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O POETA MORIBUNDO
ОглавлениеLuxuoso salão de recepções: por entre cavallêtes com quadros de fina pintura, em que apparecem, de par com extrangeiros, o gosto de Parreira e a vocação de Prescilliano, vasos com flores, e, no meio das tapeçarias, dos fauteils e das luzes, um magestoso piano Ritter.
HELOISA acabou de executar, com todo o applauso do maestro CHRISTOVAM DETMER, a linda fantasia —Le poète mourant– de Gotschalk.
As ultimas notas perderam-se artisticamente: o maestro cheio de admiração e preso da infinita tristeza, dobrou-se e beijou os dedos que obedeciam á grande inspiração de HELOISA.
Esta olhou-o e transfigurou-se como uma alma reflexamente combalida pela dor de uma alma irman…
– Como esse poeta, Heloisa, que o grande musico fez morrer nas notas bemolisadas do piano, finou-se hoje o nosso amor… Emquanto executavas e os teus dedos arrancavam da alma do instrumento piedoso os sons do passional poema lyrico, me concentrei e te affirmo que a visão não despresou a audição, pois vi e ouvi toda a scena, desenvolvida entre personagens vivas, que se moviam, se soccorriam e testimunhavam o desfallecimento do artista moribundo. Durante minutos que serão inegualaveis na minha existencia de musico, aqui estive ao teu lado, frio como uma estatua, hermetico como uma esphynge, e não denunciei, pela ruga menor de meu semblante, a dor imperiosa que me ennervava a existencia. Vim do gabinete privado de tua mãe, que se transformou pacificamente no Satan de nossa felicidade. Falei-lhe ardoroso, como se lhe dissesse uma aria de Beethoven, contei-lhe minucioso e preciso a longa historia de nosso amor. Vejo, agora, que, por vezes, fui minudente de mais, rememorando o platonismo inedito com que te amei a alma de artista e não o corpo de mulher. Ao depois de ouvil-a, vim inspirar-me para o sacrificio no teu talento. E saio de tua presença illuminado como o prescripto que recebeu o balsamo do conselho christão para subir em seguida ao patibulo. Dá-me, pois, o conforto de tua confidencia ultima: amaste-me alguma vez?
– Que pergunta, Christovam.
– Indiscreta?
– Não; ao contrario. Amesquinhante…
– Extranho-te.
– Não ha razão. Porventura pensarás que te amei e não te amo agora? Acaso a minha mão de mulher para te ser dada dependerá de alguma coisa irreductivel deante de minha vontade altiva?
– Sinto-me lisonjeado, de facto, com a tua constancia, Heloisa. A cor dourada dos teus cabellos que te faz distincta entre as cabeças bellas de todas as mulheres, neste instante, afigura-se-me a grinalda de luz com que se enfeitam as santas nos seus altares. Mas, um maestro, um homem que sabe musica simplesmente, que é apenas um artista, é pequenino de mais para ter uma pretenção de amor. Eu me pareço com esta figura lendaria de Kadjira que destruia as rozas por prazer. No reinado das fantasias de ouro e de fidalguia com que se entontecem os teus paes em sonhos egoistas, cheguei, como a perversa princeza turca que despetalava rozas, derrocando castellos, para me conter na illusão em que me deleitava sómente com a audiencia da negativa inclemente de tua mãe. Confessou-me que maldava de todo o nosso amor, desde principio. E porque, se assim era, protegia a ampliação de um sentimento que deveria ser, como os filhos defeituosos das ciganas que são atirados ás piranhas, destruido no nascedoiro? Antes que eu lhe communicasse, falou-me em que se correspondias aos meus calculos de matrimonio, era porque, doidivana como toda creança, jogavas a péla na orla do precipicio, esperando o aviso amigo para te retirares gloriosamente… Negarás, Heloisa, que tinhas consciencia de minha pretenção? Sophismarás, em favor da excommunhão que me lançou a tua mãe, e contra a clareza da ordem que me deste afim de se officialisarem as relações do affecto, que nos encaminhava de um illusorio paraiso? Responde com o talento immensuravel com que sempre me amaste…
– Falas desatinadamente, Christovam, numa contingencia em que deverias possuir o maior tino dos homens.
– Tens o dom solar de illuminar o mundo pelos flancos, se uma nuvem pesada se antepõe á sua esphera…
– Sinto-me transfigurada. Amo-te ainda, e não te hei de amar fóra do regosijo delles…
– Dos teus paes?
– Sim. Acharias extranho se te dissessem que duas sementes postas em tuas mãos estariam vegetaes só ao sôpro de um fakir indiano. Porque admittirias que a minha vontade fosse forte bastante para romper a marcha das intenções dos meus paes sobre a minha razão de ser mulher? Por ventura sem o sopro do fakir as sementes germinariam e attingiriam as fórmas de seres definitivos? Não supporás que, sem aquelle sôpro, algo se realisasse. Como suppôres que sem a vontade dos meus maiores a nossa união se perpetraria ao teu sabôr?
– Desconheço-te já…
– Mas, porque…
– O sophisma substitue a tua logica: o amor cedeu o posto á quesilia dos outros…
– Esperarias o meu consorcio sem o consenso dos que me deram a existencia de mulher?
– Nem sei de mim mesmo que te responda…
– Não poderias esperar. Se eu fôsse livre, se a lagarta para ser papilio não carecesse de passar por ser chrysalida, nem eu te mandaria impetrar a sancção que nos faltou, nem os que nol-a negaram teriam razões para tal fazer. Aborrece-te o trovão? amedronta-te o curisco? Queres ver-te livre delles? Crê num Deus e pede-lhe a extinção… Infelizmente, Christovam, nem o trovão se extinguiria, nem o teu querer triumpharia… De um lado, Deus seria impotente para te dar o que pedisses porque não terias o direito de pedir… Só pede quem póde pedir; se se pede é porque de quem dá depende o pedido; e se o pedido não é dado, procura a causa na insufficiencia e na sem-razão de quem pediu…
– Mas…
– Nada adianta, Christovam. Corresponde ao meu inquerito e nega-me, se conservares a razão, que tenho o bom senso desejavel ás creaturas perfeitas. Queres responder-me?
– Nada significará o que te responda.
– É preciso que sejas categorico.
– Pois sim: responder-te-ei.
– Poderias tomar-me como tua esposa sem, obteres a minha vontade?
– Por certo que não.
– De minha parte a questão é outra: teria eu o direito de responder por mim num caso expresso de matrimonio? poderia ser unico o meu querer?
– Se quizesses, sim.
– Não é assim, não. Porque não me tomarias por mulher sem o meu assentimento? Por impoderoso deante de minha definição adversa. Porque não me daria eu por esposa sem o consentimento dos meus paes? Por impoderosa deante da pronuncia delles. Se tu pudesses alcançar de mim o amor sem vontade, desnecessario seria impetrares-m'a; se eu dispuzesse de meu corpo sem a intervenção dos que m'o formaram do nada em materia e em alma, nem cogitaria de enviar-te a elles…
– É um dilemma sophistico.
– Por que principio, não sei.
– Um dia, quando eu te disse que me abrazava na sêde do teu amor, Heloisa, como correspondeste a esse lapso do meu instincto?
– Do modo mais franco.
– Sim… Dando-me apaixonadamente os teus labios para nelles, como eu quizesse, matar a sêde que allegava…
– Dependia de mim. Dei-te.
– De outra vez pedi-te um testimunho da correspondencia de tua paixão. Negaste-m'o?
– Não poderia negar.
– Exactamente. Levaste-me, com todo o carinho, a dextra ao collo, e, na grandeza das iteradas pulsações cordiaes, affirmaste que eu reconheceria a intensidade do teu sentimento…
– Dependia de mim. Pratiquei.
– Por fim, quando te acenei com o plano de nossa união…
– Como te respondi, Christovam?
– Com a primeira negaça.
– Adulteras a minha intenção: cumpri o meu dever, enviando-te á maman, como o caminho propicio para vencer o papá.
– Realmente, Heloisa. Sou um vencido.
– Garanto-te, porem, Christovam, que te amo, ainda, como te amei…
– Irresistivel tormento para mim: serei eternamente o artista obrigado a consummar uma grande obra musical sem a inspiração para a realidade do dever…
– Desistes, então, do teu amor?
– Razões me sobejam…
– Que te disse, afinal, a maman?
– Isso mesmo. Falou-me em que queria um marido para a sua filha e lembrou-me que um musicista não compõe sem ter inspiração…
– Nada de mais, Christovam!
– Talvez não queiras comprehendel-a… Mas é tudo que se póde allegar contra um homem…
E, louco pela musica, inconsciente quasi, CHRISTOVAM DETMER assentou-se ao piano e executou, irreproduzivelmente, a esquisita criação de Gotschalk, ao depois do que, ceremoniosamente, se despediu de HELOISA…