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O Mistério de Anne Pauline

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A PORTA ABRIRA-SE. Finalmente era dada autorização a Anne Pauline para conhecer Marcus Belling.

Para quem conseguia entrar no consultório de hipnose, isso significava que já se tinha passado pelo rigoroso crivo de seleção de Sofia Estelar. A secretária do famoso hipnotizador tinha um ritual, que mantinha há muitos anos. Sempre que alguém iniciava as sessões de hipnose com Belling, ela ficava à espera da pessoa na porta para a cumprimentar pessoalmente, para provar a si mesma que sabia escolher as pessoas certas. As “pessoas certas” eram aquelas que precisavam realmente da ajuda de Belling para ultrapassar os seus traumas ou quebrar hábitos prejudiciais e não apenas as que tinham interesse em aproveitar-se do seu mediatismo. Sofia Estelar sentia alguma vaidade e orgulho, nestas suas funções.

Quando Sofia Estelar viu Anne Pauline, apercebeu-se que era muito mais bonita do que a fotografia que vinha colada no impresso. Impresso esse que era enviado, em forma padrão, para todas as pessoas que solicitavam uma sessão com Belling. Como ela bem sabia, existiam mulheres muito pouco fotogénicas que, no entanto, deslumbravam quando apareciam na Avenida do Sol e estes eram casos a que ela tinha de se manter atenta. Este esquema de ilusão da mente era enganador e não permitia a Sofia Estelar confiar na fotografia que vinha com o papel de registo na consulta. No caso de Anne Pauline, à medida que ela chegava cada vez mais perto, a secretária sentiu um tremor estranho dentro de si. “Não gosto desta sensação”, pensou ela para si mesma. Naquele momento, ela percebeu imediatamente que tinha escolhido a pessoa errada para ter sessões de hipnose com Belling e que, excecionalmente, o seu método de seleção que era uma mistura de intuição, astúcia, inteligência e perspicácia, não tinha funcionado. Alguma coisa tinha falhado naquele processo. Sofia Estelar ficou subitamente amedrontada com aquela constatação. “Estar-me-á a faltar o talento para isto?”, pensou imediatamente.

Era raro a secretária pessoal de Marcus Belling duvidar do seu talento para as funções que desempenhava no consultório há mais de vinte anos. A sua intuição dizia-lhe agora que Anne Pauline Roux era uma pessoa diferente, daquela que inicialmente tinha julgado. Mas já não havia nada a fazer. Anne Pauline percebeu o desconforto que a sua presença causou em Sofia Estelar, mas as duas cumprimentaram-se cordialmente. A secretária de Marcus Belling acompanhou-a então, corredor dentro, até uma das portas onde a esperava o famoso hipnotizador. Sem ainda ter perfeita consciência disso, Sofia Estelar tinha acabado de iniciar, para sempre, a mudança na vida de todos aqueles que trabalhavam na Avenida do Sol. Anne Pauline era uma presença misteriosa. Conseguia sentir isso mesmo de cada vez que falava ou olhava para ela. Naquele instante, arrependeu-se de lhe ter aberto a porta. “Devia ter ficado lá fora”, voltou a pensar.

Quando Anne Pauline entrou no consultório de Marcus Belling, ela deu-se conta que o charme dele era maior do que aquilo que julgava. “Na televisão parece mais alto”, pensou ela para si mesma. Ele recebeu-a com um sorriso agradável e com um gesto afetuoso. Sofia Estelar virou os olhos. Nunca se habituaria ao encantamento das mulheres por Belling, mas fechou a porta atrás de si e deixou-os sozinhos para a sessão de hipnose que estaria prestes a começar.

Quando Marcus Belling viu Anne Pauline mais de perto teve imediatamente um sentimento estranho. A sua afetuosidade e abertura rapidamente se transformou em desconfiança. Era raro isso acontecer pois ele era uma pessoa que estabelecia uma grande confiança com os seus pacientes e, por causa disso mesmo, tinha sido avisado por Maria de Burgos para se resguardar um pouco mais. Isso raramente acontecia. Naquele momento, percebeu imediatamente o significado do olhar que Sofia Estelar lhe deixara antes de fechar a porta. Anne Pauline não tinha reparado, mas aquele olhar angustiado da secretária parecia querer dizer-lhe: “Eu enganei-me”. Belling voltou a repetir a memória deste olhar na sua cabeça: “Esta pessoa pode não ser de confiança”, pensou para si mesmo. Devia, portanto, ter cuidado com ela.

Ainda em silêncio, Marcus Belling estendeu a mão a Anne Pauline e cumprimentou-a de forma cordial. Depois, articulou-lhe pela primeira vez as suas palavras:

– Sente-se, por favor. Bem-vinda ao consultório de hipnose na Avenida do Sol. Neste dia, começa o seu caminho para descobrir o seu passado. – disse, sorrindo.

Naquele momento, a sua paciente continuava em silêncio, quase como que a recordar mil vezes na sua mente aquele breve discurso de Marcus Belling. Aquela voz era-lhe muito familiar, mas tinha dificuldade em perceber de onde lhe vinha aquela sensação. Desta forma, sentou-se no “sofá dos hipnotizados”. Marcus Belling começou por se apresentar a Anne Pauline. Tinha estudado nos Estados Unidos e no Reino Unido, era membro efetivo há mais de quinze anos do Conselho Nacional de Hipnose, uma organização que difundia e promovia as práticas de hipnose no país, e costumava frequentar conferências e palestras sobre hipnose pelo mundo inteiro. Com esta apresentação pretendia, como sempre, desviar a atenção do paciente do seu drama pessoal para aquela sessão, preparando-o assim para construir uma relação de confiança. «A confiança é um pilar fundamental desta relação», costumava dizer Marcos Belling às pessoas que o procuravam. Ele, enquanto hipnotizador, procurava ir ao fundo da alma de cada um, conhecer o outro de uma maneira mais profunda como nunca ninguém tinha experimentado. Talvez, por essa mesma razão, apesar da oposição de Sofia Estelar e de Maria de Burgos, recusava-se por isso a ser menos autêntico do que aquilo que era ou do que demonstrava ser. Do outro lado, algumas vezes nem sempre encontrara a compreensão que esperava receber por parte da equipa que dirigia. «Às vezes pede às pessoas o impossível, Belling. Hoje em dia já ninguém é tão autêntico como pretende que as pessoas sejam», disse uma vez Sofia Estelar cheia de coragem. Lá no fundo, Belling sabia que ela tinha razão.

É verdade que Marcus Belling tinha como principal função descer o mais profundo possível à alma de cada, como jamais ninguém tinha tentado. Por essa razão, tornava-se tão importante construir uma relação de confiança com os seus pacientes. O mesmo não sucedia com Josef Salvaterra que apenas se preocupava com o momento da indução em estado hipnótico, escapando da profundidade do espírito das pessoas que o procuravam. Ao contrário, Belling queria conhecer os seus medos, as suas mágoas, as tuas tentações e os seus castigos interiores; de facto, em muitos casos, os seus pacientes recorriam à hipnose para se perdoarem a si mesmos. Esta era uma realidade que Marcus Belling conhecia bastante bem, sobretudo porque era muito bom observador e bastante perspicaz. Desta forma, as pessoas procuravam algumas vezes o seu contacto para partilhar esta sua culpa com outro, acima de tudo alguém que não as julgaria.

Marcus Belling preparou as condições para que Anne Pauline pudesse começar a falar de si e o que a tinha levado a procurá-lo. Foi precisamente essa a primeira pergunta que lhe colocou. Seguiu-se então a resposta.

– Toda a minha vida, desde a minha infância, que sinto que tenho um passado que não compreendo. Durante muitos anos tive lembranças de uma vida que me pareceu ser minha. – explicou Anne Pauline.

– O que me está a dizer, se a compreendo bem, é que a Anne sente que teve várias vidas passadas e que as imagens dessas vidas lhe chegam por exemplo em sonhos? – perguntou Marcus Belling.

– Sim, é isso que estou a dizer. – respondeu.

– Pode parecer-lhe estranho, mas sabia que alguns dos sonhos que a maioria das pessoas têm em vida estão normalmente relacionados com episódios das suas vidas passadas? A maioria nunca chega a saber isto. Apenas quando a vida passada é cheia de eventos que marcaram a nossa memória é que é possível relacionar esses sonhos com uma vida passada, disse Belling.

Anne Pauline mostrava-se interessada e surpreendida com aquilo que Marcus Belling lhe acabara de dizer. Queria isso então dizer, que pelo menos uma fração daquilo que sonhara durante a vida estava intimamente relacionado com as suas vidas passadas. Todavia, ela tivera muitos sonhos durante a sua vida e por isso, tornava-se difícil especificar quais aqueles que se relacionavam com o seu passado desconhecido. Belling percebeu o entusiasmo da jovem pelo tema e prosseguiu.

– Isso acontece a muitas pessoas. A maioria não chega sequer a saber que alguns desses sonhos estão relacionados com vidas passadas. Se no seu caso é capaz de se recordar dessas imagens é porque, de alguma maneira, isso lhe causa uma sensação de desconforto. A Anne Pauline sente esse desconforto porque viveu experiências tão intensas que ficaram guardadas no seu subconsciente. Talvez haja algo no seu passado que ainda esteja pendente para ser esclarecido no seu futuro? – perguntou Belling.

Anne Pauline ficou, por momentos, a pensar naquela questão de Marcus Belling, mas ela não era nenhuma especialista. Não sabia quais as razões por detrás das suas inquietações. Talvez existissem vidas passadas, com momentos traumáticos ou situações que exigiam que ela retomasse a esse mesmo passado. O que era certo é que a sua a angústia era permanente. Queria viver em paz. Belling percebeu que ela não iria responder à sua pergunta. Na realidade, nem pretendia uma resposta. O famoso hipnotizador tentou tranquilizá-la e, para isso, numa tentativa de ganhar a sua confiança, voltou a formular uma nova pergunta:

– Sempre se sentiu assim? – perguntou.

– Sim, sempre vivi num estado permanente de ansiedade e de inquietação. Acho que através da hipnose vou conseguir descobrir o meu passado. – disse Anne Pauline baixando o olhar.

– Por isso veio ter comigo. A Anne Pauline decidiu que quer iniciar a Terapia de Vidas Passadas e pretende encontrar a tranquilidade que precisa para a sua alma. – acrescentou Belling.

– Sim, é precisamente isso. – respondeu a jovem ainda de olhos baixos.

– Gostaria ainda que me pudesse dar alguns exemplos do que acaba de me dizer. Vejo que existe um passado, ou vários passados, que tentam chegar até si, talvez recorrendo ao seu subconsciente. Essa forma de libertação concretiza-se, pelo que me diz, através dos sonhos. Será que me pode contar alguma experiência que tenha tido? – perguntou Marcus Belling.

– Uma noite sonhei com três portas. Decidi abrir uma dessas portas onde estava escrito “Destino desconhecido” e fui puxada para dentro; senti uma enorme sensação de paz e tranquilidade, que apenas conheço dos tempos quando ia viajar no Argo com o meu pai. Quando acordei, tinha a cama cheia de ramagem, ervas e folhas, como se efetivamente já tivesse estado naquele lugar, que me pareceu tão familiar. Era uma planície dourada extensa. – disse Anne Pauline visivelmente emocionada.

- O que é o Argo? – perguntou Marcus Belling.

Marcus Belling não sabia o que era o Argo, mas pôde deduzir que se tratava de uma embarcação de pesca. Pouco ainda sabia acerca do passado da sua nova paciente. Por outro lado, ela manteve-se em silêncio durante algum tempo sem responder à sua questão e o hipnotizador percebeu que o Argo era muito mais do que um barco. Depois, ouviu a resposta de Anne Pauline:

– O Argo é embarcação de pesca da minha família.

Quem iniciava sessões de hipnose com Marcus Belling sabia, desde logo, que aceitava manter uma relação de lealdade com ele. A confiança era um elemento fundamental naquela relação e foi essa mesma ideia que Belling tentou reforçar junto de Anne Pauline. Tinha de existir entre dois uma ligação aberta e transparente. Ao mesmo tempo, Marcus Belling parecia adivinhar tudo o que Anne Pauline pretendia dizer. À medida que ela falava mais sobre si e sobre o “seu” mundo desconhecido, Belling ia sentindo uma inquietação interior cada vez maior. Uma vez mais, voltou a lembrar-se do olhar angustiado de Sofia Estelar. Até àquele momento a conversa com Anne Pauline tinha decorrido com toda a naturalidade. Era uma jovem de vinte e cinco anos que precisava da sua ajuda para compreender se o passado tentava de alguma forma enviar-lhe uma mensagem através da sua mente.

Anne Pauline ainda não conhecia bem a história profissional do famoso hipnotizador, mas a verdade é que apenas nos últimos doze anos de carreira, é que ele se tinha dedicado à regressão. Na realidade, ele era especialista em hipnose clínica, mas ao longo dos anos foi desenvolvendo o seu interesse pela Terapia de Vidas Passadas: a partir daqui, compreendeu que era igualmente possível tratar sintomas graves, tanto físicos como psicológicos (depressões e outros distúrbios) recorrendo à regressão. Mas alguns colegas hipnotizadores continuavam a duvidar do sucesso desta terapia, o que por vezes tinha gerado algumas convulsões de ideias e teorias dentro do Conselho Nacional de Hipnose.

Era agora pouco o tempo que Belling dedicava à hipnose clínica. Tendo começado a afastar-se da investigação nesta área, mantinha algum acompanhamento junto das crianças nos hospitais. Através da hipnose, o famoso hipnotizador ajudava-as a ultrapassar os seus traumas e as suas ansiedades. Belling deixou então o seu pensamento para trás. Estava na altura de explicar a Anne Pauline quais os propósitos, as condições e os métodos terapêuticos usados nas suas sessões de hipnose:

– Antes de mais, para que saiba, a hipnose é um estado mental que é usualmente induzido por um procedimento conhecido como indução hipnótica, já deve ter ouvido falar. O estado hipnótico corresponde às chamadas ondas alfa que estão associadas a um estado de calma e de recetividade. É por isso que, durante o transe, as pessoas se sentem bastante mais calmas. É isso que vamos fazer nas nossas sessões Anne Pauline. Vou induzi-la num estado hipnótico, mas sempre num ambiente controlado.

Anne Pauline ouvia atentamente o que Belling tinha para lhe dizer. O famoso hipnotizador prosseguiu:

– No caso específico da Terapia de Vidas Passadas, que pressupõe o uso da hipnose, a Anne Pauline irá regressar a um passado ou a vários passados que estão para além do limiar da sua vida atual. A partir daqui nós conseguiremos chegar ao que apelidamos de “memória extra-cerebral”. Ao atingirmos este reservatório de memória, será possível chegar ao núcleo do seu trauma e o seu inconsciente poderá libertar o material psíquico, a chamada catarse. Poderemos, nesta fase, compreender os traumas que ficaram encerrados no seu passado e libertar essas memórias. A partir desse momento, irá sentir um alívio significativo dos seus sintomas. – concluiu Marcus Belling.

– E tudo o que eu contar aqui, o que acontece a essa informação? – perguntou Anne Pauline.

– Nas minhas sessões de hipnose eu comprometo-me a manter a confidencialidade de todos os assuntos que são discutidos com os meus pacientes. Neste sentido, eu e os meus colegas hipnotizadores trabalhamos dentro do âmbito da lei; que, neste caso, é o Código de Ética do Conselho Nacional de Hipnose. – respondeu Belling.

Anne Pauline tinha ouvido e compreendido perfeitamente tudo o que Marcus Belling lhe tido dito. Sem confessar, ela nunca tinha acreditado verdadeiramente nos efeitos terapêuticos da hipnose. Contudo, ao longo dos anos, à medida que a medicina tradicional não lhe conseguia providenciar uma solução para os seus anseios, ela começara a ver na hipnose uma alternativa para a sua cura. Naquele dia, ao ouvir Belling falar sobre a Terapia de Vidas Passadas compreendeu, imediatamente, que tinha tomado a decisão mais acertada. Marcus Belling era a única pessoa que a podia ajudar. Ainda assim, quando pensava em ser hipnotizada, não conseguia deixar de não se sentir assustada. Eram muitas as questões que tinha na sua cabeça. Como seria estar hipnotizada? Será que entraria noutra dimensão? Será que se podia chamar ao transe hipnótico uma experiência de quase morte? E se Belling morresse durante uma das sessões, seria ela capaz de acordar do transe? Como muitas pessoas, Anne Pauline tinha as suas superstições e os seus receios. Por um lado, ela tinha medo de que os segredos do seu passado fossem revelados. Sem filtros, tudo ficaria a descoberto. Por outro lado, não queria que a sua história pessoal fosse do conhecimento de qualquer um. Várias vezes teve de repetir para si mesma: “Vou confiar, vou confiar”. Desta vez ia confiar. Marcus Belling disse-lhe então:

– Gostaria apenas de reafirmar que para um hipnotizador é bastante importante saber o que acontece com o seu paciente durante o transe hipnótico. Este estado é induzido através do poder da sugestão. Nesta fase, apenas o paciente me poderá dizer o que está a ver, a sentir e a ouvir. Peço-lhe por isso que confie em mim.

O pedido parecia simples. Apesar disso, como Anne Pauline iria perceber uns meses mais tarde, esta frase de Marcus Belling iria deixá-la num profundo dilema. Todavia, naquele momento, ela nada tinha a recear. O famoso hipnotizador tinha a sua ética profissional e estava obrigado ao sigilo relativamente a tudo aquilo que se passava com os seus pacientes, no seu consultório. Esta seria a primeira sessão de hipnose, uma de muitas ao longo de nove meses, de Anne Pauline com Marcus Belling. O que os dois iam descobrir daqui para a frente ultrapassava os limites da sua imaginação e, em caso algum, poderiam estar preparados para as revelações que iriam acontecer nos próximos meses.

A confiança entre hipnotizado e hipnotizador era fundamental para o sucesso da terapia. Sem a existência desta, não seria possível garantir que o paciente fosse capaz de superar os anseios causados pelas suas vidas passadas. Contudo, existia um receio compreensível por parte de alguns pacientes em reportar tudo aos hipnotizadores o que se passava durante o transe hipnótico; algumas memórias eram muito profundas e intensas. Para além disso, existiam alguns casos reportados em que a ética profissional tinha sido violada. Nestas situações, o Conselho Nacional de Hipnose aplicava os devidos processos disciplinares a todos aqueles que quebrassem a sua deontologia profissional. Um desses casos era o de Josef Salvaterra.

“O caso Salvaterra”, como ficou conhecido, parecia uma obra de ficção. Há alguns anos, procurou-o um banqueiro já reformado para compreender o sentimento de culpa que o tinha perseguido, de forma inexplicável, toda a sua vida. Tal como ele explicou, sempre tinha vivido uma vida honrada, com a família e amigos e não existia nada que o envergonhasse. Aliás, a honra era um valor fundamental que norteava toda a sua vida. Contudo, por alguma razão, considerava que ela não estava intacta na sua alma e queria perceber as razões por detrás desta sua estranha intuição.

Ao fazer a regressão a uma das suas vidas passadas, o banqueiro percebeu que tinha sido um foragido, alguém que vivia a fugir da justiça e que sobrevivia como podia. Um dia, contudo, encontrou as coordenadas para um tesouro que teria pertencido a um homem que falecera deixando uma riqueza incalculável. Uma parte dessa riqueza tinha sido enterrada num local secreto, juntamente com alguns outros pertences. O banqueiro localizou o tesouro, mas foi morto por outros que tentavam também apropriar-se do mesmo. Interessado naquela história, Salvaterra pediu então as coordenadas do dito tesouro ao banqueiro reformado, quando ele ainda se encontrava em transe hipnótico. Josef Salvaterra estava seguro de que iria encontrar aquele tesouro. Depois de obter estas informações, foi ele próprio à procura do mesmo. O tesouro de facto existia, mas já tinha sido desenterrado há muitos anos e fazia agora parte de uma coleção privada do museu da cidade. No entanto, o banqueiro tomou conhecimento das ações de Josef Salvaterra e reportou a situação ao Conselho Nacional de Hipnose. Durante três meses, Salvaterra não pôde abrir o seu consultório, perante a angústia de Marbella que julgava que tinha chegado o seu fim. Iriam os dois cair na miséria!

Nem Salvaterra nem Marbella caíram na miséria por causa desse episódio, mas o hipnotizador nunca mais tentou a sua sorte. A deontologia profissional tinha sido violada e rapidamente a história chegou aos ouvidos de Marcus Belling e de toda a sua equipa de trabalho. Como sempre, Belling não se mostrou surpreendido com a atitude do seu rival. Agora, enquanto ouvia a história pessoal de Anne Pauline, recordava-se de todos os contornos do chamado “caso Salvaterra”. Era incrível, mas já tinha passado uma hora desde que a jovem mulher tinha chegado ao consultório da Avenida do Sol e a sessão estava assim concluída. Nisto, o famoso hipnotizador disse:

– Fale com a Sofia Estelar para marcar uma nova sessão de hipnose. Lembre-se do que falámos hoje. Um caso novo é sempre um início também para mim na hipnose.

Belling jamais poderia imaginar como aquela frase continha toda a verdade acerca de Anne Pauline e si próprio. Por outro lado, a sua paciente agora olhava-o fixamente, sem compreender de onde vinham aquelas palavras. Aquele tom de voz era-lhe familiar e só agora é que tinha a certeza disso! Era cada vez mais claro que ela já tinha ouvido aquela voz em algum lado e depois de pensar um pouco, finalmente percebeu que aquela voz provinha do homem dos seus sonhos! Este era aquele homem que tinha questionado a sua dignidade e a sua honra, enquanto lhe pedia para regressar ao passado. Com esta certeza, Anne Pauline ficou assim a saber que esse homem era muito provavelmente, Marcus Belling!

Anne Pauline despediu-se de Belling e agradeceu as suas explicações acerca da hipnose e da Terapia de Vidas Passadas. Algo de muito intenso invadia agora a sua alma. Por um lado, ela estava ansiosa para iniciar esta nova jornada na hipnose, mas, por outro, não a pretendia realizar com aquele homem dos seus sonhos. Anne Pauline estava num dilema, mas sabia que, no dia seguinte, voltaria ao consultório.

2

Quando fechou a porta do gabinete, Sofia Estelar estava sentada à receção a tratar de documentação. Na verdade, fingia-se ocupada. Sofia olhou Anne pelo canto do olho e viu-a desaparecer no corredor. Não a quis cumprimentar quando ela se foi embora. Estava arrependida de ter levado Anne Pauline até Marcus Belling. “Como é que me pude enganar desta forma?” pensava para si mesma. Quando ouviu o som da porta a fechar-se, sabia que tinha de ir ter com Marcus Belling para o avisar da estranha sensação que tivera em relação àquela pessoa. Normalmente não se costumava enganar. Quando alguém pedia uma sessão com Belling, ela sabia avaliar bem essa pessoa e a ela lhe cabia a decisão se a deveria, ou não, levar até ao famoso hipnotizador. Belling contava com a intuição e a inteligência da sua secretária para levar a cabo o seu trabalho com segurança. Efetivamente, existiam motivos de receio. Muitos eram os intrusos que tentavam violar a sua privacidade, tirando fotografias às escondidas com máquinas que traziam ocultamente consigo ou, no limite, usando a chantagem para atingir certos objetivos (como, por exemplo, exigindo o pagamento de somas avultadas em dinheiro para não divulgarem certos aspetos da sua vida aos jornais). De facto, Sofia Estelar nunca se esquecia que, uma vez iniciada uma sessão de hipnose, a pessoa passaria a ter um contacto regular com o famoso hipnotizador. Durante vários meses, os pacientes ficariam a conhecer Belling, os seus hábitos, a sua forma de estar, a sua maneira de trabalhar, ou seja, um pouco da sua vida. Por essa razão, tornava-se importante saber que casos podiam ser levados ao conhecimento de Marcus Belling. Daí a importância do papel desempenhado por Sofia Estelar.

Sofia Estelar conhecia bastante bem Marcus Belling. Esse conhecimento advinha não apenas dos largos anos em que já trabalhava com o famoso hipnotizador, mas igualmente, porque ela própria já tinha sido hipnotizada por ele. De certa forma, ela tinha sido, até àquele momento, cética quanto aos efeitos da hipnose, embora nunca o tivesse confessado. Ela sabia que essa confissão iria entristecer Marcus Belling.

Essa experiência de hipnose tinha ocorrido há vários anos e nessa altura, foi ele que lhe dirigiu pessoalmente esse pedido. Há dez anos que Belling praticava a Terapia de Vidas Passadas, quando num certo momento da sua carreira, sentiu que precisava de testar com alguém de confiança, se as crenças e os mitos poderiam influenciar as lembranças que as pessoas tinham do passado. Esta ideia tornou-se um verdadeiro desafio. Tudo porque existia uma corrente interna no Conselho Nacional de Hipnose que rejeitava a Terapia de Regressão como forma de tratamento de diversos sintomas e distúrbios. Nesse aspeto, Salvaterra e Belling distinguiam-se de alguns dos demais colegas do Conselho. Os dois usavam frequentemente a hipnose na regressão, mas existiam alguns hipnotizadores que recusavam a existência do efeito terapêutico neste tipo de terapia. Esses mesmos hipnotizadores defendiam que, essas recordações das vidas passadas, mais não eram do que desconexões no sistema de memória pois o ser humano usava as suas experiências pessoais e as suas crenças para recriar imagens de um passado que nunca tinha existido.

Nem Marcos Belling nem Josef Salvaterra tinham tido alguma vez a oportunidade de refutar estas teorias. Por um lado, ignoravam estes argumentos, mas por outro, quando se impunha defender o seu trabalho, perante a opinião pública, tentavam confirmar através de casos reais que a Terapia de Regressão funcionava nos seus pacientes. Existia assim um certo descrédito relativamente a esta área da hipnose por parte de alguns hipnotizadores e, por essa razão, Belling lembrou-se de realizar um teste com Sofia Estelar. O objetivo era tentar induzir um conjunto de crenças e mitos enquanto Sofia estivesse em transe hipnótico, numa primeira sessão. Na segunda sessão, usando a Terapia de Regressão, pedir-lhe-ia para se recordar das suas vidas passadas recorrendo, para tal, à chamada memória extra-cerebral. Marcus Belling teria assim a oportunidade de testar a eficácia desta terapia, embora não fosse sua intenção divulgar os resultados desta sua experiência. Ele próprio, apesar de totalmente convicto de que esta funcionava, e que não se tratava de uma falha no sistema de memória, necessitava desta última confirmação. Quando Sofia Estelar se sentou no sofá verde do gabinete para ser hipnotizada, algo de extraordinário aconteceu; sem nunca perder o contacto com o exterior, ela entrou rapidamente em transe hipnótico. De facto, ela não estava à espera de ser hipnotizada por Belling com tanta facilidade. Contudo, através das técnicas e da larga experiência do famoso hipnotizador, a sua secretária mergulhou rapidamente num profundo transe, sem que se tivesse apercebido disso. Apesar de trabalhar com ele há mais de vinte anos, ela nunca tinha pensado seriamente na questão: o que o levava a ser um hipnotizador tão reconhecido? Ela conhecia a sua dedicação à profissão, mas ainda não tinha assistido à demonstração do seu talento inato. A partir daquele dia, Sofia Estelar percebeu porque é as pessoas o procuravam com tamanha ansiedade. O teste foi um sucesso. Marcus Belling conseguiu demonstrar (nem que fosse para si mesmo) que apesar das crenças introduzidas na primeira sessão de hipnose, tal não tinha influenciado a sua secretária quando às suas reais recordações das suas vidas anteriores. Inclusivamente, ela era capaz de se lembrar de uma relação que mantivera com um homem que parecia estar ligado à tipografia e surgiu-lhe um nome na mente: “Christopher Beck”. Ao ler algumas páginas sobre este tipógrafo, Belling percebeu que a sua secretária tinha regredido a uma época de onde poderia extrair memórias concretas. Ao ouvir as suas palavras, ele apercebeu-se que tudo o que lhe estava a ser reportado era absolutamente autêntico. Não existia ali uma mácula de contaminação pelo facto de ele lhe ter introduzido um conjunto de ideias pré-concebidas que poderiam prejudicar a sua memória extra-cerebral. Esta experiência reforçou assim a vontade de Belling de continuar a praticar a Terapia de Regressão, sem deixar que o seu trabalho fosse colocado em causa por alguns colegas da sua classe profissional. Na realidade, o teste serviria apenas para reforçar as suas convicções. Uma vez mais, nunca fora sua intenção divulgar os resultados destes testes, tendo apenas comentado o sucedido com a sua mulher, Patricia Murio.

Patricia Murio tinha ficado bastante surpreendida com a coragem do marido para levar a cabo esta experiência. Ela conhecia-o bastante bem, mas jamais poderia supor que ele iria recorrer a Sofia Estelar para comprovar as suas teorias. Por outro lado, Sofia Estelar ficou marcada com esta experiência da hipnose. Deste modo, não apenas confirmou a competência de Marcus Belling, como também o efeito terapêutico da Terapia de Regressão. A verdade é que logo após esta sessão sentiu uma tranquilidade enorme. Parecia que as lembranças se tinham libertado de um mundo espiritual que sobrecarregavam a sua alma e que agora vagueavam soltas fora do seu inconsciente. Sofia Estelar considerava-se bastante racional pelo que, não tivesse sido esta sessão de hipnose com Belling, a verdade é que continuaria a alimentar o seu ceticismo relativamente à hipnose e à Terapia de Vidas Passadas. Quando ela viu Anne Pauline a fechar a porta do gabinete, lembrou-se rapidamente de todos estes episódios do seu passado. Sofia Estelar correu então para falar com Marcus Belling. Tinha um olhar impaciente. Ele não a deixou tomar a iniciativa da conversa e tomou o rumo do discurso:

– Sofia, tive uma sensação estranha com esta pessoa. Depois de me teres devolvido aquele olhar na porta posso deduzir que sentiste o mesmo? – perguntou.

– Tenho de confessar que da primeira vez que a vi tive logo uma sensação estranha. Não consigo deixar de pensar que sou capaz de me ter enganado relativamente a esta pessoa. Por norma isso não costuma acontecer. De alguma maneira, tenho a sensação de que já a conheço. Já me arrependi muito de lhe ter aberto a porta. – disse Sofia Estelar.

– Não vale a pena ficares assim. Não te disse isto para te sentires culpada. – respondeu Belling, tentando tranquilizá-la.

Marcus Belling e Sofia Estelar estavam seguros neste ponto. Tanto um como o outro, tinham tido uma sensação estranha quando viram Anne Pauline pela primeira vez. Os grandes olhos verdes brilhantes desta jovem pareciam esconder um passado difícil de ser revelado, ou talvez demasiado complexo e traumatizante. Inevitavelmente, colocava-se a questão. Deveria Marcus Belling prosseguir as sessões de hipnose com aquela pessoa? Os dois pensavam no mesmo, mas foi Sofia Estelar que avançou com a pergunta:

– Acha uma boa ideia ela regressar cá mais vezes?

A pergunta de Sofia Estelar exigia um rápido esclarecimento da situação por parte do famoso hipnotizador, mas por outro lado ela sabia que o estava a colocar num dilema complicado de decidir. Talvez não fosse mesmo justo. De qualquer forma, foi o seu sentimento de responsabilidade naquela situação que lhe impulsionou a pergunta. Belling tinha a sua própria ética profissional, nunca se recusando a continuar uma sessão de hipnose a um paciente que o procurasse no seu gabinete da Avenida do Sol. Efetivamente, fazia parte dos seus princípios profissionais não negar a ajuda a quem dela precisasse. Desta forma, a decisão estava tomada. Ele iria até ao fim. Nunca tinha acontecido durante a sua carreira recusar o auxílio a um paciente e, apesar da estranha sensação que Anne Pauline lhe tinha provocado, Belling decidira assumir o risco da sua tomada de posição. Sofia Estelar compreendeu o seu dilema pessoal. Afinal de contas, ela era a sua secretária pessoal ainda que existisse uma relação de cumplicidade entre ambos de vários anos. A decisão final pertencia sempre a Marcus Belling.

Neste quente dia de julho, o dia ficara assim marcado por dois importantes acontecimentos. Por um lado, o aparecimento da misteriosa Anne Pauline, por outro, o teste final às convicções pessoais de Marcus Belling. Sofia Estelar sabia-o com segurança. Belling queria continuar a terapia com Anne Pauline, libertá-la dos seus dramas e dos traumas e, assim, através da hipnose, levá-la por um caminho de felicidade que ela nunca tinha experimentado. Como sempre, sem exceção, ele encarava o seu trabalho com espírito de missão pública, mas como toda a equipa já sabia através de situações anteriores, existiriam consequências para esta forte tomada de posição. Todavia, nada os podia preparar para o que estava prestes a suceder nos próximos meses.

Enquanto tudo isto se passava no n.º 27, a Avenida do Sol fervilhava em movimento e vida. Anne Pauline saiu do gabinete de Belling calcorreando a larga avenida que, de um lado e do outro, estava repleta de restaurantes, cafés e esplanadas decoradas num estilo vitoriano. Ao longo da avenida existiam ainda imensas fontes de água que, no verão, faziam as delícias das crianças. O prédio onde estava localizado o gabinete de Marcus Belling ficava quase exatamente a meio do percurso da conhecida avenida. Tratava-se de um magnífico prédio antigo do século XVIII, de linhas brancas e robustas, com tetos pintados e paredes recortadas com figuras da época barroca. Quando Anne Pauline desceu pela avenida naquele dia, Marcus Belling e Sofia Estelar não demoraram muito tempo a descer as escadas do prédio para irem almoçar num dos restaurantes na bela Avenida do Sol.

Recuando ao gabinete de Belling, este conservava na sua biblioteca um extenso espólio de livros sobre hipnose, como Anne Pauline tinha reparado. No entanto, ele não se interessava apenas pela hipnose, pois era um homem multifacetado, curioso por vários domínios do saber. Ao longo dos últimos anos, ele tinha vindo a interessar-se por temas como a ligação entre a medicina e a astrologia, o efeito terapêutico e medicinal das plantas, o poder curativo da fé, a alquimia e a ciência experimental. De uma maneira geral, ele considerava que o conhecimento sobre os minerais e as plantas poderiam providenciar com a sua utilização prática um efeito terapêutico que não deveria ser menosprezado. Marcus Belling encarava a medicina natural e homeopática como uma forma de terapia, não menos válida do que a própria hipnose. Por essa razão, considerando que as duas serviam os mesmos propósitos, começou a estudar meios de as aplicar simultaneamente em benefício dos seus pacientes. Por outro lado, dado ter iniciado a sua carreira no campo da hipnose clínica, Belling decidiu aproveitar a sua experiência profissional desses anos para praticar a Terapia de Vidas Passadas com um outro nível de saber e especialidade. Assim sendo, era possível encontrar na sua biblioteca particular livros sobre experiências químicas, receitas experimentais de alquimia, fitoterapia, regressão e poder curativo do corpo e da mente, medicina, zodíaco e botânica oculta. Todos estes livros constituíam uma fonte de inspiração diária para o seu trabalho diário (o que nem sempre era compreendido por Sofia Estelar).

Marcus Belling era igualmente apaixonado pela literatura mundial e não apenas por livros técnicos: a ele interessava-lhe qualquer tipo de literatura desde que pudesse recorrer a esta para se tornar num melhor hipnotizador. Por essa razão, chegou a passar algumas temporadas na biblioteca municipal da cidade, onde inclusivamente trocou algumas palavras com Georgine Gunderson. Alguns dias mais tarde, a bibliotecária seria destacada para trabalhar na antiga biblioteca nacional. Na realidade, através da leitura de diversos livros, de ficção ou técnicos, ele podia sempre reter uma boa ideia que às vezes utilizava nas suas sessões de hipnose, sobretudo nos casos mais complicados. Por vezes, o estudo teórico não era suficiente para resolver certos traumas das vidas passadas: era preciso viajar pelo mundo e por diversas experiências, ainda que por vezes apenas através dos livros. Um bom exemplo disso era o livro de Aldous Huxley intitulado, “O Admirável Mundo Novo”: com ele Belling desenvolvera o seu espírito crítico, fundamental ao longo da sua carreira. Através desta leitura ele questionava agora as técnicas padrão usadas na hipnose e sugeria novas abordagens. A paixão por este livro em particular, que começou na adolescência, fascinava-o pela sua oposição aos ideais de construção de uma sociedade padronizada, regida pela ilusão do progresso, sem noções do passado e de conceitos fundamentais como a moral e a família. Uma sociedade que era dividida em castas e os seus membros regidos pelos mesmos aspetos genéticos e psicológicos, permanentemente condicionados pelas mesmas regras sociais. Pouco a pouco, enquanto se interessava cada vez mais hipnose, teria sempre a tendência, naturalmente, para pensar neste livro. Como Belling nunca esquecia um bom livro e usava todas as ideias dos escritores para perceber melhor qual era o seu papel no mundo, foi percebendo com os anos que, a hipnose em si, constituía uma forma muito valiosa de as pessoas olharem para si próprias sem estarem condicionadas às convenções sociais. A hipnose era assim sinónimo de liberdade. A noção de liberdade neste campo foi assim sendo trabalhada por Marcus Belling ao longo de mais de vinte anos de prática profissional onde, para além da confiança, a destacava como valor fundamental da sua deontologia.

Na visão de Belling, a hipnose era uma ferramenta de poder para poder ver mais além da própria alma. De facto, mais para além dos limites da sua própria sociedade, da ilusão do progresso e das normas sociais estabelecidas. Ao longo dos anos, o hipnotizador começou assim a transmitir às pessoas uma ideia poderosa que às vezes poderia colocar em causa a sua própria carreira: a ideia de que as pessoas são responsáveis pelo seu destino e que têm a capacidade de mudar a sua trajetória de vida, ainda que com a ajuda de um hipnotizador. Nesse sentido, Belling foi pioneiro na sua área ao reconhecer às pessoas que elas podiam ser detentoras de um instrumento de poder e de mudança que estava totalmente ao seu alcance. O hipnotizador apenas ajudava nesse processo de descoberta. No fundo, era disso que se tratava. Todos quanto procuravam Belling vinham à procura da felicidade e Anne Pauline não era uma exceção.

Mas o Conselho Nacional de Hipnose não aprovava totalmente a mensagem e a postura de Marcus Belling face ao seu próprio papel profissional. Alguns colegas hipnotizadores mais envolvidos no Conselho já o tinham avisado de que ele estaria a criar falsas expectativas nas pessoas, fazendo-as incorrer no erro de que um hipnotizador era dispensável no seu processo de tratamento. O Conselho encarava assim esta atitude como uma forma de menosprezar o crucial papel desempenhado pelos profissionais que representava e, por várias vezes, pediu algum refreio a Belling nas suas palavras. A este propósito, várias vezes, tinham-lhe chamado a atenção: «Daqui a pouco as pessoas começam a fazer auto-hipnose em casa. Já ninguém consulta um hipnotizador, se continuar a dizer essas coisas». Embora respeitando a recomendação do Conselho, Marcus Belling continuava firme na sua forma de trabalhar.

A abordagem de Marcus Belling não incomodava apenas o Conselho Nacional de Hipnose, mas também Josef Salvaterra. Na realidade, num programa de rádio há vários anos, Salvaterra desferiu um duro golpe a Belling ao afirmar que o colega andava a enganar as pessoas com discursos proféticos. Para ele, o papel do hipnotizador não era substituível, «pois por vezes as pessoas precisam de alguém que as guie». Esta última frase foi dita num programa de rádio sobre hipnose e originou uma avalanche de chamadas de pessoas que exigiam falar com Salvaterra. «Devem ser fans loucos de Belling», disse Salvaterra em tom de brincadeira para o locutor de rádio.

Neste sentido, também em parte pelo seu distanciamento em relação à postura defendida por Belling, Salvaterra possuía um estatuto diferente dentro do Conselho; este era mais interventivo, apesar da sua imagem ter ficado enfraquecida durante vários meses com o “caso Salvaterra”. Gradualmente, Marcus Belling foi criando os seus próprios métodos de trabalho, cada vez mais distantes e inovadores face ao que era recomendado pelo Conselho, para grande entusiasmo dos seus pacientes.

Salvaterra e Belling começaram a distanciar-se um do outro, mesmo dentro do próprio Conselho. Josef Salvaterra, ao contrário de Belling, tinha outras ambições que não apenas tornar-se no mais conceituado hipnotizador do país. Ele almejava um novo estatuto no seio do Conselho Nacional de Hipnose que lhe pudesse conferir uma vantagem no meio da sua classe profissional. Por essa razão, na última reunião, ele candidatara-se a Presidente da Assembleia Geral; Salvaterra pretendia gerir os destinos da organização e, com isso, afastar Belling do seu protagonismo. A única forma de isso acontecer passava por controlar a gestão da organização o que internamente significava deter o poder sob todo o Conselho. Contudo, Salvaterra teve poucos votos aquando das eleições o que gerou, da sua parte, uma enorme indignação. Foi conturbada a situação que se seguiu. Josef Salvaterra demonizou todos os seus colegas chamando-os de “ignorantes” e prometeu dirigir uma reclamação para o Comité Internacional da Hipnose alegando que existira fraude nas eleições. Uns dias mais tarde, para espanto de todos, Marbella apareceu nas instalações do Conselho, durante uma das reuniões da Assembleia geral, tentando nessa altura imiscuir-se em assuntos de gestão interna: ela pretendia saber qual o valor das receitas arrecadadas com o pagamento das quotas anuais ao Conselho.

A ganância de Marbella era conhecida por todos. O referido episódio com as quotas foi contado entre todos os hipnotizadores, dando conta que nesse dia a mulher de Salvaterra fora colocada no exterior das instalações do Conselho perante a sua própria indignação. Por essa razão, Marbella Gorey era conhecida como a “toupeira” porque conseguia cheirar o dinheiro onde quer que ele se encontrasse e a larga distância. Era um facto, que ela era capaz de se munir de todos os recursos possíveis se estivesse em causa dinheiro e algo não deixava de a incomodar: o marido não ganhava uma fortuna. Marbella e Salvaterra viviam razoavelmente bem, mas sem grandes luxos e, por essa razão, a única forma de atingir certos objetivos era recorrer a meios pouco éticos. Para prejudicar Marcus Belling e afastá-lo dos meios de comunicação, ela estaria disposta a fazer quase tudo. Por mais de uma vez que o tinha tentado. Contudo, a intervenção rápida de Maria de Burgos evitara a publicação de notícias caluniosas acerca do famoso hipnotizador. Mas, desde há meia dúzia de anos atrás, que Marbella contava com a ajuda de um cúmplice chamado Alfonso Rúbio, o filho de uma prima que se via sempre constantemente envolvido em furtos e na pequena criminalidade. Tinha apenas vinte e três anos, mas um cadastro completo nas mais variadas atividades de delinquência. Considerado como um “caso perdido”, Alfonso por vezes aceitava colaborar com Marbella (por um “preço económico”) para difundir algumas informações que ela achava fundamental para acabar com o mediatismo de Belling ou para outro tipo de atividades de ética duvidosa. Alfonso deixava-se comprar por pouco, o que era um excelente negócio para Marbella que o considerava ideal para a concretização de alguns dos seus planos. Contudo, esta cumplicidade já não existia no dia em que Anne Pauline tocou à porta do gabinete de Marcus Belling, pois Alfonso tinha desaparecido há algum tempo.

Marcus Belling parecia imune a tudo isto. Talvez porque se encontrava rodeado de uma equipa leal que tinha montado um aparelho logístico complexo que lhe permitia viver exclusivamente dedicado à sua profissão. Um dia, numa conferência internacional, alguém lhe dissera:

– O Belling acredita na hipnose. É quase como se tivesse uma espécie de fé dentro de si, quase inabalável. Também já tive esse tipo de ilusões.

«Não julgue que seja possível saber tudo acerca de um mundo a que apenas acedemos através da nossa mente», disse-lhe uma vez um colega.

– Acredito no meu trabalho. – limitou-se a responder Belling.

Nem todos os hipnotizadores estavam convencidosque a hipnose constituísse uma terapia eficaz para as pessoas, muito embora fizessem dela a sua carreira. Parecia uma contradição, mas alguns profissionais na área não acreditavam naquilo que faziam. Ao contrário, Marcus Belling era um inconformado. O famoso hipnotizador tentava manter-se fiel a si mesmo. Este não tinha sido, contudo um trajeto fácil e com o passar dos anos, de forma quase inevitável, começaram a surgir dúvidas acerca de si mesmo, do seu trabalho e da sua missão na vida. Por isso mesmo existiam alturas em que ele precisava de todo o recolhimento possível para voltar a acreditar nas suas convicções. Sem elas, não existia Marcus Belling nem uma carreira. Ele sabia por outro lado que existiam muitas crenças limitativas em torno da hipnose que eram simplesmente inventadas através da difusão de mitos supersticiosos ou pelos meios de comunicação. Nestes casos, era difícil desmontar o engano. O famoso hipnotizador ainda não sabia, mas Anne Pauline iria marcar a sua vida. Antes mesmo de ela entrar no consultório da Avenida do Sol, Belling recordava-se de um dos casos mais marcantes na sua carreira que lhe devolvera a segurança interior de que a prática da hipnose teria de ser encarada com um espírito de missão pública.

Um dia, uma mulher chamada Carla veio ter com Belling relatando distúrbios de sono. Com o passar dos anos, sem tratamento à vista, esses mesmos distúrbios evoluíram para o sonambulismo, para grande receio do filho que a ouvia à noite, sozinha, a caminhar pela casa. Sendo mãe solteira, raramente tinha um trabalho estável, vivendo num anseio constante, que não lhe permitia adormecer, durante dias seguidos. Foi então que Carla pensou em recorrer à hipnose e, portanto, a Marcus Belling. Ela sabia que era difícil conseguir uma sessão com ele, tal era a fila de espera que existia e que era do conhecimento público. Decidiu, contudo, tentar a sua sorte. Sofia Estelar considerou-a um caso prioritário e, devido às suas dificuldades económicas, após confirmação da sua situação pessoal, o preço das sessões foi diminuído para ela prosseguir o seu tratamento. De facto, o consultório praticava uma tarifa especial para estas situações e tinha sido Belling a instruir Sofia Estelar para ter em consideração este tipo de circunstâncias na sua tabela de preços. Pragmático por um lado, caridoso por outro, o famoso hipnotizador era sensível às situações de carência económica de quem o procurava e tinha montada uma logística para dar apoio e uma rápida resposta aos casos mais sensíveis.

Carla confessou a Marcus Belling, que tinha medo de recorrer à hipnose para curar o seu problema de sonambulismo. Será que ia ficar também sonâmbula durante o transe hipnótico? Ele tranquilizou-a. Este era apenas um mito e ela não tinha razões para ter medo do que pudesse acontecer durante esse período pois ela encontrava-se num ambiente controlado. Com o tempo, Carla foi tendo cada vez mais confiança com Belling e sentindo-se mais confortável, deixou-se levar para um estado mais profundo de transe. O famoso hipnotizador começava sempre por lhe dizer:

– A Carla imagine agora que está numa posição muito confortável... respire profundamente... sinta o seu corpo a descontrair... feche os olhos... imagine agora que é Robinson Crusoe e que está numa ilha deserta... o mar bate nos seus pés e as ondas trazem consigo o cheiro da maresia... respire profundamente e sinta os seus olhos a fecharem-se lentamente...

Uma vez mais, Marcus Belling auxiliava-se da literatura para ajudar os seus pacientes a ultrapassar os seus problemas internos usando para tal passagens ou personagens desses livros. Era assim que funcionava o poder da sugestão. Neste caso, a leitura da obra de Daniel Defoe ajudou-o a criar uma poderosa metáfora com Carla, sugestionando durante o transe hipnótico, que ela era Robinson Crusoe, que se encontrava sozinha numa ilha deserta, tendo de usar os recursos disponíveis para reconstruir a sua vida. Tratava-se acima de tudo de lhe devolver a confiança que tinha ficado abalada durante a sua vida.

No caso de Carla foi Robinson Crusoe quem lhe salvou a vida. Em algum dado momento, pensou Belling para si, o herói desta história que se havia salvo a si próprio da morte e da privação, teria um destino maior: o de salvar outros que estão na mesma situação. «Que outro destino, melhor do que este, poderia ser dado a esta personagem?», pensou Marcus Belling para si próprio. Assim, durante meses sucessivos, Carla imaginou que se encontrava numa ilha deserta e no meio do silêncio recuperou finalmente dos seus anseios. Foi assim, com esta poderosa metáfora, que ela superou os seus distúrbios de sono ganhando uma qualidade de vida que nunca tinha tido. Na última sessão, Marcus Belling aproveitou então a oportunidade para lhe dizer:

– O que eu espero daqui para a frente é que possa encontrar a sua felicidade e plenitude interiores. A nossa alma apenas se compreende a ela própria quando começamos a olhar para dentro de nós. – finalizou Belling.

Carla tinha acabado de acordar. Na realidade, ela foi acordando para a vida e foi assim que os problemas de sonambulismo acabaram por desaparecer. O sono era agora repousante e revitalizante. Sendo um dos casos de maior sucesso da sua carreira, ela acabaria por se tornar uma amiga próxima de Sofia Estelar, e era visita frequentemente do consultório na Avenida do Sol.

Na sua última sessão de hipnose, e quando saiu do gabinete, Carla percorreu a pé a avenida, curada dos seus sintomas. Procurou ali perto, imediatamente, um alfarrabista onde viria a comprar uma versão antiga do livro de “Robinson Crusoe”, de Daniel Defoe e lendo-o até à exaustão, retirou bons ensinamentos que a ajudaram, nos anos vindouros, a manter e a conservar a sua felicidade. Junto a este alfarrabista, que há mais de quinze anos vendia livros antigos na Avenida do Sol, encontrava-se um antiquário. O proprietário chamava-se Argus Dubois. Quando Carla passava junto à sua loja sonhava em ter um guéridon: uma espécie de mesa diminuta, arredondada, coberta por um tampo em mármore. No final do dia, ela deixaria o livro de Robinson Crusoe em cima da mesa. O dia seguinte seria mais uma descoberta, mais uma jornada.

Não foi apenas Carla que aprendeu alguma coisa com Belling. Com este caso, o famoso hipnotizador descobriu o verdadeiro poder da imaginação e da sugestão, embora já o tivesse praticado noutros casos, embora não com tanto sucesso. As chamadas “imagens âncoras”, como lhes costumava chamar, eram utilizadas por alguns pacientes para lhes dar uma maior sensação de conforto e de segurança durante o transe hipnótico. Consequentemente, Belling aprendeu que essas imagens estão ligadas ao poder dos símbolos. Existia, portanto, uma área muito importante ligada à hipnose que nunca tinha sido devidamente investigada e que agora, com o exemplo de Carla, não podia continuar a ser ignorada. Foi desta forma que Belling inovou uma vez mais, face ao saber que era transmitido pelo Conselho Nacional de Hipnose e em comparação com outros hipnotizadores. A simbologia passou assim a ser um tema de interesse neste campo de trabalho.

O estudo dos símbolos tornou-se, assim, para Marcus Belling uma ferramenta fundamental para compreender melhor o caso particular dos seus pacientes. Na realidade, para se tornar um melhor hipnotizador. Nas suas investigações, Belling apercebeu-se de que o estudo acerca da origem, interpretação e da arte de criar símbolos era mais relevante do que aquilo que julgava para a vida de um hipnotizador: aliás, foi sempre através dos símbolos e da representação simbólica que o ser humano aprendeu a apropriar-se do mundo. Todos os mitos, crenças, factos e ideias são expressos através de símbolos e são eles que representam a realidade. Como seria possível que, durante todos aqueles anos, pudesse ter ignorado esta realidade?

À primeira vista, a simbologia parecia não ter relação com a hipnose. Por sua vez, nada nesta inaudita ligação poderia fazer pressupor que alguém como Belling, com formação em hipnose clínica, enveredaria por uma interpretação mais espiritual do seu trabalho. O interesse pela simbologia não tinha aparentemente ligação com a sua formação de base. Embora considerasse que tinha hoje mais abertura de espírito, Belling era uma pessoa lógica e analítica quando se iniciou na carreira, talvez porque começara cedo a estudar medicina e neurologia. Assim, desde logo aprendeu que o ser humano é composto de muitas conexões nervosas, com formas de organizações específicas na sua biologia, sendo constituído por cérebro, espinal medula e nervo. Ao mesmo tempo, todo o corpo é controlado por um conjunto complexo de movimentos e de sensações. De todos os órgãos que existem, o mais importante de todos era o cérebro humano. De facto, embora este represente apenas dois por cento da massa do corpo, a verdade é que ele recebe vinte e cinco por cento de todo o sangue que é bombeado pelo coração. O sangue, que é um fluído que através das suas correntes leva os nutrientes necessários às células e aos diferentes órgãos humanos. Para um bom hipnotizador como Marcus Belling era fundamental conhecer o funcionamento deste órgão, sobretudo o lobo frontal ou a área pré-frontal do cérebro, que possui uma função executiva. Essa função, como ele sabia, era responsável pela atenção, pensamento e resolução de tarefas, com a qual prevemos resultados do nosso comportamento no futuro: ao mesmo tempo, ganhamos consciência das decisões que tomamos. Para Belling qualquer hipnotizador deveria tomar conhecimento do funcionamento do corpo humano.

Quando há mais de vinte anos, Marcus Belling se tornou membro do Conselho Nacional de Hipnose, ele foi pioneiro em defender que o estudo das neurociências era fundamental para a hipnose. Era uma realidade, que há duas décadas, existiam ainda muitos mitos e superstições relacionados com a hipnose e, portanto, era através do recurso às ciências que se tornaria possível a desconstrução dessas ideias pré-concebidas. Não seria exagerado afirmar que era possível entrar-se num paradoxo quando se tentava descrever a hipnose. Por um lado, era uma espécie de arte, por outro tinha contornos de ciência. Assim, era uma “arte” porque nem todos os hipnotizadores dominavam esta técnica com sucesso e, por outro, porque nem todas as pessoas podiam ser hipnotizadas. Nesse sentido, o transe hipnótico também variava de indivíduo para indivíduo, podendo ser mais profundo ou, ao contrário, ser tão leve ao ponto de o paciente em causa nunca conseguir verdadeiramente relaxar para ser hipnotizado. Todavia, era ao mesmo tempo também uma ciência, porque um bom profissional neste campo teria de compreender a fisiologia humana, o seu sistema nervoso e o funcionamento do cérebro. Esta era a perspetiva de Marcus Belling.

Retomando o poder dos símbolos, Belling apercebera-se que a simbologia era fundamental para compreender melhor as potencialidades da hipnose. Nesse sentido, ele estava bastante grato por ter conhecido uma paciente como a Carla que lhe tinha mostrado um outro mundo para além daquele que ele, enquanto hipnotizador, conhecia. Isso também acontecia. Também era possível os hipnotizadores ficarem mais sábios com as pessoas que hipnotizavam. Esta era sempre uma experiência enriquecedora, para ambas as partes. Contudo, rapidamente Belling também se apercebeu que simbologia e linguagem estavam igualmente conectadas entre si. Uma dependia da outra. Por conseguinte, neste aspeto, Belling chamou a atenção dos outros colegas de profissão para a relevância do discurso do hipnotizador, realizando para o efeito formações diversas sobre linguagem orientada para a hipnose.

A experiência de Belling demonstrava a importância da linguagem persuasiva que, quando introduzida na hipnose, veio a dar lugar à chamada “hipnose conversacional”. Duas palavras particularmente utilizadas durante o transe hipnótico pareciam fazer toda a diferença na pessoa em estado de transe. Essas palavras eram, precisamente, o porque e o mesmo. Gradualmente, Marcus Belling foi então introduzindo estas palavras no início das sessões de hipnose e, de forma imediata, apercebeu-se que o transe costumava nestas situações ser bastante mais profundo. Normalmente, ele começava por dizer aos seus pacientes:

– Gostaria mesmo que se sentasse numa posição confortável, que fechasse os olhos e tentasse relaxar... e isto, porque é mesmo importante que me escute... tranquilamente... sem pressas…

Através do poder da linguagem, usando por exemplo o “porque” e o “mesmo” em momentos especiais da sua fala, Belling era capaz de hipnotizar pessoas que tinham resistido à hipnose com outros hipnotizadores. Alguns desses pacientes embora não o confessassem, vinham desanimados das suas sessões de hipnose com Josef Salvaterra. Por essa razão, aos poucos, os relatos destes casos pessoais fizeram crescer o mediatismo de Marcus Belling. A sua abordagem inovadora em relação à hipnose mostrou-se, neste aspeto, decisiva. Belling utilizou todos estes conhecimentos para desenvolver, ele próprio, uma linguagem cativante com as pessoas, granjeando assim fama e bastante dinheiro. Mais dinheiro do que Josef Salvaterra, o que só podia constituir uma situação de inveja para Marbella.

O aparecimento de Carla mudou um pouco a perspetiva que Marcus Belling tinha em relação à sua carreira e à hipnose, mas a mudança maior viria com Anne Pauline. Em ambos os casos, estas mulheres acabariam por abalar as suas convicções, colocando-lhe dilemas que, quando superados, lhe mostravam um mundo totalmente novo acerca da mente humana. Era esta a beleza da sua profissão.

Marcus Belling e Josef Salvaterra eram duas pessoas e dois hipnotizadores muito diferentes. Salvaterra tinha hábitos que podiam ser considerados “tradicionais”. Gostava de colecionar velharias e evitava os mesmos espaços públicos que o seu colega rival. Tal como Marcus Belling e Anne Pauline, possuía uma pequena biblioteca particular em casa. Ao longo dos anos, adquirira diversos livros sobre hipnose, terapia de vidas passadas, regressão, magia, misticismo e espiritualidade. Mas não só. Marbella influenciara-o também noutras áreas como as ciências ocultas, a necromancia, a tarologia e a futurologia. Inclusivamente, nos últimos anos tinham sido feitas novas aquisições de livros sobre transmutação de metais. Era assim visível o interesse cada vez maior na chamada crisopeia, ou seja, a arte de transformar metais em ouro. Josef Salvaterra não compreendia o interesse intenso de Marbella neste tema, mas é verdade que ela costumava montar um verdadeiro laboratório em casa na tentativa de destilar ouro potável através de chumbo.

Por outro lado, pode-se afirmar que Marcus Belling tinha hábitos mais “modernos” e as grandes dificuldades na sua carreira estavam relacionadas com as consequências naturais do seu mediatismo. Uma vez, numa entrevista para o canal público de televisão, uma jornalista mais arrojada, alta de cabelos pretos bastante longos, perguntou a Belling se ele usava a hipnose em casa para hipnotizar a mulher. A pergunta fez soltar imediatamente uma convulsão de risos por parte da plateia. De certa forma, o acontecimento acabou por marcar o panorama televisivo desse ano, mas a resposta de Belling pretendeu não alimentar mais a polémica: «A hipnose baseia-se no pressuposto que ninguém, sem exceção, é hipnotizado sem o consentir. Não se constrange a pessoa a fazer algo que não queira. Nesse aspeto a hipnose é sinónimo de liberdade pois dá-se liberdade ao outro para transformar os seus pensamentos e atitudes para que possa enfim desfrutar de uma vida mais plena».

No dia seguinte, para grande tragédia pessoal de Sofia Estelar, mas sem admiração, quase todas as mulheres do país ligaram para o gabinete da Avenida do Sol para agendarem uma sessão de hipnose com o famoso hipnotizador. A crise que se seguiu a essa entrevista fez Marcus Belling tomar a decisão de que, dali para a frente, iria aparecer menos na televisão. A verdade é que ele se podia aproveitar para se divertir um pouco com a situação, mas cabia, no fundo, a Maria de Burgos gerir de forma inteligente as consequências das suas aparições públicas. Depois deste episódio, como já seria de esperar, jornais e revistas sensacionalistas exploraram o assunto sem limites, especulando se existiria uma relação extraconjugal entre a jornalista do programa e o próprio Belling. Algumas revistas, dentro do estilo satírico, mostravam a jornalista de cabelos pretos longos a ser hipnotizada por Marcus Belling enquanto este sugeria uma “terapia a dois”. As semanas seguintes representavam muito trabalho para Maria de Burgos que pensava sempre para si mesmo: “Será que ele não podia ter dito as coisas de outra forma?”. Podia. Mas se o fizesse já não era o Marcus Belling que todos conheciam.

Patricia Murio sabia gerir estas situações de forma sensata. Não se sentia claramente confortável com a ideia de que os jornais publicavam notícias acerca de casos extraconjugais do marido com as jornalistas, mas nada disso correspondia à verdade. Ao contrário do que acontecia com a maioria das mulheres, ela não tinha sido conquistada exclusivamente pelo carisma de Belling. Ao mesmo tempo existia nela um despojamento da alma que tinha chamado a atenção de Belling e fora sobretudo, por causa disso, que ele se tinha apaixonado por ela. Patricia Murio ajudava-o a procurar o essencial e a libertar-se do supérfluo no meio do caos que por vezes se gerava com o seu mediatismo.

No dia em que Anne Pauline apareceu na vida de Marcus Belling, ele quis regressar mais cedo a casa. Há muitos anos que existia uma aliança secreta entre a mulher e Sofia Estelar que controlavam as potenciais clientes que pretendiam aproximar-se do famoso hipnotizador. A aliança funcionava com sucesso há muitos anos e, por uma vez ou outra, detetou sinais perigosos de avistamento e aproximação femininas que foram rapidamente eliminados. Essas mulheres, por seu turno, foram eficazmente colocadas fora do percurso. Por essa razão, apesar de Patricia Murio não se encontrar na Avenida do Sol, a logística montada permitia-lhe, através da sua “cúmplice”, controlar todos os movimentos do marido e daqueles que o rodeavam. Foi assim com alguma surpresa, e receio, que recebeu o telefonema de Belling avisando de que ia chegar mais cedo a casa. Marcus Belling era um trabalhador incansável. Não lhe faltava, pois, o mérito na sua carreira repleta de sucessos profissionais e, mesmo os que não gostavam dele, não lhe podiam apontar a falta de trabalho no seu percurso. Existia uma boa razão para Belling chegar mais cedo a casa nesse dia, e Patricia Murio sabia-o. Por momentos, não sabia o que deveria pensar e, um pouco desesperada, pensou ainda em ligar a Sofia Estelar para tentar saber se tinha acontecido algo fora do habitual no gabinete do marido. Mas conteve-se. Não quis naquele momento mostrar a sua fragilidade à secretária pessoal do marido.

Marcus Belling chegou a casa. Patricia Murio abraçou-o e, com surpresa, reparou que ele começara a chorar. Ele mantinha-se calado, sem capacidade de pronunciar uma única palavra. Como ela bem sabia, ele era confrontado, em algumas sessões, com sentimentos profundos e inexplicáveis que lhe pareciam ter sido transmitidos pelos seus pacientes quando estes faziam regressões às suas vidas passadas. De alguma forma, os traumas destas vidas passadas pareciam ter impacto no espírito de Belling, ficando estes a pairar no seu gabinete até desaparecer ou incorporar o seu corpo e alma durante vários dias. À primeira vista poderia parecer uma situação bizarra. De certa forma até o era e Marcus Belling já tinha perguntado a outros hipnotizadores se eles também sentiam o mesmo quando praticavam a Terapia de Vidas Passadas. A verdade é que muitos deles tinham receio de confessar que o mesmo também sucedia com eles. Por alguma razão, não queriam que isso fosse do conhecimento do Conselho Nacional de Hipnose.

Praticar a Terapia de Vidas Passadas trazia consigo, por vezes, a incompreensão perante a ocorrência de certos fenómenos. Não só parecia existir uma passagem de sentimentos entre hipnotizador e hipnotizado, como o terapeuta sentia quase como seu o sofrimento do paciente. Não existia conforto nesta situação. Belling convencera-se, ao longo do tempo, de que existia uma espécie de transferência de emoções e que os hipnotizadores - ele e os colegas - não estavam imunes às vidas passadas dos seus pacientes. Nunca tinha falado disto com Patricia Murio, mas a verdade é que ela conseguia sentir tudo. Ele não precisava de lhe dizer nada, pois ela sabia que era isso que sucedia com o marido.

Os dois subiram rapidamente as escadas e apaixonados estenderam-se na cama. Os lençóis serpenteavam-lhes o corpo húmido numa confusão de gestos e palavras murmuradas quase em silêncio, enquanto se sussurravam frases de amor. As lágrimas de Belling transformaram-se em algo que já não era mais do que confusão. Num último ato e suspiro deram as mãos, esticaram os corpos e desapareceram na paixão que os unia. Patricia percebeu então que Belling continuava a chorar, não de forma convulsiva, mas de uma maneira cândida e mais controlada como se precisasse de se despojar daquele intenso sentimento que estava a tomar conta de si. Ele agora tinha a certeza, de que aquele sentimento estranho que tivera, quando vira Anne Pauline pela primeira vez no seu gabinete da Avenida do Sol, significava muito mais do que uma simples intuição.

Hipnose

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