Читать книгу Coração em dívida - Ким Лоренс - Страница 5

Capítulo 1

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Cercado de tapeçarias de um valor incalculável, Ivo Greco percorreu o corredor em direção às enormes portas de vidro. Era obrigatório que as portas permanecessem fechadas para que se mantivessem os níveis adequados de luz e humidade para a boa conservação das antiguidades.

Do outro lado das portas ficavam os aposentos do seu avô, e era para aí que se dirigia. Há dois dias, o avô tinha exigido a sua presença e ninguém fazia esperar Salvatore Greco.

Embora Salvatore, um homem com uma grande fortuna e muito poder, costumasse dizer que respeitava as pessoas que lhe faziam frente, a realidade provava precisamente o oposto. Desde os seus oito anos, quando Salvatore ficara a cuidar dele e do seu irmão, que Ivo era plenamente consciente de como era fácil irritar o avô. Tinha acontecido um dia antes de fazer anos, quando o seu pai decidiu que a vida sem a sua falecida esposa deixara de fazer sentido.

Ivo encontrara o corpo sem vida do pai e o avô tinha-o encontrado a ele.

No meio daquele horror, Ivo recordava claramente a força dos braços do avô, a segurança que lhe tinha oferecido ao pegar-lhe ao colo e em afastá-lo daquela cena que lhe tinha causado pesadelos durante toda a sua infância.

Já adolescente, Ivo sabia o muito que devia ao avô, apesar de saber que Salvatore não era nenhum anjo, mas um homem duro e cruel, nem sempre justo e quase impossível de satisfazer.

Ainda assim, fosse ele como fosse, fizesse ele o que fizesse, Salvatore era a pessoa que o salvara daquele inferno.

Ivo cruzou as portas e penetrou num corredor com muito mais luz graças a uns enormes janelões com uma espetacular vista para o mar Tirreno que cintilava em azul-turquesa sob o sol matinal da Toscana.

Os aposentos do seu avô ocupavam a zona mais antiga do edifício e incluíam as torres quadradas do século XII construídas por um dos seus antepassados. A enorme porta do estúdio estava aberta e Ivo entrou. Quase levou as mãos ao bolso interior do casaco do fato para retirar os óculos de sol e pô-las, tal ele era aquele reflexo branco e cromado.

Cinco anos atrás, o avô tinha mandado arrancar os antigos painéis de madeira que cobriam as paredes, tal como os livros, e agora a decoração era moderna e quase hospitalar. «Eficiente», tinha sido a palavra utilizada pelo seu avô quando lhe puseram monitores nas paredes. A única coisa que se tinha salvado do mobiliário anterior era a antiga secretária de madeira que dominava a sala.

A ampla e sensual boca de Ivo esboçou um sorriso ao recordar a ocasião em que tinha admitido ter saudades do velho estúdio, provocando ainda mais gozo ao acrescentar que gostava do cheiro dos livros velhos. Aparentemente, isso tinha confirmado a suspeita do avô de que ele era um estúpido sentimental.

Ivo tinha aceitado o insulto com um encolher dos seus largos ombros, consciente de que se Salvatore realmente pensasse isso sobre ele não o teria posto à frente da divisão de Informática e Comunicações da Greco Industries; embora, na verdade, o seu avô tivesse tido esse generoso gesto porque não acreditava que ele fosse durar muito tempo no cargo.

Naquele momento, a sua gratidão tinha sido sincera, apesar de Ivo saber que a intenção do avô era cortar-lhe as asas. Tinha esperado que o jovem Ivo fracassasse; mais ainda, esse tinha sido o objetivo: que ele fracassasse e publicamente.

Mas Ivo tinha gorado essas expectativas, recusando ao avô a oportunidade de ser ele a salvá-lo de um suposto apuro. O que tinha causado uma grande frustração a Salvatore, um homem que gostava de controlar tudo.

E, até à data, Ivo tinha carta-branca.

Seria isso que iria mudar?

Não tinha tendências paranoicas, mas também não acreditava em coincidências e, que o seu avô escolhesse aquele momento para falar com ele, momento que coincidia com a recente fusão a nível global que ele negociara, despertara-lhe as suspeitas. Era significativo que a dita fusão levasse a um crescimento do departamento de Informática de Greco Industries, já que a este não era dada a mesma relevância que a outros departamentos. Agora, este setor iria concorrer em importância com outros ramos da empresa mais relacionados com o lazer, o imobiliário ou a construção… Até ao momento, Salvatore tinha-se contentado com a glória que, indiretamente, o sucesso do seu neto lhe trazia, mas talvez isso já não fosse suficiente. Iria anunciar-lhe que queria intervir pessoalmente no departamento de Informática e Comunicações?

Ivo considerou a possibilidade com mais curiosidade do que preocupação. Tendo em conta como Salvatore era dominador, esta situação hipotética fora sempre uma possibilidade real, mas ele já tinha decidido deixar a empresa antes de ceder o controlo que tinha.

«Estás à procura de uma desculpa, Ivo?»

Ivo franziu as suas escuras sobrancelhas ao mesmo tempo que aclarava a garganta.

Na verdade, sabia que nunca deixaria de cumprir as suas obrigações; o mesmo acontecia com o seu avô, que nunca o tinha abandonado. Ivo não era como o seu pai, nem como o seu irmão.

– Bom dia, avô.

Rondando os oitenta anos de idade, Salvatore Greco mantinha um aspeto imponente. A sua pessoa não mostrava nenhum sinal de fragilidade; no entanto, ao voltar-se para olhar para o neto, este pensou, pela primeira vez na vida, que o seu avô era um idoso.

Talvez fosse por causa da luz matinal que incidia diretamente no seu rosto, expondo claramente as profundas linhas na testa, tal como as de ambos os lados do nariz, e que desciam e contornavam a boca.

Estes pensamentos abandonaram-no assim que o avô falou. Na voz de Salvatore não havia sinais de fragilidade nem de velhice quando disse:

– O teu irmão morreu – Salvatore sentou-se na sua cadeira de costas altas por trás da sua enorme secretária.

Ivo, com o olhar perdido, deu voltas na sua mente às palavras do avô sem conseguir percebê-las claramente.

– Eu vou encarregar-me de tudo pessoalmente. Estás a compreender, certo?

Ivo fez um esforço por controlar as diferentes emoções que o assaltavam. O peso que sentia no peito mal lhe permitia respirar.

– O funeral? – perguntou Ivo. Porém, nada daquilo lhe parecia possível, a situação não lhe parecia real. Bruno, nove anos mais velho do que ele, trinta e nove anos… Como podia uma pessoa morrer aos trinta e nove anos?

Não, não podia ser. Tratava-se de um engano, tinha a certeza. Sim, era um terrível engano. Se o seu irmão tivesse morrido, ele já saberia.

– Fizeram-lhes o funeral no mês passado, acho – respondeu o avô com frieza.

As palavras ecoaram na cabeça de Ivo. Precisava de sentar-se. Sentou-se. Andava há semanas de cá para lá, com toda a normalidade, sem saber que o irmão estava morto. Abanou a cabeça.

– No mês passado?

O avô olhou para ele e, sem uma palavra, agarrou uma garrafa e um copo que estavam numa bandeja na sua secretária, deitou um líquido âmbar no copo e passou-o ao neto.

Ivo negou com a cabeça, sem cometer o erro de interpretar o convite como um gesto de consolo. O seu avô era incapaz de consolar alguém. Para Salvatore, mostrar qualquer tipo de emoção era uma fraqueza. E essa era a educação que Ivo tinha recebido.

– Disseste «fizeram-lhes o funeral»? – perguntou Ivo, agora que o seu cérebro começava a funcionar.

O sentimento de perda era quase físico, algo que jurara a si mesmo não voltar a sofrer. Tivera de cuidar de tudo sozinho depois do abandono de Bruno e, por isso, prometera a si mesmo nunca mais voltar a contar com alguém, porque não queria voltar a sofrer como tinha sofrido. E agora, aqueles sentimentos latentes voltavam à vida.

– A mulher estava com ele.

– A sua esposa – declarou Ivo com ênfase.

Só tinha visto a mulher do irmão numa ocasião e isso fora já há catorze anos. Samantha Henderson tinha sido a responsável por o seu irmão mais velho o ter abandonado, o irmão que ele outrora adorava. Apesar de ter-lhe implorado que não se fosse embora, que não o deixasse sozinho. E quanto tempo lhe tinha levado aceitar que Bruno não voltaria para o levar com ele, tal como lhe tinha prometido?

«Estúpido», disse a si mesmo pensando no jovem inocente que fora anos antes. Bruno tinha-lhe dito o que ele desejava ouvir. A verdade era que o irmão nunca tivera a intenção de voltar para ir buscá-lo: abandonara-o.

Era uma constante na sua vida: a primeira pessoa que o tinha abandonado fora o seu pai; depois, Bruno. Uma pessoa que atraía aquele tipo de sofrimento devia ser estúpida, mas Ivo não o era.

Com os anos, tinha chegado à conclusão de que estar sozinho lhe dava força. Não iria permitir que alguém voltasse a fazê-lo sofrer. Não procurava amor, o amor tornava os homens fracos, vulneráveis.

Até agora, tinha sido fácil evitar o amor. E o mesmo acontecia com as relações sexuais. O amor não o afetava, mas a lealdade era outra coisa.

O avô nunca lhe tinha exigido carinho, mas sim lealdade, e Ivo achava-o merecedor dessa lealdade. Salvatore era a única pessoa com quem sempre tinha podido contar, um homem que não fingia ser o que não era. Aquele velho era um demónio, mas ninguém podia acusá-lo de ser hipócrita.

Bruno tinha sido o seu neto preferido. O seu herdeiro.

Ivo, que tinha adorado o irmão, não se tinha importado com isso.

Esperara sempre que ele acabasse por tornar-se um rebelde, que fracassasse. Corria o rumor que era igual ao pai, que tinha herdado os seus defeitos, a sua fraqueza.

Ivo tinha decidido provar a todos os que pensavam assim como estavam enganados. Ele sabia muito bem que o seu pai tinha sido uma pessoa fraca, só um homem fraco se suicidaria deixando sozinhos os dois rapazes sem mãe por não poder viver sem a mulher que tinha amado.

A sua mãe devia ter sido uma mulher especial. Pelo menos, era sempre isso que lhe tinha dito Bruno. Mas Ivo não se lembrava dela e também não se permitia recordar o seu pai, desprezava-o.

A vida do irmão tinha sido muito diferente da dele. Bruno tinha sido um rapaz brilhante, o herdeiro do império do avô. Talvez por isso as consequências por se ter rebelado contra o avô tivessem sido tão extremas.

Salvatore tinha escolhido uma esposa para Bruno, um casamento de conveniência, a filha única e herdeira de um homem quase tão rico como Salvatore Greco e de alta linhagem, algo tão importante para o seu avô como o dinheiro.

O irmão dele tinha deixado tudo para ir viver com a mulher que amava quando Ivo tinha apenas quinze anos. Aparentemente, tinha estado a viver num lugar frio e solitário, uma ilha escocesa. Bruno tinha sido o fraco, não ele.

– Ninguém te informou da sua morte? – perguntou Ivo ao avô fazendo um esforço por compreender o que estava a ouvir.

O avô arqueou as sobrancelhas.

– Sim, o advogado do teu irmão informou-me da sua morte. Ah, e a irmã da mulher dele enviou uma carta, escrita à mão – acrescentou Salvatore, trocista. – Com uma letra quase ilegível.

Ivo, com uma fúria mal contida, abanou a cabeça. Mas também se viu tomado por um irracional sentimento de culpa que se recusava a reconhecer e que o fez estremecer.

– Portanto, sabias? – questionou Ivo apertando a mandíbula.

O avô confirmou com um encolher de ombros.

– E não achaste oportuno informar-me? – acrescentou Ivo sem mostrar a cólera que se tinha apoderado dele.

– De que teria servido, Bruno? – perguntou o avô com um verdadeira tom de desafio na voz sustendo o olhar do neto.

Ivo apertou os dentes. O seu avô, aparentemente sem ter consciência disso, chamara-lhe Bruno.

– Não pensaste que poderia ter querido ir ao funeral?

Tê-lo-ia feito? Nunca o saberia, pensou com ironia.

– Não, não me ocorreu. Cortaste com ele há anos, quando deixou de ser teu irmão. E… tu não és um hipócrita – Salvatore arqueou as sobrancelhas com desdém, – não é?

Ivo levantou a cabeça e os seus olhos escuros e rasgados cravaram-se no rosto do avô. O rubor que tinha tingido as pronunciadas maçãs do rosto e a sua pele morena dissipou-se. Abanou a cabeça como se estivesse a acordar de um sonho.

– O Bruno contatou-me há dezoito meses. Queria que nos víssemos – declarou Ivo com o olhar perdido, pelo que não viu a sombra de fúria que cruzou a expressão do avô.

– Encontraram-se?

Ivo virou a cabeça. Se realmente tivesse deixado de gostar do irmão, sentiria tanta dor como a que sentia naquele momento?

Ivo respirou fundo e endireitou os ombros. Toda a gente devia assumir a sua responsabilidade sobre os seus próprios atos.

– Não, não nos encontrámos.

Uma decisão de que, a partir de agora, talvez se arrependesse por toda a vida. O irmão tinha querido uma reconciliação, mas ele recusara. Porquê? Por que não lhe tinha perdoado, por que tinha querido castigar Bruno?

Sentiu desprezo por si mesmo, culpa e arrependimento.

– Pensava que tinha parado de tentá-lo – comentou Salvatore como se falasse consigo mesmo.

– Parado de tentá-lo?

– O Bruno manteve-se à distância depois de eu ter conseguido a ordem judicial, mas continuou a enviar cartas até… Enfim, no final teve de dar-se por vencido – Salvatore franziu o sobrolho. – Quando foi isso…? Bom, é indiferente, teve de cessar quando os advogados o contataram e lhe comunicaram que eu vos deserdaria a ambos e que isso seria culpa dele.

Levando uma mão à cabeça, Ivo procurou assimilar o que acabava de ouvir.

– Queres dizer que o Bruno tentou vir buscar-me?

Salvatore soprou.

– Queria a tua custódia. Consegues acreditar?

Bruno não tinha mentido, Bruno não o tinha abandonado.

– O Bruno voltou.

Salvatore estalou os dedos com impaciência.

– Nenhum tribunal lhe teria dado a tua custódia tendo em conta o seu antecedente penal.

– Um antecedente penal?

– Suponho que não sabes, mas o teu irmão, quando estava no colégio, juntou-se a más companhias e apanharam-no com uma pequena quantidade de… Foi fácil de solucionar, mas ficou no cadastro.

– Drogas? O Bruno? – Ivo não sabia nada daquilo. Que mais lhe tinham escondido durante todos aqueles anos para o proteger?

Ele tinha renegado o irmão apesar de Bruno não se ter esquecido dele! A descoberta deixou-lhe um mau travo na boca.

Mal tinha começado a assimilar tudo o que o avô lhe tinha dito quando este voltou a surpreendê-lo.

– O bebé…

– Qual bebé?

– O teu irmão tinha um filho, um menino, chama-se… bom, o nome que lhe puseram não tem importância. Mas esse é o motivo pelo qual quero que vás à Escócia, à ilha de Skye, embora suponha que saibas onde vivia o teu irmão; provavelmente, numa cabana perdida, sem eletricidade nem água corrente. A questão é que quero que vás buscar o menino. O seu lugar é aqui, connosco. Ainda que o seu pai fosse um idiota e a sua mãe… Enfim, o menino é um Greco.

– Como…? – Ivo baixou as pálpebras e engoliu em seco para aliviar o nó que sentia na garganta. – Como morreram?

– Estavam a escalar e tiveram um acidente; aparentemente, estavam os dois pendurados a uma corda e esta rompeu-se. Uma testemunha diz que ouviu o teu irmão gritar para que a sua mulher cortasse a corda, mas ela não o fez… – pela primeira vez, Ivo imaginou ouvir emoção na voz do avô.

– O Bruno adorava as montanhas – disse Ivo com voz suave.

– Sim, e olha como acabou! – exclamou o avô com amargura. – Se não lhe tivesse dado para escalar não teria conhecido essa rapariga… Uma ceramista que vivia numa gruta.

Algo exagerado. Porém, Samantha estava muito longe de ser uma dessas mulheres modelo da grande sociedade com as quais o seu irmão costumava sair antes.

«Amor à primeira vista», tinha dito Bruno.

Como se tivesse sido inevitável! Ivo não tinha acreditado que fosse possível e continuava sem acreditar. Era a desculpa de um homem fraco, um homem que ele estava decidido a não ser.

Era uma questão de escolha.

De repente, a convicção desse mantra que há anos repetia para si mesmo diminuiu.

– Falei com os advogados, mas informaram-me de que não há forma de anular o testamento.

– Deixou um testamento? Que diz?

– Isso é irrelevante.

Ivo não concordava, mas não disse nada. Estava a pensar no filho de Bruno, o menino que ele não iria abandonar. Tinha virado as costas ao irmão, mas não faria o mesmo ao sobrinho.

– Eram muito jovens, demasiado jovens para morrer. E essa mulher, a irmã, com o apelido Henderson…

Ivo não sabia que Samantha tinha uma irmã.

– Qual é o nome próprio dela?

– Não sei, tem um nome escocês… Fiona… Ah, não, Flora, creio.

– E tem a custódia do menino?

Ivo aferrou-se à ideia de que Bruno tinha um filho. Assim, talvez conseguisse ultrapassar o sentimento de culpa que o corroía. Ou seja, devia concentrar-se no menino, não na culpa. Mas… «Não se trata de ti, Ivo, mas do teu sobrinho», lembrou-se a si mesmo esboçando um meio sorriso sem sinal de humor.

O avô, de repente, deu um murro na secretária.

– É ridículo. Essa mulher não tem nada! – exclamou Salvatore com desdém.

– Se queres fazer parte da vida do menino, talvez devas aprender a pronunciar o nome dela – sugeriu Ivo.

– O que não quero é que ela faça parte da vida do menino. Essa família é culpada por eu ter perdido o meu neto.

Era o ponto de vista do avô e a forma de ver as coisas que lhe tinham inculcado. E, por enquanto, não via motivo para considerar a situação de outra maneira.

– Diz-me, isso não se vai repercutir no meu trabalho, avô? Talvez devesses ser mais realista e aceitar a situação.

Salvatore semicerrou os olhos.

– Foi isso que aprendeste comigo? Aceitar as situações? – atirou Salvatore. – Fiz-lhe uma oferta mais do que generosa! Mas recusou-a.

– Ofereceste-lhe dinheiro em troca da custódia do menino? – o seu avô parecia ter perdido a subtileza e a sagacidade que o caracterizavam. – E surpreende-te que recusasse?

– Sei perfeitamente porque o fez. É estéril, não pode ter filhos, por isso agarra-se ao menino – declarou Salvatore sombriamente. – A carta que me enviou, muito sentimental, a convidar-me a ir ver o rapazito… Não quero que essa família tenha nada a ver com a criança! Têm conseguido privar-me…

A voz do idoso tremeu e os seus olhos pareceram ficar aguados. De sofrimento ou de ira?

Ou só pelo facto de que alguém tinha tido a temeridade de o contrariar?

Em qualquer caso, o idoso engoliu em seco e voltou o rosto. A sua repentina vulnerabilidade era evidente, em contraste com a força de uns anos atrás, muito diferente do momento em que teve de tirar do quarto um pequeno Ivo que tentava fazer o seu pai viver metendo-lhe comprimidos na boca. Precisamente os mesmos comprimidos que ele tinha tomado para se suicidar, pensando que eram medicamentos que o curariam, sem compreender que o seu pai tinha morrido de uma overdose desses comprimidos.

Salvatore queria agora resgatar outro menino, tal como tinha feito com ele. Para Salvatore, era uma questão de linhagem.

«E tens o direito de criticá-lo?», perguntou-se Ivo a si mesmo. «Para ti, é uma questão de aliviar o teu sentimento de culpa».

Ivo endireitou os seus largos ombros. De repente, deu-se conta do que o avô queria realmente: criar aquela criança por ser parte de Bruno.

– Obtiveste esta informação por tua conta ou é do domínio público?

O avô, em jeito de resposta, encolheu os ombros e olhou para ele com ressentimento.

Ivo não insistiu. Não o preocupavam os limites que Salvatore cruzava alegremente. O facto era que, à margem da culpa que sentisse e decidido a compensar a sua rejeição ao seu irmão, identificava-se com as motivações do avô.

E não sentia necessidade de se desculpar por isso. Orgulhava-se de ser italiano, da cultura e da língua do seu país, tal como Bruno. Pensar que o filho de Bruno pudesse ser privado disso era incentivo suficiente para ultrapassar certos limites. A lealdade que devia ao seu apelido era inquestionável, algo profundo, por isso o tinha magoado tanto o abandono do seu irmão. Bruno tinha recusado o que lhes tinham ensinado a respeitar.

Mas não o tinha recusado a ele, Bruno tinha voltado para levá-lo.

E agora devia saldar a dívida com o seu irmão, estava decidido a fazê-lo. Criar o seu sobrinho devidamente seria, verdadeiramente, isentar-se.

O avô, aparentemente recuperado, declarou:

– Temos de encontrar uma maneira de a pressionar, mas não tem feito nada.

– Referes-te a nada que se possa utilizar contra ela?

– Corre o rumor de que teve relações com um futebolista, mas o futebolista não era casado na altura.

– Nesse caso, que queres que faça? Que rapte o menino?

Se o seu avô lhe tivesse respondido afirmativamente à pergunta não teria ficado tão perplexo como com a resposta que Salvatore lhe deu.

– Quero que te cases com essa mulher e que tragas o menino para aqui. Os advogados dizem que isso te dará direitos. Conseguir a custódia do menino será simples depois do divórcio.

Ivo lançou uma gargalhada feita de pura incredulidade. Quando tinha sido a última vez que se rira à frente do avô? Sem saber porquê, evocou mentalmente o riso do irmão. Ao partir, Bruno tinha levado também os risos daquela casa.

– Já acabaste? – perguntou Salvatore quando o silêncio voltou a reinar na sala.

– Parece que já pensaste muito neste assunto.

– Vais dizer-me que não conseguirias fazer com que se apaixonasse por ti, se quisesses?

– Obrigado pela confiança que tens em mim – disse Ivo com ironia ao mesmo tempo que se punha em pé. Então, pôs as mãos na secretária e acrescentou, pronunciando lentamente cada palavra: – Não quero fazer isso.

Tinha chegado à porta quando o seu avô declarou nas suas costas:

– Estou a morrer e quero que tragas o menino para aqui. Queres que o filho do teu irmão seja criado com uma desconhecida e que não aprenda o seu idioma, que não desfrute das vantagens que o seu apelido lhe dará? És assim tão egoísta?

Ivo voltou-se muito devagar e cravou os olhos no enrugado rosto do avô. Sim, via-o envelhecido.

– Isso é verdade?

– Achas que diria algo assim se não fosse verdade?

– Sim – respondeu Ivo sem vacilar.

Salvatore lançou uma gargalhada e pareceu satisfeito. Evidentemente, sentia-se lisonjeado.

– Quero manter alguma dignidade no que é um processo lamentável. Não vou aborrecer-te com os detalhes desagradáveis, mas estou a morrer e quero ver o menino. Fazes-me esse favor?

Ivo soltou devagar o ar que tinha estado a conter nos pulmões.

– Não posso prometer-te nada – respondeu Ivo fazendo uma promessa a si mesmo: não ia deixar o menino nas mãos de Salvatore, mas levaria para ali o sobrinho e iria protegê-lo, continuamente, da influência tóxica do avô, tal como Bruno o tinha protegido a ele.

O avô sorriu.

– Sabia que não me dececionarias, Bruno.

Coração em dívida

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