Читать книгу Resumo elementar de archeologia christã - Joaquim Possidonio Narciso da Silva - Страница 9
INTRODUCÇÃO[1]
ОглавлениеOs monumentos historicos ou simplesmente artisticos são os marcos que assignalam os passos, mais ou menos firmes, vagarosos ou apressados, que os povos vão dando no caminho da civilisação. Porém não se pense que, relativamente a esses padrões, a cultura de uma nação deva ser avaliada sómente pela significação d'elles, por mais gloriosa que seja, ou por mais que se aprimorasse n'elles a arte, mas sim tambem pelo apreço e respeito com que essa nação vela pela sua conservação.
Sobreleva Portugal a todas as nações na alta significação dos seus monumentos, porque não commemoram unicamente façanhas militares e virtudes christãs e civicas, communs a outros povos. Não recordam só mil acções de valor, de coragem e de abnegação, praticadas na defensa da patria, ou para alargamento das suas fronteiras, ou para honra e lustre do seu nome. Mas fallam tambem os nossos monumentos d'essas arrojadissimas emprezas de navegações e descobrimentos, com que os portuguezes abriram de par em par as portas á moderna civilisação, levando a luz do evangelho, atravez de mares ignotos, ás mais longinquas regiões do globo.
Quasi todas essas glorias, que doiram as paginas da nossa historia, foram memoradas por nossos maiores com a fundação de um templo, acanhado e singelo, ou grandioso e opulento, segundo o permittiam a rudeza dos tempos, ou a florescencia da nação, bem como o animo e posses dos fundadores.
As convulsões do sólo, a pouca illustração dos reedificadores, e modernamente a sanha brutal dos demolidores, têem destruido ou desfigurado muitas d'essas auctorisadas testemunhas dos tempos heroicos de Portugal. Este vandalismo, que nos degrada do gremio das nações cultas, não está, infelizmente, ainda de todo proscripto d'entre nós. Os poderes publicos ainda não prestam aos nossos monumentos toda a attenção e vigilante solicitude que, para a sua conservação, elles demandam, e a honra e bom nome do paiz com tanta justiça reclamam. E não basta que se attenda á conservação dos monumentos commemorativos dos grandes factos historicos, e ao mesmo tempo opulentos d'arte. Merecem o nosso apreço e cuidados todos os padrões que interessam, de qualquer maneira, aos annaes da nação e á historia da arte.
Não obstante os differentes elementos de destruição, que tem actuado entre nós, ainda existem de pé n'este reino não poucas egrejas anteriores á fundação da monarchia, ou contemporaneas do nosso primeiro rei, ou construidas sob o sceptro dos seus immediatos successores. São pequenos e de construcção mesquinha todos esses templos, tendo por feição principal a mesma simplicidade e pobreza, que distinguiam n'essa epocha o viver da nação. Todavia, embora o acanhamento das proporções, e a simplicidade da architectura corram parelhas com a pobreza das memorias historicas, todas essas egrejas são exemplares de subido valor para a historia da arte em Portugal, tanto mais quanto é tristemente certo, que os grandes templos, levantados nos principios da monarchia, têem sido mascarados e desfigurados, por occasião das reedificações, como aconteceu ao de Alcobaça, á Sé de Lisboa, e a outros, ou desappareceram, como o de Santa Cruz de Coimbra e o de S. Vicente de Fóra, em Lisboa, para em seu logar se edificarem outros mais vastos e mais sumptuosos.
Pois essas preciosas reliquias de tão remota antiguidade que têem resistido ao duro embate das tempestades no correr de tantos seculos, zombando até agora dos cataclysmos da natureza e dos furores do camartello, acham-se presentemente ameaçadas, pelo menos algumas d'ellas, de perderem, em reconstrucções dirigidas sem amor da arte, e sem respeito aos monumentos de remotas éras, as suas primitivas e venerandas feições.
E ao mesmo passo vão desapparecendo das velhas parochias sertanêjas as suas antigas alfaias, vendidas por uma bagatella, a titulo de alcançar meios para reparação do edificio, e os seus vasos sagrados dos seculos anteriores ao XVIII, de muita belleza e primôr artistico, a troco de outros de fabrica moderna, mais luzentes e vistosos, porém destituidos da formosura e elegancia das fórmas, e da delicadeza e perfeição do trabalho esculptural, que dão fóros universaes de preeminencia á ourivesaria, principalmente dos seculos XV e XVI.
Os compradores d'objectos d'arte e de industria, antigos, que vem a Lisboa todos os annos do estrangeiro, sobretudo de França e da Allemanha, percorrem as nossas provincias em todas as direcções; apparecem em todas as cidades, nas villas e nas proprias aldeias, tentando com dinheiro á vista os possuidores d'essas preciosidades, que não sabem aprecial-as, desconhecendo-lhes o valor.
É mister por honra do paiz, e por exigencia imperiosa dos interesses publicos, que se trate de pôr algum côbro, quando não possa obstar-se inteiramente, á assolação ou deformação d'aquelles monumentos da antiguidade, e a esta continua expropriação das nossas riquezas artisticas, documentos irrecusaveis do alto grau de florescencia nas artes, e por conseguinte de civilisação, que Portugal attingiu n'esse glorioso passado.
Um dos meios inquestionavelmente mais adequado, seria oppôr a essa torrente devastadora a illustração e o zelo dos parochos, illustração e zelo provenientes de conhecimentos especiaes para saberem apreciar aquelles objectos, ricos d'arte e de memorias piedosas, que os estranhos nos cobiçam, e que os nacionaes malbaratam por ignorancia.
Se os parochos tivessem algumas noções de archeologia religiosa, não consentiriam, certamente, que as suas egrejas perdessem, com feições bastardas, o typo primitivo que as ennobrecia, nem haviam de tolerar, que fossem despojadas, por compra ou troca, dos seus vasos sagrados e alfaias antigas, que são nos templos verdadeiros brazões da sua nobreza, e testemunhas authenticas, eloquentes na sua propria mudez, do amor da religião dos nossos antepassados, que n'elles se casava com o amôr da patria. E não limitariam esses parochos a sua acção benefica, sem duvida, a salvaguardar as preciosidades artisticas das suas egrejas; mas não deixariam tambem, em casos identicos, de dispensarem aos parochianos os conselhos do seu saber e da sua experiencia.
Foram estas considerações retemperadas pelo affecto que todos devemos á terra, que nos serviu de berço, e ás Santas Crenças, que recebemos dos maiores, que moveram a Real Associação dos Architectos e Archeologos a elevar ao esclarecido juizo dos Prelados Portuguezes o pedido de instituirem nos seus respectivos seminarios uma cadeira de archeologia religiosa.
É uma sciencia muito complexa a archeologia, não ha duvida, pois que cada uma das partes, que a compõem, e que se subdividem, a seu turno, em outras partes de materia amplissima para o estudo, constitue um ramo importante dos conhecimentos humanos, que demanda muita applicação para ser bem sabido.
Porém, no que diz respeito á archeologia religiosa é um estudo muito limitado, facil e agradavel, e que póde restringir-se, querendo abrevial-o, estabelecendo o ponto de partida da invasão dos povos septemtrionaes e destruição do imperio romano; ou dos tempos mais proximos da fundação da monarchia portugueza. O que é mister é que se dê nos seminarios aos futuros parochos a instrucção precisa para que conheçam os differentes estylos architectonicos, empregados nos templos do christianismo; a epocha da sua introducção em Portugal, e as modificações, que tiveram aqui, determinadas pelo estado da nossa civilisação e pelos habitos e costumes da sociedade. É indispensavel, tambem ministrar-lhes eguaes conhecimentos em relação á ourivesaria religiosa, e ás mais artes liberaes e mechanicas, que, no correr da éra christã, têem concorrido com os seus productos para o serviço dos altares, e para a ornamentação das egrejas.
Os parochos assim instruidos não deixarão de apreciar devidamente, e de velar com verdadeiro zelo pela conservação dos edificios e dos objectos concernentes ao culto, venerandos pelas tradições religiosas e pela consagração dos seculos, e dignos de grande estima pelo seu valor artistico ou archeologico.
Ignacio de Vilhena Barbosa.