. E, devidamente autorisada por elle que me falou pelo telephono, fui à Barra correr uma cazinha vaga e que nos serviria. De caminho, encontrei-me com o dr. Eduardo que, ao depois de saber ao que eu ia, daquelle modo desacompanhada, teve a gentileza de offerecer-se-me para o serviço de abrir e fechar portas. Aceitei e foi elle quem tomou as chaves na taverna da esquina… Vê tu!.. Não fôsse elle e teria eu de entrar numa taverna, sósinha, arriscada a ouvir qualquer indecencia… Ao depois, o dr. Eduardo foi quem abriu a porta… Como eu me ataria de luvas de camurça para fazer essa diligencia?.. Umas chaves muito pouco asseiadas… Corremos o primeiro andar da caza, e, quando passamos ao sotam, o meu gentil cavalheiro se lembrou de, por segurança, fechar por dentro a porta da rua… Subimos. Mal chegavamos em cima, começaram de bater numa porta. Poderia eu suspeitar que o meu marido, tendo ordenado que eu fosse, porque elle não teria opportunidade de acompanhar-me, logo depois resolvesse o contrario, e estivesse a bater na porta da rua? E foi por um acaso que nós o vimos. Chegamos inesperadamente a uma janella do sotam e percebemos que era elle quem batia. O dr. Eduardo, desculpando-se por jà ter eu cavalheiro, despediu-se de mim, desceu as escadas, e, quando abria a porta, foi insolentemente aggredido por Saul, que lhe negou a mão para o cumprimento do estylo… Só tu vendo, maman, a furia com que o sr. meu esposo investiu contra mim! Felizmente, desafiado pela minha calma, elle não teve animo para iterar o qualificativo mau com que me mimoseou. Dei-lhe as costas e, se elle quiz, fechou sósinho a caza e veiu só…

– Devias ter evitado tudo isto, Nedda.

– Evitado, como?

– Não acquiescendo à companhia de um homem de mà fama, como é o dr. Eduardo.

– Adivinhasse eu que elle viajaria para a Barra naquelle mesmo bonde em que eu fui… Hora de trabalhos na cidade…

– Recusasses os favores offerecidos.

– Ora, maman! Deixa-te de coisas! Qual é a mulher que se anima à grosseria de recusar gentilezas de um moço de distincto trato?..

– Conforme o renome desse moço.

– Tem mà fama o dr. Eduardo?

– Não sei, não. Dizem.

– Se tem mà fama, tem maus costumes. E como é que Saul, tão zeloso de sua honra, admitte, no seu convivio e nas suas recepções, um homem mal visto? Penso que os frequentadores de nossos salões, os habitués de nossa intimidade, sejam pessoas dignas de acompanhar-me a um ponto qualquer, e, se não fôsse assim, a primeira privação delles, seria a do nosso convivio…

– Neste ponto és razoavel, sou eu a primeira a reconhecer… Mas, Saul referiu-me que estavas sem chapeu…

– De facto. Ao depois que o dr. Eduardo se despediu, esbarrei na telha van do sotam, e enchi as flores do chapeu de teias… Sabendo que o sr. meu marido alli estava para auxiliar a reposição, tirei o chapeu e asseiei-o prestamente…

– Diz mais elle que estavas empurpurada e que te confundiste com a sua chegada, ao ponto de não saberes repôr o chapeu…

– Saul é um mentiroso.

– Não te zangues, Nedda.

– Injuriou-me.

– Não dês importancia a isto e resolve-te a aceital-o pacificamente…

– E elle o quer?

– Porque perguntas?

– Porque tão honrado elle não deveria aceitar mais a cohabitação da esposa deshonesta.

– Não deves dizer assim, minha filha!

– Aceita-me elle?

– Que tolice, Nedda!

– Maman, Saul deveria ter agora a minha repulsa definitiva, e não a faço em attenção aos teus bons officios…

– Fazes muito bem.

– Là vem elle descendo…

– Trata-o bem, minha queridinha! Um lar que não tem esposo…

– Desculpa-me, maman: só agora reparo que estou muito à vontade para nos encontrarmos os tres…

Arrepanhando, então, o bello roupão desabotoado, por cujas rendas e decotes se viam as carnes luciferas de NEDDA, a mulher de Saul se escapuliu, desenhando escorreita o seu impecavel corpinho de esculptura grega…

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