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De Areteu a Esquirol—Confusão dos delirios systematisados com a melancolia—A monomania intellectual e as suas fórmas depressiva e expansiva.

Se conheceram os delirios systematisados, não deixaram d'isso documento os escriptores que precederam a nossa era. É sómente a datar do primeiro seculo, em Areteu e Celio Aureliano, que encontramos incontestaveis e inequivocas referencias aos perseguidos.

Occupando-se dos melancolicos, escrevia, com effeito, o primeiro d'estes medicos: «Muitos receiam que lhes propinem venenos; os seus sentidos adquirem um redobramento de finura e de penetração que os torna suspeitosos e de uma habilidade extrema em verem por toda a parte disposições hostis»[1]. Pelo seu lado, Celio Aureliano, fallando dos mesmos doentes, affirmava que muitos «experimentam uma desconfiança continua, um permanente receio de imaginarias armadilhas»[2].

[1] Areteu,De Melancholia, apud Trelat, Recherches historiques sur la folie, pag. 10

[2] Vid. Trelat, Obr. cit., pag. 38.

A confusão que n'estas passagens se nota entre perseguidos e melancolicos, subsistirá, como veremos, até muito perto de nós e merece explicar-se desde já.

Definindo a melancolia «animi angor in una cogitatione defixus», Areteu caracterisava esta doença por duas ordens diversas de factos a que dava igual valor: de um lado, o phenomeno emotivo, consistindo n'um estado de angustia animi angor, do outro, o facto intellectual de uma concepção, delirante absorvendo e fixando o espirito (in una cogitatione defixus). Pouco a pouco, porém, a consideração de um delirio limitado foi, talvez por mais apparente, predominando sobre a de um estado mental depressivo na caracterisação da melancolia, como se vê nos auctores que succederam a Areteu. Procurando, com effeito, differenciar a melancolia da mania, elles não o faziam pondo em contraste os estados emotivos que acompanham estas vesanias, mas proclamando que na primeira o delirio é limitado, unico e absorvente, ao passo que na segunda elle é multiplo, geral e dispersivo.

Repetindo-se atravez dos tempos, esta doutrina que faz prevalecer o elemento intellectual sobre o emotivo, conquista de tal modo as opiniões que no seculo XVII melancolia e delirio parcial tornam-se termos equivalentes. Assim Sennert a definia: «Uma concentração da alma sobre a mesma idéa ou um delirio que se exerce sobre um pensamento, falso quasi exclusivo».[1]

[1] Vid. Morel,Traité des maladies mentales, pag. 54.

Nenhuma idéa de emoção depressiva e dolorosa se encontra n'esta e analogas definições, em que, pelo contrario, a unidade do delirio figura como elemento exclusivo. O angor animi de Areteu desapparecera, restando apenas da antiga definição o conceito de um espirito absorvido in una cogitatione. Logicamente, pois, incluiram os medicos do seculo XVII o delirio de grandezas no quadro clinico da melancolia. Sob o seu ponto de vista, com effeito, tanto valem os perseguidos como os megalomanos, porque uns e outros são, no dizer de Sennert, doentes «cuja razão se acha pouco alterada ou apenas alterada em relação a um objecto», isto é, por definição, melancolicos. Entre estes collocava o auctor que acabamos de citar, um doente julgando-se monarcha do Universo e cuja razão, só parcialmente lesada, lhe permittia «dissertar perfeitamente sobre as mais graves questões». Plater, ao lado dos melancolicos sitiophobos «receiando envenenamentos e accusando de hostilidade e perfidia os seus mais intimos amigos», collocava doentes «possuidos das idéas de opulencia e de realeza».

A unidade do delirio e não a natureza d'elle ou das emoções que o acompanham, constituia no seculo XVII, como se vê, a caracteristica dos estados melancolicos. De resto, Sennert explicitamente affirmava que «na melancolia o delirio é muitas vezes alegre».

Os medicos do seculo XVIII acceitaram unanimemente a doutrina que no quadro clinico da melancolia fazia entrar a titulo de variedades os delirios de perseguições e de grandezas. Para Sauvages, por exemplo, o delirio exclusivo caracterisava a melancolia; mais explicito, Lorry descreveu como fórma d'esta vesania «um delirio parcial exaltado com paixão excitante».

A primeira metade do nosso seculo não trouxe modificação sensivel a estas idéas. Rusch descrevia em 1812 duas variedades melancolicas, uma triste, tristimania, outra alegre, aménomania. Pinel admittia igualmente duas fórmas de melancolia: uma depressiva e outra ambiciosa, caracterisadas por um delirio parcial. «Nada mais inexplicavel, diz elle, e, todavia, nada mais verificado que a existencia de duas fórmas oppostas da melancolia. É algumas vezes uma explosão de orgulho e a idéa chimerica de possuir immensas riquezas e um poder sem limites, outras vezes o abatimento mais pusilanime, uma consternação profunda e mesmo o desespero»[1].

[1] Pinel, Traité médico-philosóphique sur l'aliénation mentale, pag. 165.

Sob diversa nomenclatura, Esquirol propagou, sem as alterar no fundo, as idéas dos seus antecessores. Designando pelo termo infeliz de monomania o grupo dos delirios parciaes, acceita duas variedades ou especies: uma, depressiva, a lypemania, outra, expansiva, a monomania propriamente dita. A lypemania, que não é senão a tristimania de Rusch ou a melancolia de fórma depressiva de Pinel, comprehende entre outras variedades o delirio de perseguições, ainda então innominado; a monomania propriamente dita, que equivale á aménomania de Rusch e á melancolia de fórma expansiva de Pinel, é por elle definida «um delirio parcial ou monomania alegre», e comprehende os delirios de grandezas, não só o idiopatico, mas, como se vê nos casos que aponta, o symptomatico da paralysia geral, ao tempo ainda não descripta.

Recebendo a influencia tradicional dos seus predecessores, Esquirol transmittiu-a, reforçada pela sua grande auctoridade, aos alienistas que lhe succederam na primeira metade d'este seculo. É documento d'isso o extraordinario successo da doutrina das monomanias, aliás psychologicamente erronea, clinicamente infecunda e juridicamente perigosa.

No seu Tratado das Doenças Mentaes affirma Esquirol que o termo monomania adquiriu direitos de cidade pela, introducção no diccionario da Academia Franceza, e felicita-se por isso. E, todavia, esse termo é confuso, porque no proprio livro do mestre nos apparece com significações diversas, ora designando, como vimos, delirios parciaes, ora obsessões e impulsos, isto é, um conjuncto de factos heterogeneos e de significação clinica diferente. Primitivamente creada para designar o mesmo que a melancolia dos antigos—uma affecção parcial do entendimento, acompanhada quer de tristeza, quer de expansão, a palavra monomania foi insensivelmente generalisada pelo proprio Esquirol no sentido de exprimir uma doença, ou desvio parcial de qualquer faculdade: ao lado de uma monomania intellectual, tem logar uma monomania affectiva e uma monomania impulsiva. Delirios systematisados, emoções procedentes de idéas obsediantes, impulsos cegos e irresistiveis, tudo entra no quadro da monomania—o mais amplo, diz Esquirol, de toda a classificação.

De sorte que, se os antigos, desviando a palavra melancolia do significado que Areteu lhe dera, chamaram a um só grupo delirios do caracter diverso e lançaram assim na sciencia uma grande confusão, Esquirol não fez senão augmental-a pela creação das monomanias.

Como quer que seja, o immenso e, por innumeros titulos, justificado prestigio d'este observador fez correr a palavra e a doutrina. Sem duvida, objecções foram bem cedo erguidas contra ambas por Falret, Delasiauve e outros, que negaram a existencia de delirios circumscriptos a uma só idéa, affirmados na palavra, ou pozeram em relevo a solidariedade das funcções mentaes, contradictada pela doutrina. «Todas as faculdades, escrevia Falret em 1819, participam em maior ou menor grau das desordens intellectuaes; de resto, sempre que uma idéa falsa invade a intelligencia, o seu poder contagioso exerce-se sobre as outras, de sorte que sob um delirio preponderante véem-se estabelecer delirios secundarios e derivados que não tardam a invadir todo o intendimento»[1]. Pelo seu lado, Delasiauve escrevia em 1829: «Póde acaso limitar-se o circulo d'acção em que uma idéa dominante deve exercer ou realmente exerce a sua influencia?» E mais tarde ainda: «O delirio dos monomanos não é nunca tão circumscripto como se pretendeu; a verdadeira monomania é rarissima!»[2] Todavia, a criticas d'esta ordem redarguiam Esquirol e os seus discipulos que nem a palavra monomania significava unidade de delirio, nem a doutrina necessariamente implicava que a lesão de uma faculdade não podesse fazer-se sentir sobre as outras; para elles, a monomania designava uma lesão parcial e preponderante, mas não unica e independente, das faculdades.

[1] Falret, Des maladies mentales

[2] Delasiauve, Les Pseudomonomanies

«Tem-se negado, escrevia Esquirol, a existencia dos monomaniacos, dizendo-se que os alienados não deliram nunca sobre um só objecto, mas que sempre n'elles há perturbações da sensibilidade e da vontade. Mas, se assim não fosse, os monomaniacos não seriam loucos.»[1] Pelo seu lado, Marcé escrevia: «Nunca os que crêem na existencia das monomanias pensaram em negar a solidariedade das faculdades intellectuaes no monomaniaco. Reconhecendo que o delirio é raras vezes limitado a um só ponto, crêem, no emtanto, dever conservar as monomanias a titulo de grupo distincto.»[2]

[1] Esquirol,Des maladies mentales, tom. II, pag. 4.

[2] Marcé, _Traité pratique des maladies mentales,_pag. 351.

Voltemos, porém, ao nosso restricto assumpto.

A monomania intellectual de Esquirol, caracterisada por um delirio limitado de natureza alegre ou triste, não é senão a melancolia dos antigos medicos. Para aquelle, como para estes, era a extensão dos conceitos falsos o criterio para classificar as loucuras em que ha compromisso da intelligencia: de um lado, a mania, manifestando-se por um delirio geral e dispersivo, do outro, a monomania, symptomatisada por um delirio parcial e fixo.

Se a estas duas especies accrescentarmos a idiotia e a demencia, entrevistas por Pinel, mas só definidas por Esquirol, a estupidez descripta por Georget, e a paralysia geral, estudada por Calmeil, encontramo-nos em face da classificação das psychoses que até ao meiado do nosso seculo a França inteira adoptou. Ora, dentro d'esta classificação, não teem logar distincto e proprio, como se vê, os delirios systematisados: o de perseguições é descripto como uma variedade lypemaniaca, e o de grandezas é confundido com as manifestações symptomaticas de outras doenças mentaes.

A Paranoia

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