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II

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Com alegre surpreza das tias, João entrou á hora do jantar, ao meio dia em ponto; mas em breve lhes tirou toda a illusão de que não o interessassem os acontecimentos cujo echo já chegava á Pereira.

Comeu á pressa, foi aperaltar-se para vêr Maria, e saiu logo, de chapeo alto de aba direita, casaca de briche nacional côr de castanha de quatro botões nas abas, collete de grande gola, alta gravata em volta ao collarinho, calça branca e botas altas de canhão amarello.

Merendaria na quinta, não contassem com elle.

E d'ahi a pouco estava na botica, sabendo os ultimos boatos, occultando-se da Joaquinina do Ó e de outras beatas bisbilhoteiras, que rondavam o Juvencio, embiocadas no manto negro dos pés á cabeça, saia de merino preto, o capuz envolvendo-as do taboleiro de cartão até á cintura, onde passava pregueando-se, estreitamente cingido; os braços apanhando os extremos do involucro e rebuçando-o na frente, por fórma a só ficar aberto um pequeno oculo, no extremo do canudo de cartão, que se movia como um bico de passaro, apontando-se sinistramente no faro da curiosidade, permittindo-lhes verem sem serem vistas, para irem delatar no confessionario.

D'ahi a pouco caminhava pelo campo, ao longo de muros de pedra solta, evitando a poeirada, contrariando n'uma marcha de automato o seu incorrigivel acanhamento.

Lembrava saudoso a infancia em que, fugindo á escola de primeiras lettras, saltava paredes á cata de ninhos, de gafanhotos, de cigarras; revolvia os restolhos á procura de grillos, que levava no lenço para casa, para os ter a cantar dentro de um copo.

Puzera termo a essas esturdias a preoccupação absorvente de Maria.

Ao principio, quando de tarde ia trabalhar na escripta, por ter presa a manhan pelos estudos, lamentava essa prisão, impedido de retoiçar no areal, deitar-se á agua, nadar, apanhar conchas, enxugar-se rebolando na areia quente, e ir depois, noite fechada, para a praia das mulheres, no recanto do Castellinho, vel-as metterem-se na agua aos gritinhos, compondo as saias enfunadas pelo mar.

Despertára-lhe novas impressões a intimidade de Maria, e os passeios com ella sob as arvores substituiram d'ahi em diante todos os entretimentos de rapaz.

Escutava-a encantado, admirava-lhe os movimentos, esquecia-se a contemplal-a e, quando retirava ao pôr do sol, voltava-se para traz a vêr se ainda a descobria.

Ia já perto da quinta, mas sempre na mesma indecisão, ora desejando não chegar nunca, ora querendo precipitar o termo da anciedade que o torturava.

Avistou por fim a vivenda dos Folhadaes, os altos telhados em pyramide, a fachada ennegrecida pelo tempo, as janellas com grades de convento, o escudo de armas por cima do grande portão de carro, o extenso muro torreádo por mirantes e caramanchões.

Entrou pelo postigo aberto no grande portão de cedro, pesado de trancas e tranquetas, ferrolhos, corrediças e argolões, e o coração batia-lhe descompassado.

Saccudiu o pó na banqueta de pedra, de onde subiam as senhoras para as andilhas, e trepou a escada exterior, que começava na parede do fundo e cortava em angulo para a da esquerda, receiando uma vertigem, sentindo fugir-lhe a luz dos olhos.

Sentou-se no poial do alpendre, a descançar um momento, a dominar o tremor nervoso, e descobriu Maria ao fim da cerca, com a prima D. Josepha da Esperança e o primo Jorge.

Inclinou-se, descobriu-se, ella correspondeu n'uma venia exagerada, curvando-se muito, no que foi imitada pelos primos, e depois arrancando o chapeu de palha, rustico, de grandes abas, enfeitado de espigas, papoilas e malmequeres colhidos pela quinta, imitou-o cumprimentando como um homem.

Repetiram as raparigas as zumbaias, e o primo deitava-lhes as tranças para a frente, ao que, irritadas, respondiam com palmadas e beliscões.

E quando a creada, de dentro da casa, o convidou a entrar, elle tornou a saudal-as, e as raparigas responderam rindo ás gargalhadas, fazendo-lhe figas.

Transpoz humilhado a porta de imponentes almofadas; nunca lhe parecera tão triste o casarão onde passava horas enfadonhas, junto de um frade tresandando a vinho.

Sabendo os cantos á casa ia encafuar-se no escriptorio, quando a creada lhe disse que o senhor ainda estava á meza, e o guiou á casa de jantar.

—Entra, entra, pequeno—convidou em voz entaramelada o morgado—tu és como se fosses da familia, aqui como o mestre Jacintho, por parte de teu avô. Aquillo é que era um homem, o capitão Silveira! Gente de outro tempo! Hoje só ha fedelhos como tu.

Ergueu pesadamente o corpanzil obeso, cambaleando nas grossas pernas a estoirarem os calções de ganga amarella, copiados de D. João VI, que usava com meia branca e sapatos de fivella de prata.

Já pelos bofes da camisa, pelo collete e pela casaca, nodoas de vinho affirmavam o abuso da bebida, e a mão tremula derramou-lhe o copo, que empunhava de pé, virado para João.

—Á tua, em memoria de teu avô!

Bebeu e tornou a sentar-se, pesadamente, apoiando-se á borda da meza e á grande cadeira de braços, de coiro negro e pregaria amarella, em que presidia á cabeceira, na velha tradição senhorial.

—Grande homem que elle era!—apoiou mestre Jacintho—sem desfazer em quem está presente.

Endireitou o corpo alquebrado, illuminou-se-lhe o olhar, e o velho soldado denunciou-se no cabello á escovinha, na colleira de coiro negro que no pescoço escanzelado saia da camisola de linho de pastor, na marca das bexigas que lhe favava a cara encorreada, como passada ao lustre das mochilas.

Tomou com toda a confiança um copo, bebeu e, sempre de pé, disciplinado até a escravidão, voltou-se para Martinho Vasques:

—O que nós fizemos n'aquelle Russillão!

Attingia a phase piegas a embriaguez do morgado, tremia-lhe o beiço inferior, descahido e inchado, tornavam-se-lhe muito pequeninos os olhos duros, de um azul frio, raiados de vermelho, e o nariz destacava-se-lhe rubro, da côr de telha do rosto apopletico, onde as sobrancelhas asperas, espessas, unindo-se carrancudas, os longos pellos das ventas e dos ouvidos, punham em occasiões normaes a marca da rudeza, da selvageria.

—Se não fosse teu avô não estava eu aqui! Se não me tivesse deitado a mão quando eu caí ferido na retirada da Montanha Negra! Devo-lhe a vida a elle e a este velho!

Mas a lingua emperrava-se-lhe, a sensibilidade engasgava-o de todo.

Ancioso sempre de contar façanhas, no orgulho profissional, o ex-soldado do Roussillon ergueu as mãos á altura dos ouvidos, como a pedir que o escutassem, e começou n'um bom ar de velhinho, tremendo-lhe o bigode branco em escova:

—Quando aquelles malditos franceses caíram sobre nós, eu, mais o meu capitão e mais vossa excellencia, senhor morgado, fomos para cima d'elles como leões, e eram cutilladas de alto a baixo, golpes de rachar de meio a meio...

Ganhava-o pouco a pouco a furia de assassino profissional: passavam-lhe no olhar relampagos sinistros; arregaçavam-se-lhe os beiços, mostrando os dentes pôdres ainda promptos a morder; crispava-se-lhe a mão esquerda em fórma de garra, o pollegar muito desenvolvido, erguido acima dos outros dedos, na ameaça de premir a guela do inimigo; e na mão direita brilhava-lhe uma faca de meza, brandida com furôr, como nos assaltos á arma branca, em que, com as mãos a escorrer em sangue, degolava soldados agarrados ás peças, apertados uns contra os outros, sem espaço para se defenderem no recanto de uma trincheira. Tinham ás vezes que abrir-lhe a mão á força para lhe tirarem a podôa de jardineiro, a que se soldavam os dedos quando brigava com os cavadores, e renovava-se a lição do mal; ou quando o vinho lhe obliterava a consciencia de homem grato, generoso, humilde até á servidão.

Sobresaltado frei Angelico na languidez da digestão, arrotando empanturrado, flatulento, ergueu-se, arredou o habito pardo de franciscano n'um meneio feminil, adquirido em menino do côro; o que ainda parecia, apezar dos quarenta annos, pelo effeminado dos ademanes de aprendiz de clerigo, pelo tom rosado da face gorda e oleosa, a que a larga tonsura dava uma frescura de novo; e desapertando o cordão de nós, clamou na voz de canna rachada, em que outr'ora cantava de falsete, limpando o suor ao lenço de Alcobaça sujo de rapé:

—Veja e aprenda, Joãosinho, como se pratíca a verdadeira egualdade, não a d'esses malditos clubs, mas a que é agradavel ao ceu! Aprenda, que está em edade. N'esta velha casa fidalga fraternisam, libando o vinho de Deus, dando graças ao Altissimo pelas suas obras, a nobreza representada no excellentissimo senhor Martinho Vasques de Linhares Soeiro, morgado dos Folhadaes, o clero n'este humilde servo do Senhor, e o povo n'esse villão, esse ninguem, esse bicho da terra, esse pó da estrada!—e apontava mestre Jacintho.—Exemplos d'estes, só na educação religiosa se encontram. E para isto não é preciso ser jacobino, nem republicano, nem pedreiro livre, nem cuspir na hostia consagrada!

Benzeu-se horrorisado e, sem transição, desceu do tom de prégador:

—Mas o Joãosinho não bebeu nada. Vá lá. Um só não faz mal.

Encheu-lhe um copo, derramando vinho pela toalha, e deitou outro para si.

—Beba á saude do senhor morgado, e vamos para o terraço, que se abafa de calôr.

Habituado áquellas scenas, bebeu satisfeito João. Talvez lhe désse o vinho o animo preciso.

Saíram, o morgado á frente, equilibrando-se ao bordão de marmeleiro polido, no apparato de uma vara de juiz, em gravidade processional; depois o frade, arrastando as sandalias, conchegando a proeminente barriga, levando no regaço o cordão e o rosario, que desapertara; João pisando respeitoso, ao de leve; e por fim o mestre Jacintho, muito curvado, rindo e falando comsigo mesmo.

Assentaram-se a nobreza e o clero na banqueta de azulejo, que corria ao longo da empêna da casa, no terraço voltado para S. Matheus. Sentou-se João sem esperar convite, por direito proprio, considerando-se tanto ou quanto nobre, pelos fóros de fidalguia da espada do avô; e n'essa decisão já reconhecia o effeito do vinho fazendo-lhe perder a usual timidez, e já acariciava a proxima entrevista com Maria. Disciplinado como soldado, e tão firme quanto lhe era possivel, conservava-se mestre Jacintho de pé ante os seus superiores hierarchicos, chalaceando, contando historias de caserna, as mãos perto dos ouvidos, o rosto expandindo-se n'um sorriso de bom velhote.

Depois saíu Martinho Vasques com o jardineiro, a vêrem os trabalhos da quinta, e frei Angelico e João foram para o escriptorio.

Dobrado para a meza de saia de baeta vermelha, limpando no cabello a penna de pato, olhava a furto, pela janella fronteira, a varanda de pedra do fundo da quinta, onde passeavam á sombra da parreira, Maria, a prima que ia jantar com ella e passar a tarde, e Jorge da Feteira, namorado de D. Josepha da Esperança, que apparecia para a merenda.

Tinha ciumes do fidalgote que levava a confiança de primo a beijar Maria á entrada e á saída, e invejava-lhe a liberdade em que andava com as duas raparigas ao fresco da tarde, pela recatada vastidão do pomar.

Afastavam-se, mas elle espionava o quadro recortado pela janella na parede nua, e tornava a vêl-os notando a impaciencia com que o observavam.

Orgulhava-o esse interesse. Sabia que o estimavam, que o esperavam para a merenda, mas não deixava de reconhecer, por parte dos primos reunidos para falarem, o motivo d'essa espectativa, poderem afastar-se deixando Maria entretida com elle.

Deitado em cima da papeleira encetára o frade diversas folhas de papel, mas a penna de pato, rangendo muito, fazia-lhe uma lettra incerta, incomprehensivel, e a mão tremula deixava cair borrões que impossibilitavam a continuação. Deitava-lhe areia, encanudava a folha e despejava-a no recipiente de chumbo, mas os pingos de tinta lá ficavam. E na atarantação de poupar meia folha de garatujas despejou-lhe por cima o proprio tinteiro, borrando o lenço, as mãos, todos os papeis do alçapão.

Rendeu-se então á evidencia, reconheceu-se incapaz de escrever, e lançando-se para o hirto canapé de palhinha, tomou rascunhos de cartas e poz-se a ditar a João.

Entretido com a janella, elle escrevia machinalmente, repetia distrahido, errando o ditado; e fr. Angelico, sentindo a cabeça pesada, crendo seu o engano, envergonhou-se do rapaz e deu por findo esse tão pouco proveitoso trabalho.

Ia emfim desabafar!

Mas o acanhamento assaltava-o de novo, e ainda pensava adiar para mais tarde essa urgente expansão.

Desceu ao pateo de entrada, abriu a cancella que dava para as trazeiras da casa, onde as gallinhas debicavam montes de estrume, e os filhos do quinteiro pulavam nos picos de matto roçado para o lume; passou por entre os chiqueiros, atravessou o jardim, rodeiou o repucho, contornou os taboleiros de onde vinha o cheiro penetrante dos cravos; e ao fim das ruas de buxo, abriu outro portal, e internou-se na quinta, por debaixo da latada que em pilares de pedra a dividia ao meio, deixava dois grandes rectangulos destinados a alfobres e á horta, e continuava contra os altos muros negros de pedra solta ensombrando os passeios lateraes.

Reuniam-se todas as tardes no pomar, ao fim das larangeiras, das nespereiras, por baixo das quaes nascia silvestre a hortense, e conversavam até ao escurecer.

Só encontrou D. Josepha da Esperança e Jorge da Feteira sentados muito juntos, de mãos dadas, indolentemente reclinados no grande banco de pedra, com recosto de azulejos onde caçadores, de chapeo tricorne, perseguiam lebres, acompanhados de cães, quasi de pé como pessoas.

A falta d'ella permittiu-lhe serenar, confirmar-se no proposito de dizer-lhe tudo, de sair por uma vez do equivoco em que vivia.

N'uma aspereza que a tornava mais apetecivel, entrou Maria, saltando irrequieta, o chapeo deliciosamente deitado para os olhos, n'um simples vestido vermelho inteiro, de cintura alta, o collo a descoberto, de tres folhos na saia um tanto curta, deixando vêr o sapato branco, atado por fitas brancas, sobre a meia branca, no tornozêlo.

A sua simplicidade contrastava com o requinte de secia de Josepha, a opulenta juventude trasbordando de um rico vestido verde, de cinco folhos, com capoteira de renda em bicos, sapatos de duraque preto, cabello penteado atraz em cuia, apartado ao meio na frente, grandes tufos nas fontes, um fio de perolas na testa, desvelos de toucador destinados ao primo Jorge, que por sua parte caprichava em vestir grosseiramente á D. Miguel, jaqueta de alamares, cinta, calção, botas de prateleira, bóné azul, cabello puchado para as fontes, cara rapada, porque o bigode denotava á legua constitucional.

Andava pela edade de João, mas parecia mais nova. As doenças da meninice, as convulsões com que a dotára o alcoolismo paterno, as impurezas do sangue azul dos casamentos consanguineos tinham-lhe dado a fragilidade ainda transparente na pallidez, nas fundas olheiras, no descorado dos labios. Por volta dos onze reagira, ganhára forças, mercê do longo tratamento com que o pae gastára muito, na teima de assegurar emfim um herdeiro á casa, depois de tantos morgados e morgadas, cheios de pustulasinhas, mortos no berço.

Eram d'elle os olhos azues, desmaiados, o cabello castanho, e a expressão de aspereza que as sobrancelhas, contrahindo-se, ás vezes denotavam. Mas na boca pairava-lhe a terna brandura com que a mãe outrora se resignava aos beijos roubados por infindaveis legiões de primos.

Afogueada pela pressa com que viera, Maria falou a João, e sentaram-se todos, encruzados, na relva, a comerem maçãs e marmelos assados no forno, trespassados de assucar, que ella trouxera no regaço.

Falou-se da imprevista partida do navio, dos actos do governo da ilha, dando elle noticias com simulada indifferença.

Finda a merenda foram beber agua á pequena cascata do recanto da quinta onde se abrigavam a estufa de ananazes, e as largas folhas das bananeiras; amadureciam maracujás do tamanho de ovos côr de chocolate; desenrolavam-se fetos de entre as pedras negras e vermelhas, fundidas pela lava em filigranas, em lagrimas; abriam em guarda sol as largas folhas ovaes do inhame por cima da valla onde escoava o regueiro, empoçado em nodoas de agrião.

Satisfeita a gulodice, que já lhe ameaçava de pontos negros os dentes miudos e mal implantados, Maria lançou-se para a rêde, que pendia indolente da ramada dos castanheiros, e juntando as mãos sob a cabeça, fez d'ellas e dos braços, a sairem nús da manga arregaçada, o travesseiro em que se reclinou indolente, cerrando os olhos, sorrindo a João.

Elle puchou uma cadeira de vimes e poz-se a baloiçal-a brandamente.

Ganhava-os o odôr estonteante das magnolias, o morno perfume adocicado recendente da estufa.

De mãos dadas afastavam-se pouco a pouco, os primos namorados até, como de costume, desapparecerem de todo.

Correspondia João ao infantil sorriso de Maria, e ha dois annos que não passavam d'ahi.

Estiveram muito tempo sem falar, no prazer mudo de se contemplarem, até que João estremeceu á ideia de a perder.

—Teve noticias do primo?—perguntou-lhe de repente, indo direito ao assumpto, sem preparação.

Ella respondeu indifferente, transportada no brando oscillar da rede:

—Sim. Está bem.

Apparentou desinteresse, mas insistiu:

—Sempre casam?

N'um movimento de contrariedade, que o animou a ir mais longe, disse Maria:

—Bem sabe que sim.

Ficaria outra vez interrompida a conversação, se elle, animado pelo que crêra adivinhar, não se arriscasse mais:

—E gosta?

—De quê?

—De casar.

N'um visivel enfado murmurou:

—Sei lá!

Muito nervoso, repetiu:

—Quero dizer se gosta de casar com elle.

Tirou-se da rede que, preoccupado, João deixára parar e n'um encolher de hombros:

—Se nunca o vi.

Foi lançar-se descontente no banco de pedra, a fronte ensombrada, no gesto do pae.

Ficou João um momento indeciso, e depois approximou-se vagaroso, offendido:

—Vejo que não é minha amiga.

—Porquê?

—Fala-me com mau modo...

—Eu?

—Com frieza, com indifferença...

—Para o que te havia de dar hoje!

E como elle se sentasse, succumbido, soltou uma risada, n'um impeto de volubilidade, e beliscou-o, no seu agreste feitio infantil.

—Isto então é mau modo?

Ergueu-se elle corando, e supplicou:

—Por amor de Deus não brinque commigo!

—Estás amuado?

—Pelo menos agora não graceje, e diga-me só: Gostava de ir para Lisboa?

Abrangeu n'um olhar a casa, o campo, a vida que levava enclausurada, e respondeu:

—Isso gostava.

Retorquiu João em voz estrangulada:

—Não se importava então de me deixar?

Irritada pelo interrogatorio, Maria exclamou, sem o fitar:

—Que pergunta essa!

Elle approximou-se, muito commovido:

—Era uma separação para sempre! para sempre!

—Sim, talvez!

E d'olhos no chão encarava agora as consequencias.

Vendo-a impressionada, João aqueceu:

—E não levava pena nenhuma?

N'um repente de sinceridade, Maria accudiu ingenuamente:

—De me separar de ti, sim.

—Mas não tinha ainda pensado em mim!—queixou-se elle, muito sentido.

—Realmente ainda não pensára.

Começava a sentir-se compromettida, olhava em torno a procurar os primos.

João deixara-se arrastar pela arrebatadora emoção d'esse momento tanta vez sonhado, e tanta vez crido impossivel:

—É porque nunca me quiz bem!

Ella via embaciarem-se-lhe os olhos, tremerem-lhe os labios.

Desculpou-se para não o affligir mais:

—Como querias que pensasse em ti, se isto tem sido uma coisa no ar?

—Mas estão preparados para o embarque...

—É certo que o pae anda com isso ha muito. Mas elle faz e diz tantas coisas sem fundamento, que eu nunca o tive por decidido.

—Nem mesmo o casamento?

—Não pensei a serio em coisa alguma.

E n'um arremesso de creança que os mimos tornaram voluntariosa:

—Mesmo isso do casamento com o primo ha de ser se me agradar.

João estremeceu, desiludido:

—Ah! Então ainda é possivel?

—Só Deus o sabe. Mas se não sympathisar com elle, não ha forças humanas que me obriguem.

—Quer dizer que ainda póde vir a agradar-se?

—Quem sabe!

Cria-o então possivel? É que nunca sentira por elle nenhuma affeição? E a custo João comprimiu um soluço, que não lhe passou despercebido.

—Que tens tu?

Bailando-lhe lagrimas nas pestanas, desabafou:

—Ando como um doido! Perco as noites a pensar que não nos tornamos mais a vêr. Toda a minha vida hei de chorar esta casa...

—Coitado! Faz-te falta o que o pae te dá a ganhar.

Magoou-o a apreciação. Pois não presentia n'elle outro sentimento? Não interpretára nunca o verdadeiro culto que lhe votava, olhando-a absorto, como ás imagens.

Pensou ainda em manter-se incomprehendido, em calar essa revelação. Vinha muito tarde! Não o comprehendera em dois annos de intimidade, não ia agora corresponder-lhe de repente. Mas revoltou-o vêr accentuada a situação de dependente.

—Não ia ali por interesse—protestou.—Os seus deixaram-lhe alguma coisa. Tinha com quê. Era só por ella, para estar ao seu lado, que acceitava o sacrificio do escriptorio.

Impressionou-a a paixão com que falava.

Ainda em tom de gracejo, mas com a voz um tanto abafada, disse sem o fitar:

—Querem ver que te deu para me namorares?

Ficou olhando para a areia vermelha. E como elle permanecesse calado, insistiu, evitando-o sempre:

—Não respondes?

—Fica zangada commigo?—perguntou a medo.

—Não.

—Isso é que fica.

Ella virou-se de repente, e fitou-o com franqueza:

—Zangada porquê?

Intimidou-o essa expressão, que não comprehendia; mas era tarde para recuar. Muito envergonhado, rendeu-se:

—Pois é verdade.

Maria ergueu-se n'um riso forçado:

—Tu, namorado de mim? Tu, meu fedelho! Ora! Não sabes o que dizes.

Ia afastar-se, mas João supplicou:

—Já que me não ama, diga ao menos que me perdôa!

—Tens medo? Descança, não faço queixa ao pae?

—Não se ria de mim, quero-lhe muito, muito!—soluçou elle.—E quando soube que a pretendiam casar em Lisboa, chorei de desespero, porque me costumára a pensar que havia de ser minha mulher.

Ella encarou-o, franzindo as sobrancelhas, como irritada pelo atrevimento do plebeu, do insignificante, irrespeitoso para com o idolo que para todos julgava ser.

—Estás brincando! É lá possivel!

Elle enxugou as lagrimas, conteve se:

—Sinto-o agora, pelo desdem com que me trata.

—É uma creancice.

—Sim. Mas que me perdeu para sempre.

Irritada procurou convencel-o:

—Pois tu não vês que o pae nem quer que eu fale com o primo Antonio, nem com o primo Sebastião desde que se lhes metteu em cabeça pretenderem-me, porque são pobres? E que és tu ao pé d'elles, quasi tão fidalgos como nós? O que diria o pae se soubesse d'isto!

—E a menina que diz?

—Que digo? Não me estás ouvindo?

—Se me estima.

—Bem sabes que sim.

—Muito?

—Vê lá se me entretenho com mais alguem do que comtigo e com a prima Josepha da Esperança.

—E agora, depois do que lhe disse?

Animava-se momentaneamente, olhava-a transportado, n'um lampejo de esperança.

Ella sorriu, bondosa, infantil:

—Já me viste por ventura algum namorado? Todas as raparigas os têm, aos dois e aos tres, e eu nunca achei graça a essas tolices. São brincadeiras estupidas. Mas se gostasse de um homem, muito cá de dentro...

Transfigurou-se, dominou-a uma expressão de alegria, mas conteve-se e exclamou abruptamente:

—Olha, falemos de outra coisa.

Comprehendeu que era preciso acabar:

—Vejo que não quer saber de mim.

—És doido. Então não temos sido tão amigos?

—Oh! Como eu esperava ... não!

—Sabes que mais? És um doido, é o que te digo!

E afastou-se com mau modo.

—Um momento, senhora D. Maria, esqueça esta falta de respeito, antes que me retire para nunca mais voltar.

—O quê? Não estás bom de cabeça rapaz. Então é que o pae desconfia. E o que serás tu nas suas mãos, meu franganito!

—Virei despedir-me com qualquer pretexto ... e nunca mais me tornará a vêr!

Ia seguindo Maria, que se esquivava a novas lagrimas, procurando os primos, aninhados n'algum caramanchão.

Ao descobrirem-os, disse João precipitadamente:

—Obrigado pela feliz illusão em que tanto tempo me manteve, e adeus para sempre!

—Vae com Deus—redarguiu ella, muito saccudida—e pede a Santa Catharina que te dê juizo.

Despediu-se João cerimoniosamente de Jorge da Feteira, de D. Josepha, e retirou-se corrido.

Não se atreveu a sair pela porta principal, á vista de todos.

Atravessou o cannavial, passou ás terras lavradias, saíu pelo portão de ferro que abria para o cerrado, e seguiu ao longo do muro da quinta, encoberto pelas faias e caniçados.

Ao passar debaixo do mirante onde a deixara, surprehendeu pedaços de conversação a seu respeito.

Josepha da Esperança reprehendia a prima:

—Não o devias ter deixado tomar tanta confiança, desde que não o querias. Vocês pareciam mesmo dois namorados, e sempre os tive por isso. Andastes muito mal.

Indignou-se Maria:

—E tu, e as outras? Vocês teem licença para tudo? E se me desse para o namorar? Que tens que vêr com isso? Olha, talvez venha a gostar do entretenimento.

—Com este?

—Com este ou com outro. Parece que é tudo o mesmo, á maneira como vejo variar.

—Isso é commigo, prima?

—É com todas.

—Deu-lhe volta ao miolo! Pois veja se tem mais juizo.

—Olhe, prima, não a chamei para mestra, e não me venha dar lições sem que a tome ao meu serviço.

Voltou-lhe as costas e afastou-se.

Josepha da Esperança ameaçou, despeitada:

—O que tu merecias era que eu fosse contar tudo ao tio.

—Pois experimenta, e verás que te pico os olhos com uma agulha.

Ao perceber o tom das referencias, João apressava o passo, corrido, humilhado, occultando se com os silvados, para que nunca mais o vissem.

Os Bravos do Mindello

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