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XVI O administrador interino.

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Padua era empregado em repartição dependente do ministerio da guerra. Não ganhava muito, mas a mulher gastava pouco, e a vida era barata. Demais, a casa em que morava, assobradada como a nossa, posto que menor, era propriedade delle. Comprou-a com a sorte grande que lhe saiu n'um meio bilhete de loteria, dez contos de reis. A primeira ideia do Padua, quando lhe saiu o premio, foi comprar um cavallo do Cabo, um adereço de brilhantes para a mulher, uma sepultura perpetua de familia, mandar vir da Europa alguns passaros, etc.; mas a mulher, esta D. Fortunata que alli está á porta dos fundos da casa, em pé, falando á filha, alta, forte, cheia, como a filha, a mesma cabeça, os mesmos olhos claros, a mulher é que lhe disse que o melhor era comprar a casa, e guardar o que sobrasse para acudir ás molestias grandes. Padua hesitou muito; afinal, teve de ceder aos conselhos de minha mãe, a quem D. Fortunata pediu auxilio. Nem foi só nessa occasião que minha mãe lhes valeu; um dia chegou a salvar a vida ao Padua. Escutai; a anecdota é curta.

O administrador da repartição em que Padua trabalhava teve de ir ao Norte, em commissão. Padua, ou por ordem regulamentar, ou por especial designação, ficou substituindo o administrador com os respectivos honorarios. Esta mudança de fortuna trouxe-lhe certa vertigem: era antes dos dez contos. Não se contentou de reformar a roupa e a copa, atirou-se ás despezas superfluas, deu joias á mulher, nos dias de festa matava um leitão, era visto em theatros, chegou aos sapatos de verniz. Viveu assim vinte e dous mezes na supposição de uma eterna interinidade. Uma tarde entrou em nossa casa, afflicto e desvairado, ia perder o logar, porque chegara o effectivo naquella manhã. Pediu a minha mãe que velasse pelas infelizes que deixava; não podia soffrer a desgraça, matava-se. Minha mãe falou-lhe com bondade, mas elle não attendia a cousa nenhuma.

—Não, minha senhora, não consentirei em tal vergonha! Fazer descer a familia, tornar atraz... Já disse, mato-me! Não hei de confessar á minha gente esta miseria. E os outros? Que dirão os visinhos? E os amigos? E o publico?

—Que publico, Sr. Padua? Deixe-se disso; seja homem. Lembre-se que sua mulher não tem outra pessoa... e que ha de fazer? Pois um homem... Seja homem, ande.

Padua enxugou os olhos e foi para casa, onde viveu prostrado alguns dias, mudo, fechado na alcova,—ou então no quintal, ao pé do poço, como se a ideia da morte teimasse nelle. D. Fortunata ralhava:

—Joãosinho, você é creança?

Mas, tanto lhe ouviu falar em morte que teve medo, e um dia correu a pedir a minha mãe que lhe fizesse o favor de ver se lhe salvava o marido que se queria matar. Minha mãe foi achal-o á beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que maluquice era aquella de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma gratificação menos, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser homem, pae de familia, imitar a mulher e a filha... Padua obedeceu; confessou que acharia forças para cumprir a vontade de minha mãe.

—Vontade minha, não; é obrigação sua.

—Pois seja obrigação; não desconheço que é assim mesmo.

Nos dias seguintes, continuou a entrar e sair de casa, cosido á parede, cara no chão. Não era o mesmo homem que estragava o chapéo em cortejar a visinhança, risonho, olhos no ar, antes mesmo da administração interina. Vieram as semanas, a ferida foi sarando. Padua começou a interessar-se pelos negocios domesticos, a cuidar dos passarinhos, a dormir tranquillo as noites e as tardes, a conversar e dar noticias da rua. A serenidade regressou; atraz della veiu a alegria, um domingo, na figura de dous amigos, que iam jogar o solo, a tentos. Já elle ria, já brincava, tinha o ar do costume; a ferida sarou de todo.

Com o tempo veiu um phenomeno interessante. Padua começou a falar da administração interina, não sómente sem as saudades dos honorarios, nem o vexame da perda, mas até com desvanecimento e orgulho. A administração ficou sendo a hegyra, donde elle contava para deante e para traz.

—No tempo em que eu era administrador...

Ou então:

—Ah! sim, lembra-me, foi antes da minha administração, um ou dous mezes antes... Ora espere; a minha administração começou... É isto, mez e meio antes; foi mez e meio antes, não foi mais.

Ou ainda:

—Justamente; havia já seis mezes que eu administrava...

Tal é o sabor posthumo das glorias interinas. José Dias bradava que era a vaidade sobrevivente; mas o padre Cabral, que levava tudo para a Escriptura, dizia que com o visinho Padua se dava a licção de Eliphaz a Job: «Não desprezes a correcção do Senhor; elle fere e cura.»

Dom Casmurro

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