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Capítulo 2 — Lizaveta

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Uma circunstância perturbava Grigory muito particularmente, confirmando as horríveis e repugnantes suspeitas que albergava. Lizaveta era uma moça baixita, com pouco mais de um metro e meio, de cara gorducha, rosada e cheia de saúde e idiotice, que não contrastava com a expressão de doçura porque os seus olhos olhavam inquietadoramente fixos.

Viam-na andar sempre descalça e tanto no inverno como no verão só usava uma camisa de tecido grosseiro. A cabeleira, negra e crespa, enredava-se-lhe como lã de carneiro, parecendo um gorro feito de uma mistura de lama, folhas, fios e gravetos. O pai era um alcoólico infeliz que vivia miseravelmente de fazer recados a alguns comerciantes. Viúvo havia muito tempo, doente e colérico, maltratava a filha sempre que esta o visitava. Mas isto acontecia raramente pois ela vivia da caridade das pessoas que consideravam a idiota um ser predileto do Senhor. Os amos de Ilya e outras boas almas, geralmente comerciantes, empenhavam-se em a vestir e calçar, e várias vezes lhe deram botas e samarras para que não sentisse frio.

Deixava-se vestir sem resistência, mas quando chegava a alguma paragem, quase sempre à porta da Catedral, aí deixava as suas galas e volvia a andar descalça e em camisa. Em certa ocasião foi vista por um governador de província nomeado recentemente que vinha passar a visita de inspeção e os seus escrúpulos de novato sobressaltaram-se. Advertiram-no de que era idiota, mas ele achou que uma jovem que andava em camisa alterava a ordem e exigiu providências que foram esquecidas logo que virou costas. Quando o pai morreu, a órfã foi ainda mais grata aos olhos das pessoas piedosas. Todos gostavam dela e nem os garotos a maçavam agora. É bom lembrar que os rapazes das nossas escolas são feitos da pele de Barrabás!

Podia entrar na casa de qualquer pessoa sem que ninguém a incomodasse; antes pelo contrário, era recebida com uma palavra amável e algum socorro. Se lhe davam uma moeda, tomava-a e ia deitá-la na caixa das esmolas de uma igreja ou de um cárcere; se um pão ou um bolo, alegrava com ele o primeiro miúdo que lhe aparecesse. Aconteceu, por vezes, deter uma senhora rica para lho oferecer e ser-lhe aceite com carinho. Ela apenas se alimentava de pão negro e água. A ninguém inquietava a sua presença numa loja onde houvesse ao alcance da mão objetos de luxo ou dinheiro, pois tinham a certeza de que não tocava sequer numa agulha. Dormia de preferência no átrio de qualquer igreja ou nas hortas, onde penetrava saltando as valas de caniços que por então eram a única defesa. Costumava, uma vez por semana, «ir a casa», à dos antigos donos de seu pai, e todas as noites no inverno a fim de dormir no vestíbulo ou no curral. Era para admirar que suportasse aquela vida, mas havia-se acostumado a ela e embora fosse enfezada era de constituição robusta. Andavam enganados os que atribuíam a orgulho a sua conduta. Que orgulho pode ter uma mulher que, por expressão, só lança um grunhido de vez em quando?

E numa noite quente de setembro aconteceu que um grupo de boémios um pouco tocados voltavam do casino, fora da cidade, aproveitando a lua. Ao chegar junto da ponte que atravessava um charco de águas malcheirosas a que chamávamos rio, distinguiram Lizaveta entre as sarças. Pararam a olhar para ela, trocando frases agudas que provocavam gargalhadas satíricas.

Então, um jovem elegante lembrou-se de perguntar se consideravam possível tratar aquele animal como uma mulher e quase todos foram da mesma opinião, negando a possibilidade com gestos de repugnância. Mas Fedor Pavlovitch, que estava no grupo, declarou solenemente perante os outros cinco que não só havia de ser possível como até muito interessante tal aventura... Certo que na ocasião exagerava as chalaças e comprazia-se em adiantar-se uns passos aos companheiros para os divertir, tratando-os de igual para igual, ainda que na realidade apenas o admitissem a título de palhaço. Acabava de morrer a primeira mulher e ele havia posto uma fita preta no chapéu, o que contrastava vergonhosamente com a sua conduta repugnante.

Os companheiros, divertidos, riram daquela inesperada saída e houve quem o estimulasse, mas os demais acharam mal e todos se afastaram sem parar de rir.

Fedor Pavlovitch bem jurou logo que seguiu com eles; e talvez fosse assim, ainda que ninguém jamais saberá a verdade. O caso é que cinco ou seis meses depois toda a cidade falava com sincera indignação da gravidez de Lizaveta, perguntando-se quem teria podido ultrajá-la tão vilmente, e em seguida correu um grave rumor em que se misturava, para o condenar, o nome de Fedor Pavlovitch. Quem o divulgara? Do grupo de foliões só se encontrava um na cidade, respeitável funcionário civil, entrado nos anos e pai de umas moças já crescidas a quem não convinha meter-se no assunto, ainda que para isso houvesse algum fundamento. Fedor Pavlovitch foi execrado por todas as línguas. Pouco se importava ele o que dissessem os benditos comerciantes; a sua reputação não podia estar em pior circunstâncias e o orgulho não lhe permitia «rebaixar-se» a dialogar mais do que com o círculo de oficiais e nobres a quem tanto divertia.

Grigory susteve brigas com toda a gente, saindo tão energicamente em defesa do amo que conseguiu desviar as suspeitas da maioria.

«A moça é que tem a culpa», afirmava, e o cúmplice seria Karp, um criminoso escapado da prisão que, temíamos, se ocultava na cidade e que, efetivamente, durante aquele outono, roubou em três povoados da comarca.

Tudo isto não esfriou a simpatia de que se rodeava a pobre idiota, e a rica viúva de um comerciante, uma tal Kondratyevna, quis tê-la na sua casa desde abril para cuidar dela depois do nascimento. Mas por muita que fosse a vigilância, Lizaveta conseguiu fugir ao sentir as primeiras dores e introduziu-se no jardim de Fedor Pavlovitch. Como conseguiu, no seu estado, saltar a enorme vala é que não se sabe. Uns diziam que devia ter sido ajudada por alguém, outros imaginaram coisas impossíveis. O mais natural é que, exercitada em saltar muros para dormir nos hortos, o tivesse conseguido de qualquer modo, caindo do outro lado e queixando-se.

Grigory correu a buscar Marfa, a quem encarregou de tomar conta de Lizaveta enquanto ele ia chamar um médico vizinho. O bebé salvou-se, mas a mãe morreu ao nascer do dia. Grigory pegou na criaturinha, levou-a para casa e, fazendo sentar a mulher, colocou-lha no regaço, dizendo:

— Um filho de Deus... todos somos pais de um órfão e nós mais do que ninguém. O nosso morto envia-nos este, que nasceu do diabo e de uma santa inocente. Cria-o e não chores mais.

Marfa cuidou do pequeno, que foi batizado com o nome de Pavel, ao qual não tardou que acrescentassem o de Pavlovitch, filho de Fedor. Este não pôs reparos em nada disto, que o divertia, mas negou sempre obstinadamente a sua paternidade. Todos aprovaram que recolhesse na sua casa a criança abandonada, para quem mais tarde inventou o nome de Smerdyakov, segundo o mote da mãe.

E aqui tendes como chegou Smerdyakov a ser o segundo criado de Fedor e vivia com Grigory e Marfa, dedicando-se principalmente a misteres culinários. Falta-me ainda dizer algo deste Smerdyakov, mas custa-me cansar a atenção do leitor com referências domésticas e deixá-lo-ei para quando vier a propósito, no decorrer desta história.

Fiódor Dostoiévski: Os Irmãos Karamazov

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