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Paisagens são repetições

FERNANDO PESSOA

Fragmento

habituar-se com o corpo

que não se acomoda à cadeira

que não se encaixa à altura da mesa

que não foi feito nas proporções da sala de estar

habituar-se com a necessidade de restringir os gestos

os movimentos elementares

quase todos calculados

o hábito que pouco a pouco adere à pele

como o perfume do cigarro

que se molda à roupa em ambientes fechados

com pouca circulação de ar

é preciso manter as portas e janelas abertas

se há brisa

abro a porta e te convido

pode entrar

te observo com o canto dos olhos

sentada em minha poltrona azul-marinho

viajo em alguns sentimentos pequenos e desajustados

como a preocupação com os vidros abertos

e um certo nojo pelo toque do carpete nos pés

te convido para sentar, te ofereço um café

e subitamente

sou detida pelas paredes

como se de um minuto a outro a sala se estreitasse

e um corredor comprido e desajeitado

se armasse entre nós

(…)

para Juliano Pessanha

Poema para duas vozes:

oculta, detrás destas linhas, uma origem cada vez mais remota (às vezes tenho medo de escrever porque posso estilhaçar meu rosto) as palavras nascem para fazer algo morrer —foi o que ela disse (fiquei imaginando as coisas que não posso escrever, que não posso deixar morrer) desviar o pensamento fútil para pensamentos mais nobres (a nobreza esta no tema?) quais são as coisas que não podem morrer em mim? (Defendo-me detrás de um rosto frágil porque não sei construir máscaras de Veneza—minhas fantasias se desfazem na chuva, não aprendi a prever o tempo) quais os andaimes que me trouxeram até aqui? (não quero descer. não posso. aqui me mantenho, nestas linhas. depois descanso a caneta ao lado e me vou. pouco resta de mim. oculta, cada vez mais remota. pouco fica da minha carne —não quero ser origem. quero despertencer.

¿Qué será de ti? / Como vai você?

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