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Capítulo 1
ОглавлениеJosephine só queria que o iate se fosse embora. Havia centenas de ilhas na Grécia e eles estavam há dois dias ancorados à frente de uma baía de Khronos, a sua pequena ilha. Estava farta de música barulhenta e risos histéricos. Os borguistas até tinham desembarcado na ilha naquela manhã. Ela tinha-se escondido entre as árvores da falésia sobre a praia. As jovens eram impressionantes, bronzeadas, esbeltas e com biquínis quase inexistentes, e os homens eram belos e musculados. Continuavam ali a festa e havia muito álcool e outras coisas que a fizeram franzir o nariz. Só havia um que não bebia, não fumava nem fazia amor na praia. No entanto, todos o rodeavam, era o centro do grupo.
Observou-os com curiosidade e verdadeiro desdém. Não queria julgá-los, mas era evidente que levavam uma vida de privilegiados. O seu pai dizia que os criticava porque nunca tinha entrado naquele tipo de grupos e talvez tivesse alguma razão, mas gostava de usar o cérebro e trabalhar com o pai, um dos vulcanólogos mais importantes do mundo, razão pela qual viviam no meio do mar Egeu. Ela documentava os achados do pai e era indispensável para as suas investigações. Ele era o primeiro a reconhecer que sem ela não conseguiria fazer tanto trabalho, mas ao fim do dia, dedicava-se à sua paixão, a desenhar, a pintar… Restava-lhe pouco papel e telas, mas o seu pai voltaria dentro de dez dias e trazia-lhe sempre material novo. Esta tarde tinha ido até às rochas sobre a enseada com o seu caderno para desenhar o que mais lhe chamava a atenção naquela cena festiva, o homem que lhe parecia mais fascinante por ser diferente. Tinha o cabelo escuro e espesso, as sobrancelhas retas e os olhos claros, não sabia se azuis ou cinzentos. O queixo era quadrado, tinha as maçãs-do-rosto prominentes e a boca era carnuda, firme e séria. Os seus traços eram quase demasiado perfeitos e adoraria estar mais perto para saber a cor dos seus olhos. Embora o mais intrigante fosse a sua forma de sentar-se na cadeira, com os ombros muito direitos e o queixo levantado. Observou-o para comparar o desenho com o homem real e, efetivamente, tinha reproduzido o seu corpo musculoso e os traços, mas a sua expressão não era a acertada. Intrigava-a aquela expressão, o que a levava a observá-lo até tentar entender. Estava aborrecido ou era infeliz? Parecia não querer estar ali com aquelas pessoas. Era um mistério e ela gostava de quebra-cabeças.
Então, ele levantou-se e toda a gente recolheu as suas coisas para voltar para o iate.
Ela alegrou-se e fechou o caderno, mas também se sentiu algo dececionada quando a lancha levou o misterioso homem para o super iate que estava fundeado à entrada da baía. Ele era o homem mais interessante que já tinha visto na sua vida e tinha-se ido embora.
Nessa tarde, ao final do dia, estava a terminar as verificações rotineiras quando ouviu umas vozes, como uma discussão que chegava da enseada. Foi à praia e apurou o ouvido, mas só ouviu o murmúrio do motor do barco. Será que por fim se iam embora? Como de costume, estava iluminado e podia ver os casais que estavam deitados e bebiam na coberta superior.
O iate movia-se, podia ver o sulco nas águas, e lamentou que o seu homem misterioso se afastasse, mas ficou contente por o ruído desaparecer. Continuava a olhar quando ouviu um grito apagado e viu que uma pessoa caía pela borda. Foi na popa, onde estavam pessoas entre as sombras da coberta inferior. Correu até à orla, mas não viu ninguém na superfície da água. Aterrorizava-a que alguém pudesse estar a afogar-se e não podia ficar de braços cruzados. Despiu o vestido de alças e atirou-se às ondas para nadar até onde tinha estado ancorado o barco. Mergulhou, mas estava tudo estava muito escuro. Mergulhou com os pulmões prestes a explodirem. Estava quase a voltar à superfície quando tocou um tecido, um peito, umas costas, um homem… Rodeou-lhe o pescoço com um braço, mas ia precisar de alguma força divina porque os pulmões reclamavam ar urgentemente.
Começou a subir. Pesava-lhe o seu corpo, mas nunca tinha mergulhado com tanta determinação. Tinha crescido no mar, passara a vida a nadar, e sabia que podia fazê-lo porque não estava sozinha. Achava que o destino a tinha levado ali quando ele caiu borda fora e que estava destinada a salvá-lo… e salvou-o. Atingiu a superfície, respirou e levou-o até a praia. Arrastou-o para fora da água e pô-lo de costas sobre a areia seca para que lhe saísse a água da boca e do nariz. Depois, deitou-o de costas outra vez e deu-se conta de que era ele, o seu maravilhoso homem misterioso, o que parecia não tolerar aqueles tontos… Nunca tinha reanimado ninguém, mas o seu pai ensinara a fazê-lo e ainda se lembrava do essencial. Repetiu a operação várias vezes enquanto rezava para receber ajuda divina, não estava disposta a perdê-lo. Tinha de respirar! Então, quando começava a acreditar que os seus esforços eram inúteis, ele levantou um pouco o peito. Voltou a respirar com força na sua boca e ele exalou ar. O seu peito subiu e baixou com a respiração entrecortada, mas estava vivo. Arderam-lhe olhos com as lágrimas e, esgotada, sentou-se nos calcanhares. Salvara-o, mas que fazia com ele? Precisava de ajuda médica e não sabia como pedi-la. O rádio estava estragado. O seu pai levaria um quando voltasse, mas demoraria uns dias. Normalmente, era-lhe indiferente estar incontactável, já tinha estado antes, mas agora era diferente.
Olhou para o mar e só viu o leve resplendor do iate no horizonte. Como era possível que ninguém se tivesse dado conta de que tinha caído ao mar?
Afastou-lhe o cabelo da frente e então deu-se conta de que tinha a têmpora manchada de sangue. Tinha-se ferido antes de ter caído borda fora, ou de o terem atirado.
Ouvira uma discussão, fora isso que lhe chamara a atenção, e o murmúrio do motor. Parecia que lhe tinham batido na cabeça, mas porquê?
Pestanejou. Doía-lhe a cabeça. Tentou sentar-se, mas tudo começou a andar às voltas. Não percebia porque é que tudo parecia tão nublado, mas entreviu uma mulher com ar de preocupada e a cara em cima da dele.
Conhecia-a de algum sítio? Não conseguia pensar e fechou os olhos para se deixar levar pela inconsciência, até que a dor o acordou outra vez. Abriu os olhos e comprovou que era de dia, embora não soubesse se era cedo ou tarde.
Uma mulher movia-se pelo quarto. Tinha um vestido branco, largo e vaporoso. O cabelo, longo e liso, chegava-lhe quase até à cintura. Por um instante, perguntou-se se seria um anjo, se teria morrido e estaria no céu. Tentou erguer-se e sentiu náuseas. Deixou-se cair outra vez sobre a almofada e compreendeu que não podia estar no céu se sentia aquela dor.
O anjo com forma de mulher devia ter ouvido o seu rabujar porque voltou-se e aproximou-se. Era tão jovem e formosa que, de facto, não podia ser real. Talvez tivesse febre e estivesse a alucinar porque ela se ajoelhou ao seu lado com a luz a refletir-se no cabelo castanho claro. Era possível que o inferno estivesse cheio de belezas diabólicas assim.
Por fim estava a voltar a si.
– Olá – cumprimentou-o Josephine em inglês até que se lembrou de que as conversas que tinha ouvido na praia eram em francês e italiano. – Como estás? – perguntou-lhe em francês.
Ele pestanejou os seus olhos azuis, embora sem conseguir focar a visão.
– Como te sentes? – insistiu ela em italiano.
Ele fez uma careta de dor e também respondeu em italiano.
– Tu chei sei?
– Sou a Josephine. Feriste-te, mas já paraste de sangrar.
– Que aconteceu?
– Caíste do teu iate.
– Um iate?
– Sim, estavas com uns amigos.
– Onde estou? – perguntou ele sem deixar de falar em italiano.
– Em Khronos, uma pequena ilha de Anafi.
– Não conheço.
– Ninguém conhece. É propriedade privada e tem um centro de investigação da Fundação Internacional de Vulcanologia… – calou-se quando comprovou que não a estava a ouvir e tinha uma expressão contraída. – Dói-te?
– Sim, a cabeça…
Ela tocou-lhe na testa com a mão e, felizmente, já estava mais fria.
– Ontem à noite tinhas febre, mas acho que já passou. Se conseguires beber, podes tentar tomar um pouco de sopa….
– Não tenho fome. Só quero algo para a dor.
– Tenho uns comprimidos que devem servir, mas acho que antes deverias comer qualquer coisa.
Ele olhou para ela com os olhos semicerrados, como se não a tivesse percebido. Além disso, a barba incipiente endurecia-lhe o queixo. Era impressionante ao longe, mas de perto era devastador. Olhou-a nos olhos e ela sentiu a pulsação acelerada.
– Já se passou quase um dia desde que te tirei do mar…
– Como cheguei aqui? – interrompeu-a ele.
– O barco, o iate…
– Não percebo isso do iate – ele sentou-se entre rabugices de dor e levou uma mão à têmpora, onde a ferida estava a sangrar outra vez. – Quando estive eu num iate?
– Seguramente, desde a semana passada ou mais – ela sentou-se de cócoras para o observar. – Não te lembras?
De que te lembras?
Ele pensou até que por fim encolheu com impaciência os seus ombros bronzeados
– De nada – respondeu ele num tom taxativo.
– Não te lembras de quem és? – perguntou ela boquiaberta. – Não sabes o teu nome e idade?
– Não, mas sei que preciso de uma casa de banho. Podes dizer-me onde é?
Ele fez-lhe muitas perguntas mais tarde e ela tentou dissimular a angústia que lhe causava que tivesse perdido a memória. Preparou um jantar simples e falou com ele enquanto servia os vegetais grelhados e o frango com limão e alho e levava os pratos para a mesa de madeira.
– Acho que deves ser italiano. Foi o primeiro idioma em que me respondeste.
– Não me sinto italiano, mas pode uma pessoa sentir ser de uma dada nacionalidade?
– Não sei – ela sentou-se à frente dele, – embora imagine que se por acaso despertasse noutro lugar que não o meu iria ficar admirada com os costumes.
– Fala-me das pessoas com quem eu estava.
– Eram da tua idade. Algumas raparigas pareciam mais jovens e todos pareciam… privilegiados.
Ele não disse nada.
– Todos estavam a divertir-se muito – prosseguiu ela, – menos tu.
Ele voltou a olhar para ela com os olhos semicerrados.
– Não sei se estavas aborrecido ou preocupado, mas passavas mais tempo sozinho do que os outros. Eles deixavam-te em paz e isso levou-me a pensar que eras o cabecilha.
– O cabecilha? – repetiu ele num tom trocista. – Do quê? De um bando de ladrões?
– Não precisas ser desagradável.
Ela ia para levantar-se, mas ele agarrou-lhe o pulso.
– Não te vás.
Ela olhou para a sua mão. Sentia a calor da sua pele e teve de dominar um estremecimento. Estava esgotada de tanto cuidar dele e de preocupar-se. Tinham sido um dia e uma noite intermináveis.
– Só tento ajudar-te – comentou ela, libertando-se.
– Desculpa. Senta-te, por favor.
As palavras eram amáveis, mas o tom era autoritário. Era evidente que estava habituado a ser obedecido. Sentou-se devagar e agarrou o garfo, mas estava demasiado cansada para comer. Podia notar que a observava e isso não facilitava as coisas. Além disso, já sabia a cor dos seus olhos, eram azul-turquesa, como o mar.
– Pensava que tinhas fome – comentou ela ao ver que não tinha provado sequer a comida.
– Estou à tua espera.
– Perdi o apetite.
– Foi a companhia…?
– A companhia é boa – ela esboçou um sorriso. – Acho que estou demasiado cansada.
– Imagino que tenhas passado a noite inteira preocupada comigo.
Sim. Não sabia se ele sobreviveria. Havia sempre complicações após um quase afogamento.
– No entanto, sobreviveste e aqui estás.
– Sem memória e sem nome.
– Bom, poderíamos arranjar-te um nome.
– Poderíamos…
– Poderíamos dizer nomes a ver se algum te soa bem – ele olhou para ela fixamente e a ela sentiu o estômago encolher-se. – Eu direi nomes e tu vais dizer-me se gostas de algum.
– De acordo.
– Mateo, Marcos, Lucas, Juan…
– Tenho quase a certeza de que não sou um apóstolo.
– Portanto, conheces a Bíblia…
– Sim, mas não gosto deste sistema. Quero o meu nome, ou então não ter nome. Fala-me de ti. Que fazes numa ilha deserta?
– Não está deserta. Fica aqui uma das cinco estações da Fundação Internacional de Vulcanologia. O meu pai é vulcanólogo. Viemos para ficar um ano, mas estamos cá há oito.
– Onde está ele agora?
– No Havai. É professor catedrático na Universidade do Havai. Combina o ensino com o trabalho no terreno. Está em Honolulu, mas voltará no final do mês, dentro de nove dias.
– E deixou-te sozinha?
– Parece-te estranho?
– Sim.
– Para mim é normal – ela encolheu os ombros. – Não sou muito sociável e, além disso, assim posso dedicar-me às minhas coias. Quando o meu pai está aqui, só tratamos das coisas dele.
– E a tua mãe…?
– Morreu pouco antes de eu fazer cinco anos.
– Lamento.
– Não me lembro dela – comentou ela, encolhendo os ombros outra vez.
– Ela aprovaria a vida que levas aqui?
– Ela também era vulcanóloga. Trabalhou dez anos com o meu pai e fizeram o que ele está a fazer agora, mas no Havai. Acho que sim, que aprovaria. Talvez só lamentasse que não tivesse ido à universidade. Eduquei-me em casa, até na educação universitária, mas, segundo o meu pai, tenho mais conhecimentos que os alunos dele, embora não seja o mesmo. Nunca tive de competir para trabalhar, limito-me a trabalhar.
– Qual é a tua… especialidade?
– Também sou vulcanóloga, mas gosto sobretudo da relação com a arqueologia…
– O Vesúvio?
– Sim. Tive a sorte de trabalhar com o meu pai no setor sudoeste do Vesúvio. Não só me fascinam as civilizações perdidas, mas também a capacidade dos vulcões para configurarem a paisagem e reescreverem a história da humanidade.
– Não parece que tenhas perdido nada por teres estudado em casa…
– Segundo o meu pai, não sei comportar-me em sociedade – ela sorriu levemente. – Sinto-me incómoda nas cidades entre muita gente, mas, felizmente, aqui não temos esse problema.
– A tua mãe também era dos Estados Unidos?
– Era canadiana francófona, do Quebeque. É por isso que me chamo Josephine – ele apertou os dentes e os lábios. – Recordarás o teu nome, é só uma questão de tempo.
– Falaste-me em francês, não foi?
– Tentei vários idiomas, mas respondeste em italiano e continuei em italiano. Est-ce que tu parles français?
– Oui.
– E Inglês…? – perguntou ela mudando de idiomas. – Compreendes-me?
– Sim – respondeu ele assentindo com a cabeça.
– Custa-te seguir-me? – perguntou ela sem deixar o inglês.
– Não, é como com o italiano.
Não tinha quase pronúncia estrangeira e parecia mais americano que britânico. Supôs que teria estudado algures nos Estados Unidos.
– Então, importa-te que falemos em inglês?
– Não.
– Mas se te fizer dor de cabeça ou te stressar…
– Não precisas preocupar-te comigo, estou bem.
Ela ia contrariá-lo, mas pensou duas vezes. Era um homem habituado a dizer a última palavra.
Quem era? Por que irradiava poder mesmo naquele momento?
– Fala-me das pessoas que estavam comigo no iate. Conta-me tudo o que souberes.
– Depois de comeres qualquer coisa.
– Já não tenho fome.
– Que estranho, acho que eu também estou a perder a memória.
– Não acho graça – contrapôs ele, com um olhar duro.
– Nem eu. Passaste um mau bocado e tens de recuperar as forças. Como eu sou a tua cuidadora…
– Não gosto de ser mimado.
– Eu não mimo ninguém. Se comeres, conto-te tudo. Se não comeres, terás de aguentar-te porque tenho outras coisas para fazer, além de discutir contigo.
Ele apertou os dentes. Evidentemente, a situação não lhe agradava, mas agarrou o prato com frango e provou… até que acabou por devorá-lo.
– Está muito bom – reconheceu ele, olhando-a nos olhos.
– Obrigada.
– Foste tu que fizeste?
– Sim.
– Como?
– Tenho um congelador e uso o forno do exterior para assar as batatas. O resto faço ao fogo.
– Um forno exterior?
– Também faz umas pizzas belíssimas. Aprendi a usá-lo quando vivemos no Peru. Adorava o Peru. E o meu pai adorava o estratovulcão.
Ela sorriu ao recordar a emoção do pai quando o Sabancaya rugia e começava a lançar cinzas. Se não fosse pelas mulheres locais, teria ficado abandonada. No entanto, acolheram-na e ensinaram-lhe a cozinhar e ela, em troca, cuidava dos filhos delas, assim as mães podiam descansar um pouco.
– E em que outros sítios viveste?
– No estado de Washington, no Havai, Peru e Itália, mas aqui é onde estamos há mais tempo.
– Todos os lugares eram assim tão isolados?
– Não, este é o mais remoto, mas estou muito contente.
– Foi por isso que nos viste na praia e não te apresentaste?
– Somos de mundos diferentes – ela riu-se e retirou-lhe o prato. – Seria um ser exótico no teu mundo.
– Achas que sim? – perguntou ele, franzindo a testa.
– Claro. Não sei estar rodeada por homens bonitos. Não poderia estar a apanhar sol, tenho de estar ativa, estaria a pescar ou a estudar os lençóis freáticos para imaginar a história vulcânica… – ela calou-se por um instante. – Não sou o teu tipo de rapariga.
– Qual é o meu tipo?
– Uma rapariga que parece uma modelo em fatos de banho, que não carega nem a sua própria mala da praia, que se chateia se não tiveres vontade de conversar.
– Muito interessante – comentou ele com um brilho nos olhos azuis.
– O quê?
– Não gostas dos meus amigos. Não o tinhas dito antes, é uma informação nova.
– Não deveria ter dito nada. Não é importante…
– Mas isso diz muito sobre ti.
– Exatamente. Não preciso dizer-te o que sinto, deveria limitar-me a ajudar-te. É indiferente quem eu sou ou o que sinto.
– Podes ter opiniões.
– E expressá-las se servem para algo. Julgar as tuas amigas não serve de nada.
– Não sei porquê, mas pareces ser… especial.
– Sim, não encaixo, nunca encaixei.
– Isso é um pouco fatalista, não?
– Sê-lo-ia, se estivesse a lamber-me as feridas, mas estou aqui porque quero. Não me sinto esquisita aqui, em Khronos, não duvido de mim e isso é bom.
– Estás a dizer que a sociedade te incomoda.
– Sim – ela levou o prato e o garfo para o pequeno lavatório da diminuta cozinha, – mas cresci à margem da sociedade e isso é o natural.
– Nunca viveste numa cidade?
– Em Honolulu?
– É uma cidade a sério?
Ela voltou-se e olhou para ele de sobrolho franzido.
– Claro. Honolulu tem uma história fascinante. No Havai há mais coisas que não só as praias e o surf. No entanto, não lhe disse que já não gostava de voltar, que havia demasiados carros e pessoas, e era por isso que tinha ficado em Khronos enquanto o seu pai estava lá.
– Vocês eram uns doze na praia – prosseguiu ela enquanto se sentava. – Sete homens e cinco mulheres. O iate era enorme, um dos maiores que já vi. O teu grupo ia à praia durante o dia para banhar-se e apanhar sol. Também havia muita bebida e toda a gente se divertia.
– E na noite que caí borda fora…?
– Havia música e festa, como sempre. Os teus amigos estavam na coberta superior. No entanto, o que me chamou a atenção naquela noite foi uma discussão na popa. Ouvi vozes em crescendo. Foi por isso que me aproximei do mar.
– Eu estava a discutir?
– Sim – ela franziu o sobrolho. – Bom, não sei se eras tu. Ouvi uma discussão, um grito e algo a cair à água. Não pude ver bem e imaginei que alguém se teria atirado à água, mas quando não veio ninguém à superfície, assustei-me e…
– Resgataste-me.
– Não sabia que eras tu – repostou ela, incomodada. – Só sabia que alguém estava em apuros.
– Não acho que fosse fácil.
– Não, mas aterrorizava-me que alguém pudesse afogar-se.
– Arriscaste a vida por um desconhecido.
– De que serve mover-me como um peixe na água se não puder salvar alguém de vez em quando? – preguntou ela num tom desenfadado para aliviar a tensão.
– Teria morrido se não fosses tu – respondeu ele sem sorrir.
– Mas não morreste. Já só falta recuperares a memória.
Josephine sorriu, levantou-se e abriu um pouco as portadas. Conseguia sentir o olhar dele cravado nela. Corou e a sua pulsação acelerou. Olhava-a com atenção e intensidade. Fazia-se sentir-se inquieta, ela queria alisar a saia e ajeitar o cabelo, queria estar bonita… Abanou a cabeça. Não podia ser quem não era. Já tinha tentado isso em Honolulu e fora um desastre.
– A julgar pela tua pronúncia – prosseguiu ela, – poderias ser da Bélgica, França, Itália, Suíça, Sicília, Aargau e até dos Estados Unidos. Tens um sotaque dos Estados Unidos.
– Não me sinto americano – contrapôs ele.
– Então, apagamos os Estados Unidos da lista. Já só restam seis possibilidades.
– Sim, vamos reduzindo a lista.
Ela riu-se, mas parou de rir quando viu as nódoas negras que ele tinha na testa.
– Gostaria de saber o que aconteceu. Fizeste essas marcas durante a queda ou antes?
– Eu perguntei-me o mesmo – respondeu ele. Ela olhou para ele demoradamente, sem saber se deveria expressar as suas preocupações, até que ele disse exatamente o mesmo que ela tinha estado a pensar.
– Se não tiver sido um acidente, tudo muda, não é?