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Capítulo 6 — Smerdyakov

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Encontrou de facto o pai sentado à mesa, não na sala de jantar, mas sim, como sempre, no salão, que era o quarto mais amplo e mobiliado segundo as exigências da moda antiga: móveis brancos e tão envelhecidos como os tapetes de seda encarnada onde sobressaíam. Entre as janelas, cornucópias em molduras lavradas com paciência e estucadas de branco. Nas paredes, cobertas também de papel branco que saía solto nalguns locais, havia grandes retratos: o de um príncipe que governara a província treze anos antes e o de um bispo já falecido, Deus sabia quando. No canto mais afastado da entrada, via-se um grupo de imagens alumiadas por uma luz que ardia durante toda a noite... não tanto por piedade como para que não ficasse a sala às escuras. Fedor Pavlovitch deitava-se tarde, às três ou quatro da madrugada, e até lá dava voltas na casa e refletia sentado numa cadeira. Era um dos seus hábitos mais arreigados. Às vezes dormia só em casa, mas Smerdyakov geralmente ficava a fazer-lhe companhia, deitando-se num banco.

Quando Aliocha entrou acabavam de almoçar e estavam a servir os doces e o café. Fedor apreciava muito as guloseimas com aguardente. Ivan sorvia o café em silêncio e os dois criados estavam de pé, refletindo no seu rosto a alegria do amo, que ria às gargalhadas. Este riso penetrante anunciou a Aliocha, antes que entrasse, que o pai estava muito contente, mas longe ainda da bebedeira.

— Aqui está! Aqui está! — gritou o velho entusiasmado ao ver Aliocha. — Vem cá! Senta-te! O café é um prato quaresmal e está quente e saboroso. Não te ofereço aguardente para não quebrares o jejum. Queres um pouco? Não, melhor para ti será um copinho do nosso famoso licor. Smerdyakov, abre o armário. É a segunda prateleira, à direita. Toma as chaves.

Aliocha recusou o licor.

— Não importa. Se tu não queres, queremos nós — disse Fedor, radiante. — Mas diz-me... Já almoçaste?

— Sim — respondeu Aliocha, que apenas havia comido um bocado de pão e bebido um copo de kvass na cozinha do Superior. — Tomo apenas uma chávena de café.

— Bravo! Bonito menino! Quer café, venha! Estará bem quente? Sim, está a ferver. É um senhor café, preparado por Smerdyakov, um artista do café, dos pastelinhos de peixe e da sopa à marinheira também. Que sopa! Vem cá prová-la, um destes dias. Avisa antes... mas... não te disse esta manhã que viesses com o colchão e a almofada? E então? Trouxeste o colchão?

— Não, não trouxe — respondeu Aliocha, sorrindo.

— Ah! Mas esta manhã tinhas medo, não é verdade! Já sabes, meu filho, que sou incapaz de te afligir. Ivan, não posso conter a minha alegria quando me olha sorrindo desta maneira. Faz-me rir mesmo sem vontade. Gosto tanto dele! Aliocha, quero dar-te a minha bênção, a minha bênção de pai!

Aliocha levantou-se, mas o pai mudara já de ideias.

— Não, não — disse. — Vou apenas fazer sobre ti o sinal da cruz. Senta-te. Vais ouvir o que estávamos a dizer, que nem de propósito para ti. Vais rir. A burra de Balaão falou há pouco... e como fala! como fala!

A burra de Balaão era Smerdyakov, moço de vinte e quatro anos, de feitio arisco e taciturno, o qual não se devia a caráter tímido ou ferino, pois pelo contrário, mostrava-se orgulhoso e parecia desprezar toda a gente.

Cremos oportuno dizer aqui mais alguma coisa sobre ele. Foi educado por Marfa e Grigory, mas o rapaz cresceu «sem o sentido da gratidão». Afastava-se de toda a companhia e parecia olhar toda a gente com desconfiança. Durante a infância gostava de estrangular gatos e de os enterrar com muita solenidade. Para isto enrolava-se num lençol à guisa de sobrepeliz e cantava e agitava qualquer objeto à maneira de turíbulo, incensando o morto. Fazia tudo isto em surdina e secretamente. Um dia, Grigory surpreendeu-o nesta diversão, e como lhe desse uma sova, o rapaz refugiou-se num canto, onde esteve durante uma semana, a resmungar.

— Este monstro — dizia Grigory à mulher — não tem pisca de carinho por nós; não gosta de ninguém. Serás um ser humano? — acrescentava, dirigindo-se ao miúdo. — Que hás de tu ser, se saíste da lama do quarto de banho...

Smerdyakov não pôde esquecer nunca semelhante humilhação. Grigory ensinou-o a ler e a escrever, e quando o discípulo cumpriu os doze anos começou a explicar-lhe as Sagradas Escrituras, no que o moço adiantou pouco. À segunda ou terceira lição, começaram as suas caretas de desconformidade.

— Por que fazes isso? — perguntou o mestre, olhando-o ameaçador através dos óculos.

— Por nada. Deus criou a luz ao primeiro dia e no quarto, o Sol, a Lua e as Estrelas. De onde vinha a luz nos primeiros dias?

Grigory ficou pasmado. Aquele rapaz olhava-o de maneira sarcástica em que adivinhava o desprezo pelo professor. Este não pôde conter-se:

— Já te mostro de onde vinha! — gritou, dando-lhe uma tremenda bofetada.

O rapaz não abriu a boca, mas esteve uns dias no recanto onde sofria os acessos de enfado e tristeza. Ao fim de oito sobreveio-lhe o primeiro ataque de epilepsia, doença que nunca mais o abandonou.

Quando Fedor Pavlovitch soube disso, mudou bruscamente de conduta para com o órfão, de quem pouco se ocupava ainda que nunca se tivesse zangado com ele. Sempre que o encontrava dava-lhe alguns cêntimos, chegando o seu carinho a mandar-lhe alguns doces da sua mesa sempre que estava bem disposto. Quando soube que o pequeno adoecera, mostrou por ele extraordinário interesse. Mandou vir um médico e não poupou meios para combater a doença que se tornou incurável. Sucediam-se as crises com intervalos de um mês, pouco mais ou menos, variando em violência. Umas eram relativamente ligeiras, outras apresentavam os mais graves sintomas. Fedor Pavlovitch proibiu severamente Grigory de castigar o miúdo e permitiu a este que frequentasse a casa grande. Também proibiu que por algum tempo se lhe exigissem trabalhos de atenção. Um dia, tinha ele quinze anos, Fedor Pavlovitch viu-o muito entretido perante a sua pequena biblioteca, esforçando-se em ler através da vitrina os títulos dos livros, uma bonita coleção de uns cem tomos que talvez o velho nunca houvesse lido. Logo lhe deu a chave.

— Toma, lê. Serás o meu bibliotecário. Estarás melhor sentado e lendo do que a passear pelo pátio. Toma, lê este. — E deu-lhe Tardes da Casa de Campo.

Leu um pouco e não gostou. Sem um sorriso acabou por fechar o livro com frieza.

— Porquê? Não é divertido? — perguntou Fedor.

Smerdyakov ficou silencioso.

— Responde, imbecil.

— Tudo o que diz é mentira — murmurou o rapaz com uma careta.

— Pois vai para o diabo, alma de lacaio!... Aqui tens a História Universal de Smaragdov. Tudo o que diz é verdade. Lê.

Mas ele só leu umas dez páginas. Achava-o pesado. E a biblioteca fechou-se para sempre.

Pouco depois, Marfa e Grigory contaram ao senhor que Smerdyakov se mostrava cada dia mais escrupuloso e afetado. Ficava em frente da sopa durante muito tempo, pegava na colher, voltava a olhar o prato, cheirava-a e, tomando uma colherada, mirava-a à luz.

— Que tem? Alguma barata? — perguntara Grigory.

— Talvez uma mosca — observara Marfa.

O apreensivo moço não respondera, mas fazia o mesmo com o pão, com a carne e com toda a comida. Pegava num bocado com o garfo, aproximava-o da luz e só depois de grande e minuciosa observação se decidia a levá-lo à boca.

— Puf! Que ares de senhor delicado! — murmurava Grigory.

Quando Fedor Pavlovitch soube deste novo capricho de Smerdyakov, decidiu fazê-lo seu cozinheiro e mandou-o a Moscovo para que aprendesse o ofício. Esteve ali vários anos e voltou notavelmente mudado. Envelhecido, pálido, magro e muito efeminado. O caráter era o mesmo: misantropo como sempre, não suportava a companhia de ninguém. Em Moscovo tinha apanhado o hábito de se calar. A cidade desgostara-o e viveu nela sem aprender nada. Um dia foi ao teatro, de onde saiu enfadado para não voltar. Por outro lado chegou de Moscovo muito janota. Tanto a sua roupa interior como o fato de fora eram limpos e feitos por medida. Nunca deixava de escovar-se duas vezes por dia com muita ponderação e gostava de dar lustro aos sapatos até ficarem brilhantes como espelhos. E, na verdade, saiu um excelente cozinheiro. Fedor Pavlovitch fixou-lhe um salário que ele gastava quase todo em roupa, perfumes, cosméticos e enfeites. Parecia sentir tanto desprezo pelas mulheres como pelos homens e pelo que a elas respeitava mostrava-se discreto e completamente inacessível. Fedor Pavlovitch começou a olhá-lo de maneira diferente, e como os ataques epiléticos eram mais frequentes e não o contentavam os pratos de Marfa, disse-lhe um dia, olhando-o de través:

— Isto vai de mal a pior. Devias casar-te. Queres que te procure uma mulher?

Smerdyakov empalideceu de cólera, sem responder, e o amo deixou-o em paz com um gesto de impaciência. A única coisa boa era que tinha absoluta confiança na honradez do mancebo desde o dia em que, muito bêbado, perdeu três notas de cem rublos que acabara de receber e por cujo desaparecimento não deu até ao dia seguinte quando, ao começar a procurá-las, as viu sobre a mesa. Smerdyakov encontrara-as no pátio e pusera-as ali no dia anterior.

— Bom rapaz! — dissera o patrão. — Não vi outro como tu. — E ofereceu-lhe dez rublos.

Fedor Pavlovitch não só acreditava na honradez do criado como lhe dedicava um afeto especial. Ele lá sabia porquê, pois o jovem era pouco sociável com ele como o era com os demais. Quase nunca falava e o mais esperto psicólogo teria tido pouca sorte se pretendesse descobrir naquele semblante os seus pensamentos e intenções. Frequentemente se via parar a meio da sala, do pátio ou da rua e permanecer durante dez minutos como perdido em si mesmo. Dir-se-ia que não matutava, cismava ou refletia, e que sofria antes um rapto contemplativo. O pintor Kramskoy deu-nos um quadro «Contemplação». É um bosque no inverno. No caminho solitário que o atravessa, vê-se um aldeão com um sobretudo e umas botas grossas. Está, ao que parece, absorto em meditação, mas não medita nem pensa; está extasiado em «contemplação». Se alguém lhe tocasse, voltar-se-ia desconcertado, como quem desperta. Mas se lhe perguntassem em que pensava, nada recordaria, embora oculte na alma a impressão que o dominou durante o arroubo. Impressão de impressões gostosas que se têm ido vertendo no seu íntimo, penetrando-o de maneira impercetível e inconsciente. Não sabe porquê nem como. E anos depois de ter acumulado estas impressões, pode suceder que, de repente, tudo o abandone e parta em peregrinação a Jerusalém buscando a salvação da sua alma ou se levante e incendeie a aldeia onde nasceu. Talvez faça, até, as duas coisas. Existem muitos contemplativos entre os camponeses e Smerdyakov era talvez um de entre tantos, que acumulava impressões sem saber porquê nem para quê.

Fiódor Dostoiévski: Os Irmãos Karamazov

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