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I
ОглавлениеNos campos do Mondego, abaixo de Coimbra, a primavera é frequentemente agreste e fria. Quando o vento do mar sopra rijo sobre os brancos lençoes de malmequeres a surgir da terra humida e paludosa, ainda farta das aguas do inverno, as tardes são inclementes para o corpo ávido do repouso e doçura da natureza.
Este rapaz que além se apeou d'uma carruagem, em frente da estação de S. Braz, na estrada que vem dos lados de Albergaria, atravessou a linha conchegando o gabão que o vento desconcerta, e, mal entrado na gare, em que só destaca uma carreta abandonada com poucos fardos, procura onde se abrigue. Estamos todavia n'uma tarde d'abril.
O rapaz seguiu vagarosamente, ao longo da gare; na porta em que leu «sala d'espera» abriu e entrou. A um canto, sobre o duro banco de madeira, dormitava um homem gordo, de lunetas, mãos nos bolsos e chapéu derrubado para os olhos; ao lado uma mulher esbelta e franzina, um olhar brilhante sob o véo que lhe cobria o rosto. O homem levantou-se levemente turbado, com modos submissos, e pareceu hesitar.
—Eu agora... contra a luz..., não distinguia bem. Perdoe v. ex.a! disse dirigindo-se ao recem-chegado.
—Eu tambem, como vinha de fóra e a sala estava um pouco escura, não o conheci á primeira vista. Foi necessario reparar um pouco...
—Então como tem passado v. ex.a depois da sua jornada ao estrangeiro?... Será melhor sentar-nos, acrescentou apressadamente o homem das lunetas sem esperar resposta... V. ex.a tem aqui logar... dizia affastando um cesto de morangos d'um sofá que parecia mais commodo.
—Muito obrigado, muito obrigado... Não se incommode... Em qualquer sitio...
E o rapaz ia a sentar-se quando o outro, abruptamente, o obriga a aprumar-se apontando-lhe a mulher.
—Minha mulher... o sr Claudio de Souza Portugal, um cavalheiro muito illustrado e do meu maior respeito!
Trocaram-se as palavras sacramentaes e todos se sentaram.
—Que extravagante modo de vêr! começou Claudio. Nas cidades, onde não faltam recursos, a Companhia dá-nos uma sala de espera com certo conforto, e aqui, n'este deserto, no meio d'um charco, reduz todas as commodidades dos pobres passageiros a um banco mal pintado e frequentado sabe Deus por quem. Na Suissa chega a haver, nas estações que estão nas circumstancias d'esta, uns pequenos quartos em que se pernoita com agasalho e aceio. Aqui, que barbarie!... Havemos de ser sempre assim; um paiz de toiros ha-de ser forçosamente um paiz de campinos. Tambem tem a sua belleza, é verdade; mas, quando se tem frio, uma manta do Ribatejo e duas taboas de pinho, confessemos, são pouco.
E fitava a mulher, nervoso, contente com esta apparição inesperada, captivo da sua graça.
Ella respondia:—E v. ex.a bem o deve estranhar. Segundo tenho ouvido, fez ha pouco uma linda viagem pelo estrangeiro. Provavelmente, agora mesmo, vae aproveitar a primavera em melhores terras.
—Não, venho aqui apenas para vêr um meu amigo que passa para Lisboa e volto já a Albergaria. Não é sacrificio, para mim, viver ali. Em Paris, em Vienna d'Austria, por toda essa Italia que é a melhor galeria do mundo, no meio de riquezas artisticas sem numero, nunca houve prazeres sufficientes para me apagarem as saudades do meu paiz. Pelo contrario, tinha horas d'uma tristeza prolongada. Creio até que mais d'uma vez caí na fraqueza de chorar. Porque, não sei bem; não eram saudades com um objecto determinado, era uma dôr vaga mas penetrante.
Ella, sorrindo, replicou:—Bem diz o ditado que dá Deus nozes a quem não tem dentes. Só eu aborreço cordealmente a vida de provincia e estou condemnada a soffrel-a. Já não queria Paris nem Vienna, com Lisboa me contentava. Nem isso!... Não posso comprehender o mundo sem muita gente. A Avenida e S. Carlos e o Campo Grande e as praças e as ruas, tudo isso é para mim encantador, e infinitamente melhor que o pó e os tamancos da villa de Albergaria. Eu sei que é de máu gosto não elogiar as bellezas do campo, mas fui educada em Lisboa e hei-de ser lisboeta até ao fim da vida. Não... Parece-me sentir se o comboio. Até já, que nós tambem não saimos, concluiu ella, erguendo-se, com visivel interesse em continuar a palestra.
O comboio entrava na gare e separaram-se, dirigindo se cada um ás carruagens em que descobriam as pessoas que procuravam. Depois, rapidamente, bateu o signal da partida, a confusão de pregoeiros de jornaes e de passageiros que corriam do restaurante dissipou-se, e, novamente, na gare ficaram sós Claudio, os seus interlocutores, e poucos empregados que arrastadamente recolhiam da sua tarefa a dormitar pelos armazens, entre as bagagens.
Claudio approximou-se do par que momentos antes tinha deixado e offereceu-lhe logar na sua carruagem para regressarem juntos a Albergaria.
—Não, muito obrigado, vamos incommodal-o. Temos ali um carrito em que viémos.
Instou; que a tarde estava horrorosa, que iriam talvez um pouco mais agasalhados, que lhe davam o maior prazer com a sua companhia.
—A Emilia dirá, respondeu o homem de lunetas voltando-se para a mulher.
—Ah! por mim, acudiu ella muito alegremente, acceito e agradeço; não sei desprezar tão boa fortuna. Desculpe-me v. ex.a a franqueza... Conheço o apenas ha uma hora e vou dispondo já das suas cousas com uma familiaridade que póde induzil-o em mau juizo...
—Oh! pelo amor de Deus, minha senhora, não diga mais, que blasphemias!... Muito prazer, fico muito reconhecido a v. ex.as.
Encaminharam-se, atravez da linha, para a carruagem, que era um vasto landau tirado por dois possantes cavallos, e Claudio sentou-se em frente de Emilia e do marido.
Apenas sairam da estação, a conversa reatou-se no tom de banal animação em que a vimos começada. Claudio ia inquieto, um pouco embriagado pela belleza da mulher que tinha deante de si.
Examinava-a á claridade d'este poente coado pela leve neblina do norte; ha pouco, na escuridão da sala, mal a tinha visto, só agora podia julgar inteiramente da estranha seducção que logo ao primeiro encontro o impressionára. Emilia era uma mulher de feições quasi vulgares, magra, testa alta, rosto oval com as faces ligeiramente angulosas, a bocca grande, os labios delgados, o nariz secco e pronunciado; mas uma mobilidade d'olhar, de gestos e de sorrisos, desprendidos entre um collar de dentes sem mancha, que enfeitiçava. Com excepção dos olhos que eram soberbos de doçura e languidez, nem uma só feição que merecesse a arte atteniense; ainda assim, um poder d'attracção enebriante.
Com esta superior espiritualidade contrastava a grosseria do marido, trigueiro, quasi calvo, o olhar embaciado, taciturno, todos os signaes de vida interior apagados. Era escrivão de fazenda, chamava-se Ricardo Dias d'Almeida, e na villa conheciam-n'o pelo Canadas, porque a sua medida habitual, nas noites d'alegria, era uma canada de vinho.
A carruagem seguia vagarosamente, pesadamente, a estrada desabrigada que ia ladeando os campos despovoados; o crepusculo approximava-se e a conversação corria sempre viva, sem repouso. Eram Claudio e Emilia que sós a alimentavam, ella não cessando de interrogal-o sobre as suas jornadas, elle descrevendo e contando, ora relembrando as maravilhas de luxo e de arte que tinha visto, ora referindo incidentes alegres da vida nomada. Quando jornadeava mais assiduamente, as paixões não tinham fim, uma cada dia, quasi invariavelmente. No lago de Como o amor fôra grande por uma sueca de cabellos dourados e bocca pequenina, que passara uma tarde com elle na villa Carlota, onde ha plantas exoticas e esculpturas de Canova; mas nenhum como o que tivera por uma ingleza com quem viajara seis horas no Rheno, de Mayance a Colonia. Eram incendios romanticos, labaredas ephemeras a que a sua imaginação por momentos se entregava caprichosamente. O que não pensou quando viu essa rapariga ingleza?! Sonhava-a filha d'um lord que por ali, algures, nas margens do rio, devia ter um castello para descansar no estio. Via-a nas torres, roupagens brancas, tranças ao vento e havia de raptal-a por uma noite de luar montado n'um soberbo cavallo arabe, veloz e nobre. Ao amanhecer andaria tudo em correrias doidas pelo castello, o pae espumando vinganças, os creados atonitos, chorando; e já longe, em mysteriosos campos desconhecidos, o cavallo jazendo extenuado e elle moribundo de fadiga e amor a deixar-lhe nos labios o ultimo alento. Depois, ao cair da noite, os pastores que o sepultavam na montanha e os soluços da sua amada sobre o corpo hirto e frio, e tarde, em tempos distantes, a scena ultima, o perdão do pae e a solidão no convento.
Emilia ouvia attenta esta indiscreta revelação d'uma alma. Com breves perguntas provocava ou novas confissões ou narrativas em que o espirito femenil se deleita. E Paris? Devia ser deslumbrante de luxo e de prazeres. E o Bois e a Opera e os Campos-Elysios e as corridas em Longchamps? Vinham então as descripções de soberbas equipagens e de magnificos espectaculos. E diziam que agora era uma sombra do passado! Um fidalgo francez, com quem Claudio se relacionara, levou-o uma noite, depois da opera, ao Tortoni, quasi deserto, só para lhe mostrar logares que elle reputava celebres. Aqui se sentara o duque de X..., aqui o marquez de Z... Na rua a fila das carruagens não tinha fim. Então, sim, então havia luxo em Paris, dizia o fidalgo. Tambem passara quinze dias em Londres, na season, admirara muito a solidez do luxo britannico e, estava mesmo em dizer, o seu bom gosto, uma sobriedade de linhas e de decoração que tocava o atticismo.
—Mas tudo isso, concluia Claudio, não vale aquelle cantinho, e apontou para fóra da carruagem, atravez dos vidros.
Era quasi noite e estavam em frente das azenhas dos Casaes. Entre os troncos de choupos, as aguas espumantes sarjando a terra e as madresilvas debruçadas nos vallados, entre os vultos mal distinctos que a obscuridade confundia e deformava, a porta do moinho lançava um clarão e ao fundo via-se, em volta da lareira, o moleiro, a mulher e os filhos, abrigados do vento frio que corria no valle, sobre a ribeira.
—Que mau gosto! Perdoe-me a franqueza, respondeu Emilia. É impossivel que o sinta, está a brincar. Ou então, como já me percebeu a fraqueza, quer-me ouvir.
—Não, replicou Claudio, é a verdade. Se vivesse um pouco commigo, havia de convencel-a. Estou certo de que mudaria de sentimentos.
Fez-se um breve silencio; e houve entre os dois como uma commum necessidade de recolhimento intimo. Elle pensava com mágoa quanto a concepção vulgar da belleza estava longe do seu ideal, ella ficára indecisa perante uma affirmação tão cathegorica, porventura instinctivamente subjugada pelo poder de insinuação de Claudio.
—Nem v. ex.a imagina o que isto é, disse Ricardo julgando de boa educação não deixar cair a conversa. Tudo uma miseria! O que eu não sei é como esta gente vive. Só no anno passado houve mais de cento e cincoenta contribuições relaxadas. Isto na predial, porque na industrial, com a lei nova, ninguem paga.
—É verdade, é, são pobrissimos, respondeu pacientemente Claudio, mas a pobreza tambem tem as suas alegrias e até a sua belleza.
Nova pausa, novo silencio, o silencio proprio do contacto de duas almas que se sentem em desharmonia e que ao mesmo tempo se veem attrahidas por mutua fascinação. O certo é que a conversa perdeu todo o movimento e, entre desconnexas interrogações, variando sempre de assumpto, assim chegaram a casa do escrivão de fazenda.
—E então até amanhã, por certo não falta em casa do dr. Carvalho. Tem grande festa, disse Emilia.
—Que remedio! São os annos d'elle e eu sou-lhe tão obrigado...
E no dia seguinte, emquanto Claudio se sentava a uma mesa do whist, ouvia entre duas solteironas o seguinte dialogo:
—Já reparaste como a Emilia está hoje elegante?
—É verdade, já vi. Está bonita. E é singular! Ella que costuma cuidar tão pouco de si...
Só Claudio podia suspeitar o segredo d'aquella transformação. Via a com uma vaga, quasi inconsciente impressão de triumpho e de vaidade satisfeita. Nem sequer sonhava quantas batalhas lhe reservava esta primeira gloria, tão tentadora como traiçoeira na facilidade com que se deixava conquistar.