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III

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Passára João interminaveis dias de angustia, e agora apenas ia á lição de latim, ficando a estudar noite e dia para poder entrar mais depressa na universidade.

Manter-se-ia em Coimbra com a pequena legitima paterna que, para se formar, conservava intacta, sustentado pelas tias, a quem auxiliava com os ganhos de escrevente.

Para supprir as quatro patacas pedira ao Juvencio, e ao doutor Ferraz, que o apreciava das conversas politicas da botica, alguns trabalhos de expediente da junta provisoria, que podesse fazer de tarde e á noite.

Mas a subitas abandonava o buffete, chegava á janella, e sentava-se a contemplar a quinta dos Folhadaes, evocando a derradeira visita.

Resentia-se da frieza de Maria, do desdem transparente nas censuras de D. Josepha da Esperança, do olhar sobranceiro de Jorge da Feteira ao corresponder friamente ao seu cumprimento.

E avaliava que tal devia ser o primo de Lisboa a quem a destinavam, por esse arrogante analphabeto, cheirando a estrebaria, orgulhoso de pegar toiros á unha á saída do curro, de picar a pé á vara larga, de farpear de dentro do caixão a meio da praça, falando com desprezo da liberdade que não comprehendia, odiando a letra redonda que nem soletrava, copiando D. Miguel por fóra e por dentro, dizendo-se, por bravata, capaz de defender de armas na mão o passado, que lhe dava direito de primasia sobre a parte intellectual da nação.

Como fôra ridiculo no seu acanhamento!

Porque não rompera n'um rasgo soberbo, lançando-lhes em rosto alguma dura phrase ouvida na botica, predizendo-lhes a aniquilação fatal da fidalguia, despojada do direito de explorar o povo, annulada pelo plebeu trabalhador, instruido e saudavel, ella, a casta analphabeta, indolente, corroida no sangue por heranças de miserias e de vicios?

Precisava desafrontar-se, lançar-lh'o em cara, citar-lhes os artigos da Carta que confirmavam a Constituição na extincção dos privilegios, no estabelecimento da egualdade.

Mas teria offendido gravemente Maria...

Fôra melhor assim!

Ella não podia pensar como o pae, como o primo.

Tratara-o sempre como um egual e, se manifestára aquella grande estranheza, fôra decerto por ter ouvido de chofre o seu audacioso proposito, sem que uma gradual preparação a habilitasse a encarar aquelle amor como a natural consequencia da intimidade em que viviam.

Maria amava-o, sem duvida; e assim que lhe importariam os preconceitos?

Vibrava na revolta sentimental dos poetas que, em relampagos de genio, previam a declaração da egualdade, queixando-se de que Deus fizesse deseguaes os homens, e lhes desse, impiedoso, olhos e sentidos para escolherem o melhor, e um coração para estalar de dôr; e se fosse poeta glosaria n'um sentimento vivido, para os enviar a Maria como um formidavel protesto, os versos de Gil Vicente:

«Que el amor que aqui me trajo

Aunque yo fuese villano,

El no lo es.»

Já não havia porém villões e fidalgos; perante a lei eram todos cidadãos!

Maria agora sabia tudo e, n'esses longos dias em que se não viam, tinha tempo de meditar.

Julgal-o-ia no seu intimo, evocaria, talvez saudosamente, a jovialidade d'essas tardes!

Que pensaria o fidalgo em não o vendo?

Era forçoso ir lá dar-lhe qualquer desculpa. Não podia desapparecer como um criminoso.

Precisava mesmo mostrar-lhe, e a todos, que não tinha medo.

N'esse dia despedir-se-hia d'ella cerimoniosamente.

Já não era dependente e, se o acolhesse, tratar-se-iam de egual para egual.

Voltaria como visita, ou falar-lhe-ia da canada, e havia de inspirar-lhe confiança, fazendo-lhe vêr como as medidas liberaes, extinguindo distincções, lhe permittiam elevar-se até aspirar á sua mão.

E assim caía de novo na preoccupação politica, sentindo ainda mal seguro esse estado de coisas que provocava um desdenhoso riso a Martinho Vasques, e avinhados raptos oratorios ao frade.

Como sempre que o intimidavam a tranquilla segurança dos adversarios, as más noticias que por toda a parte espalhavam, decidiu ir á botica avigorar a fé na convicção enthusiastica do velho clubista.

Fôra tão forte o abalo soffrido que adiou de dia para dia a visita ao Juvencio e, sem saír mais que para a aula do padre Jeronymo, continuou agarrado aos livros, vendo n'elles, no curso para que o preparavam, a sua melhor desforra.

Alarmou-o uma manhã o boato trazido de fóra pela creada, quando estavam almoçando, de que se ia embora o batalhão, e voltava a ilha á obediencia do senhor D. Miguel. A junta reunia gente armada para impedir o embarque, mas todos diziam que os caçadores eram levados do demonio, e nenhum caso fariam da paisanada.

Não poude encobrir o desgosto, mas não respondeu ás tias, não lhes contestou os commentarios.

D'ahi a pouco saía, muito enfiado, disposto a tudo.

—Que ha de novo, senhor Fulgencio?

Veiu do interior da loja o boticario, um velho alto, secco, ainda robusto, só divergindo dos constitucionaes na cara rapada, olhar inquieto, ardente, bocca energicamente accentuada, expressão decidida, barretinho de clerigo tapando-lhe a calva, muito correcto n'um velho traje de gala, repassado aqui e ali, casaca de seda preta, calção e meia, chinelos em vez dos sapatos de fivela, por causa dos callos.

Aproximou-se n'um ar mysterioso, occultando-se das beatas que iam vigial-o de manto, e disse-lhe baixinho:

—Está reunido o conselho militar. A coisa não ha de ir assim, estejam descançados.

E retirou-se, muito activo, n'um passo miudo.

Seguiu-o João, angustiado.

—Vieram más novas?

Voltou Fulgencio a falar-lhe entre portas:

—Não vieram das melhores, não. Olha, ahi tens gazetas fresquinhas, chegadas hontem, n'um navio da laranja. Vae-te entretendo, emquanto eu avio a gente do monte, para ficar com as mãos livres, se tivermos dança.

Era domingo e, conforme o uso, viera ás compras muito povo do campo. Estava a botica cheia de cabaças, de alforges, de sacos de estopa. Em cima de mezas alinhavam-se tijelas onde Fulgencio, de espatula em punho, ia despejando boiões de unguento.

Devorava João as pequenas folhas, de um palmo de largo, por palmo e terça de alto, a duas columnas, encimada pela corôa portugueza, entre Gazeta e de Lisboa, do titulo.

Vinham cheias de saudações a D. Miguel pela «exaltação ao throno dos seus maiores»; da lista dos «donativos voluntarios», extorquidos pela policia e pelos caceteiros sob a ameaça da denuncia por liberal; de congratulações officiaes pela victoria das tropas fieis contra as rebeldes.

Na ultima pagina do n.o 184, de 4 de agosto, figurava o annuncio do retrato de D. Miguel, em ponto grande; para medalha e caixa de rapé a 40 réis a duzia, em preto, a 240 illuminado; para medalhas mais pequenas respectivamente a 30 e 160 réis; para anneis e alfinetes a 20 e 120 réis.

Publicava a Gazeta n.o 182, de 2 de agosto, o «Assento dos tres estados», em que se declarava D. Miguel rei absoluto, absolvendo-o de haver jurado falso com essa interpretação do juramento, que João lia assombrado: «irrito ou nullo quando cae sobre materia illicita, quando é extorquido pela violencia, quando da sua observancia resultaria necessariamente violação de direitos das pessoas e dos povos, e sobretudo a completa ruina da nação.»

E os jornaes continuavam a bater a nota das felicitações a D. Miguel e ás tropas.

Que significava aquillo?

Não podia deprehendel-o das Gazetas, alheio como estava ha muitos dias ao movimento politico.

Mais aliviado de freguezes, veiu Fulgencio esclarecel-o:

—Sim, foi-se tudo por agua abaixo. Já o sabiamos desde o dia 5, mas a cara era a mesma, para que esses patifes dos miguelistas não se nos rissem nas barbas...

—E as noticias que o doutor Antonio da Silveira foi procurar ao Porto...

—Já nos deram a divisão liberal em retirada para a Galliza ... mas nós: moita, carrasco!

—Pois não poderam manter-se todas essas tropas da junta do Porto?

—Perdeu-os a sua ingenuidade! Tu bem sabes que nós não queremos sangue, nem alçadas, nem perseguições, nem confiscos. Paz e egualdade para todos! Eis como foram até cerca de Condeixa tres mil soldados liberaes, por assim dizer como chamariz a deserções. Mandaram-se proclamações para o campo inimigo, e ao alarme pela aproximação de uma força adversa romperam as bandas o hymno constitucional, para a arrastarem á adhesão. Contava-se vencer sem disparar um tiro, sem derramar o sangue de irmãos!

—Como em Vinte!—exclamou João enthusiasmado.

—Eram os principios! Mas as forças do Miguel, seis a oito mil homens, não quizeram «abraçar os irmãos d'armas», e atacaram na Cruz dos Moroiços, no momento em que todos os chefes, de major para cima, tinham ido assistir ao conselho militar em Coimbra. Foi a «acção dos capitães» e, como tal, as forças sem commando que reunisse os seus esforços, defenderam com valentia as posições occupadas, mas não limparam de inimigos o caminho de Lisboa. Depois o nosso general Refoios, receando que Povoas passasse o Mondego, ordenou a retirada para o Porto.

—E ahi?

—Não se poderam manter. Quando chegaram de Inglaterra os chefes emigrados já era tarde, e voltaram no mesmo vapor que os levára, emquanto a divisão retirava para a Galliza.

—Que desgraça!

—Ou antes, que inepcia. Essa fuga dos chefes no Belfast não me passa d'aqui!

E levou a mão á garganta n'um gesto nervoso.

Sentiu João as lagrimas nos olhos, e fez exforços para não chorar.

Assim ruia n'um momento o futuro em que tanto confiára.

—Então acabou-se tudo?—exclamou em voz estrangulada.

—Qual! Outros virão! Ha de estalar nova revolta, e o Miguel não levará a melhor! E agora que aprendemos á nossa custa, nada de hymnos nem de proclamações. Ha de ser á má cara!

Dava grandes pernadas pela botica, olhando inquieto a praça, onde se juntava muito povo defronte da camara.

Continuou para João, que ficára aturdido:

—Assim o querem, assim o tenham! O exemplo do sangue veiu d'elles. Já começou a trabalhar a forca, mas os estudantes de Coimbra, longe de se intimidarem com o assassinio dos collegas condemnados pela morte dos lentes em Condeixa...

Os Bravos do Mindello

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