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O Consultório de Hipnose na Avenida do Sol

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O RELÓGIO MARCAVA EXATAMENTE MEIO-DIA quando Anne Pauline Roux tocou à porta do consultório de Marcus Belling no n.º 27 da famosa Avenida do Sol. Nesta altura estávamos em pleno mês de julho e o dia já tinha amanhecido bastante quente. Uma brisa fresca e diferente soprava no ar. Ao mesmo tempo a cidade fervilhava já no novo movimento de turistas que a invadiam nesta época do ano.

Quando Anne Pauline tocou à campainha, ela sabia bem quem procurava. Marcus Belling tinha-se tornado um conceituado hipnotizador no país há muitos anos, a partir do momento em que começou a aparecer em variados programas de televisão nacionais para falar sobre hipnose. Apesar das muitas aparições públicas, tinham ficado especialmente conhecidas as suas lendárias entrevistas sobre a Terapia de Vidas Passadas e a Regressão. Nestes dias, não era exagerado afirmar que o país parava para ouvir Marcus Belling.

Este era um dia especial para Anne Pauline, e ela sabia-o bem. Há alguns anos que desejava conhecer o famoso hipnotizador, de quem todos falavam, mas a verdade é que ela tinha medo do desconhecido. Por essa razão, antes de marcar a sua consulta na Avenida do Sol, decidiu comprar um livro para tirar o pavor (pensava ela, pelo menos) que sentia quando pensava em ser hipnotizada. Tinha-o comprado há alguns meses e este intitulava-se, com algum “suspense”, “Mistérios da Hipnose”. Neste dia de verão, quase que tinha sido hipnotizada pelas palavras que estavam lá contidas, como se ela própria, de uma forma incontrolável e de forma imprevisível, já tivesse sido arrastada há algum tempo para aquele mundo que totalmente desconhecia. Tentou não pensar mais no assunto, pelo menos quando tocou à campainha do n.º 27 da Avenida do Sol.

Desde que Belling iniciara a sua carreira como hipnotizador que as pessoas tinham adquirido novas ideias e perspetivas acerca da hipnose como método terapêutico alternativo à medicina não holística. Há vinte anos, a hipnose ainda era vista como uma espécie de arte do oculto cujos profissionais e “seguidores” eram banidos do sistema convencional da medicina tradicional, o que hoje já não era uma realidade. Alguns afirmavam com convicção que Marcus Belling tinha sido o precursor desta mudança de mentalidades.

Contudo, Belling não estava sozinho no palco público. Um outro hipnotizador igualmente conhecido, embora não tão carismático e mediático, tinha chamado a atenção da imprensa e das pessoas: chamava-se Josef Salvaterra. Salvaterra, tal como Belling, era um catalisador da atenção do público em torno do seu trabalho relacionado com a hipnose. Os dois já não podiam viver um sem o outro. Neste sentido também, a disputa entre ambos era permanentemente alimentada por jornais e revistas diversas, algumas de natureza satírica que exploravam a dualidade de carismas e as suas personalidades opostas. Marcus Belling e Josef Salvaterra eram muito diferentes um do outro, e mesmo os pacientes que recebiam nos seus consultórios, diferiam na forma de encarar a hipnose. Belling, por exemplo, costumava atrair muitos homens e mulheres que, fascinados pelo seu carisma, o procuravam com o objetivo de melhorar as suas vidas através das suas técnicas de hipnose. Os seus pacientes provinham de classes sociais diferentes e possuíam, por vezes, antagónicas convicções políticas e religiosas. Para além disso, existiam muitas famílias que recorriam aos seus conhecimentos de terapias aplicadas a crianças para resolver problemas de ansiedades e medos típicos da infância. Nesse aspeto, Marcus Belling despendia com grande prazer o seu tempo juntamente com os pequenos pacientes, talvez porque a sua carreira enquanto hipnotizador começara na pediatria dos hospitais onde se desencadeou o uso da hipnose para facilitar o diagnóstico de certas doenças.

Marcus Belling iniciara-se como hipnotizador no campo da hipnose clínica há quinze anos quando ainda pouco se falava em hipnose e muito menos da sua aplicação em ambiente hospitalar. Tudo começara, na realidade, quando Belling participou numa experiência conjunta com outros hipnotizadores pertencentes ao Conselho Nacional de Hipnose onde foi testado o uso da hipnose em crianças com epilepsia. Nessa altura, Marcus Belling teve a oportunidade de induzir o estado hipnótico nessas mesmas crianças criando assim um estado de alerta de consciência: posteriormente, procedeu-se à análise das mudanças no cérebro no padrão das ondas cerebrais. O cérebro foi então monitorizado por um aparelho de exame de imagens. Daqui, foi possível concluir que os sintomas apresentados por algumas destas crianças correspondiam de facto a sintomas típicos de outras doenças, o que permitiu concluir que estas não sofriam de epilepsia. Pela primeira vez, foi possível comprovar que a hipnose constituía um método fundamental que ajudava no diagnóstico clínico, mostrando ser essencial para que se pudesse aplicar o tratamento mais acertado. Como todos os especialistas, Belling sabia que o erro no diagnóstico prolongava o sofrimento dos pacientes.

Não seria exagerado afirmar que a larga experiência de Marcus Belling no campo da hipnose clínica foi decisiva no sedimento das suas convicções. Inconformado com o panorama atual da sua profissão, ele percebeu rapidamente que os jovens hipnotizadores não mostravam agora interesse em especializar-se nesta área, especialmente porque eram colocados em contacto direto com a dor humana. Todos fugiam do sofrimento alheio. Esta era uma dor tanto do corpo como da alma. Mas como Belling bem sabia, todo o conhecimento adquirido com a experiência constituía a base de formação de qualquer bom hipnotizador. Dentro dele, resistia a aceitação da filosofia “mercantilista” que era imposta ao exercício daquela profissão; por essa mesma razão, ele defendia que o uso mais frequente da hipnose clínica poderia aliviar a pressão que tinha recaído nos hipnotizadores para obter lucros rápidos e constantes com as suas sessões. Como ele bem sabia, parecia hoje mais importante gerar receitas avultadas com a hipnose do que usá-la nos meios hospitalares e desenvolver as suas técnicas com os doentes. Por isso, o famoso hipnotizador sentia que faltava uma investigação aprofundada acerca do uso futuro da hipnose nos hospitais, e que os jovens hipnotizadores estavam poucos interessados nesta vertente.

Gradualmente, da fusão de todas estas experiências profissionais, o popular Belling acabaria igualmente por ficar conhecido pelo facto de ter desenvolvido terapias familiares que ajudariam as famílias a superar conflitos internos. Ele era assim, simultaneamente, hipnotizador e terapeuta com a capacidade de conjugar bem as suas diferentes facetas.

Já Josef Salvaterra, no seu estilo mais antiquado, (e “antiquado” era uma palavra que muitas pessoas usavam quando tentavam descrever as suas técnicas) costumava receber no seu consultório homens e mulheres de meia-idade, normalmente mais conservadores e tradicionalistas que se mostravam avessos à forma de trabalho de Marcus Belling. Salvaterra sabia que alguns dos seus clientes apenas o procuravam porque já não conseguiam lidar com o excessivo mediatismo de Belling e, por essa razão, para fazerem valer a sua posição, procuravam um hipnotizador diferente. Nestes casos, o carisma de Marcus Belling tornara-se incomodativo. Desta forma, os respetivos pacientes (Salvaterra preferia chamá-los de “clientes”) dos dois hipnotizadores pareciam pertencer a claques distintas que por vezes se envolviam em conflitos. Mas tudo isto já fazia parte da rotina de Belling e de Salvaterra que praticavam a hipnose há mais de vinte anos.

Ao longo desses anos, o grande público mostrara igualmente interesse em conhecer as filiações políticas e ideológicas dos dois hipnotizadores; de forma pouco habitual, as pessoas consideravam que aqueles dois homens, embora não tivessem qualquer experiência política, dariam certamente bons políticos. O público inflamava-se com os seus discursos e surgiam adeptos, de um lado e do outro, que ora defendiam Belling, ora Salvaterra. Para uns, o primeiro daria um bom Ministro da Assistência Social, enquanto ao segundo já lhe tinha sido destinada, por votação popular, a pasta do Ministério do Trabalho. Os meios de comunicação tentavam neste ponto simplificar as suas divergências. Sucintamente, Belling era mais de direita e Salvaterra mostrava ter mais empatia com ideologias de esquerda. Era assim que as pessoas e também a imprensa os tinha “ideologicamente” dividido para uma mais fácil compreensão das suas antíteses pessoais e políticas. Marcus Belling tentava ignorar estas descrições, mas o mesmo não se passava com Josef Salvaterra que se preocupava muito com as suas descrições políticas. Apesar das diferenças, os dois hipnotizadores recusavam-se em participar na luta política, de certa forma porque consideravam que isso não seria benéfico para as suas carreiras. Apesar disso, lá no fundo, sem confessar, Salvaterra tinha neste campo há alguns anos, mais ambições do que Belling. Apenas se mantivera afastado da política para não destoar, no essencial, da postura do adversário. A verdade é que Josef Salvaterra tinha receio de trilhar um caminho demasiado diferente da do seu concorrente.

Marcus Belling e Josef Salvaterra limitavam, assim, as suas zonas de influência. Embora nem sempre de forma consciente, os dois hipnotizadores tentavam manter posturas idênticas perante o público e os meios de comunicação. Assim, apesar de possuírem personalidades muito distintas entre si, os dois tentavam não divergir no que era parecia ser fundamental: as suas convicções pessoais, políticas e ideológicas. Acharam por bem, não aprofundar as suas notórias divergências pessoais e profissionais, de modo que existia uma espécie de “acordo de cavalheiros”, que se traduzia em ações, e não em palavras. Talvez por causa disso, estava montado há muitos anos um esquema logístico de “espionagem” de ambas as partes que tinha como propósito conhecer todos os seus movimentos. No entanto, sem que Belling ou Salvaterra pudessem prever, todo o seu esquema de trabalho será colocado em causa com o aparecimento de Anne Pauline. Esta jovem mulher, também sem saber, irá alterar todas as circunstâncias pessoais e profissionais que estavam, há mais de vinte anos, sedimentadas em torno dos dois hipnotizadores.

Para as pessoas tornava-se igualmente necessário conhecer o passado de Marcus Belling e de Josef Salvaterra.

Marcus Belling nascera numa família de classe média. Era filho de um médico que não sabia o que era a hipnose, antes de Belling a começar a exercer. O pai, Elias Belling fora um “médico da terra”, ou seja, um dos poucos que decidira praticar a sua profissão fora das grandes cidades para poder ajudar a população que não dispunha de cuidados médicos e possibilidades económicas para recorrer a um médico fora da sua aldeia. Os “médicos da terra” eram, por isso, também chamados de “médicos nómadas” e há sessenta anos não existiam muitos. Anos mais tarde, o pai de Belling acabaria por ser reconhecido por uma Comissão Clínica Nacional como um dos mais competentes médicos do seu país. No entanto, quando Marcus Belling começou a exercer hipnose, o seu pai passou a viver permanentemente angustiado com as polémicas em redor do filho.

No início da carreira, a postura de Belling em se assumir como um hipnotizador de referência nacional parecia entrar em conflito com o passado da família, mais ligado à medicina tradicional. Como ele bem sabia, nesta época, para a maioria das pessoas, a medicina convencional representava a única forma de terapia e de cura para o mais variado tipo de enfermidades. Depois, com o progressivo mediatismo de Marcus Belling, a classe clínica do país tornou-se uma opositora às teorias que estavam a ser difundidas acerca do efeito terapêutico da hipnose. Deste modo, existiram várias tentativas de descredibilizar o trabalho do famoso hipnotizador e, por essa razão, o pai de Belling fora aconselhado a manter-se afastado destas mesmas polémicas. Por tudo isto, Elias Belling decidira retirar-se da medicina tradicional mais cedo do que o previsto, apesar de uma carreira de sucesso reconhecida a nível nacional. De forma inevitável, a sua carreira acabaria por exercer uma influência dominante no filho que, ainda com receio de se assumir como hipnotizador, começou primeiro por concluir o curso em medicina.

Já Josef Salvaterra tinha um passado muito diferente do de Marcus Belling. Salvaterra era órfão. A própria palavra era proibida de ser usada no seu discurso diário. Nas diversas entrevistas, raramente o hipnotizador abordava este assunto. Muitos não sabiam, mas ele fora criado com um tio, irmão do seu pai, que possuindo uma pequena fortuna, lhe pagou os estudos que lhe iriam permitir seguir uma estável carreira profissional. Ao contrário de Belling, Salvaterra nunca teve contacto com a medicina, nem mesmo durante a sua formação como hipnotizador. Para alguns, o curso de medicina era como que um alicerce fundamental na área da hipnose, razão pela qual consideravam que a falta deste elemento estruturante na vida profissional de Salvaterra, constituía um obstáculo para que se pudesse tornar um melhor profissional do que Marcus Belling.

Conhecemos agora o passado de Belling e de Salvaterra, mas pouco sabemos ainda acerca do de Anne Pauline. A primeira vez que a jovem conheceu Marcus Belling, foi neste dia de verão, quando tocou à campainha do seu consultório, situado na Avenida do Sol. Até este mesmo dia de julho, ela apenas o conhecia através da televisão e os dois nunca se tinham encontrado pessoalmente. Todavia, isto era o que julgavam, pois na verdade eles nunca se tinham conhecido nesta vida. Deste modo, torna-se importante falar um pouco mais acerca da misteriosa Anne Pauline Roux, uma jovem mulher de vinte e cincos anos, de grandes olhos verdes brilhantes e de longos cabelos pretos. O seu rosto era oval e às vezes usava óculos que, destacando os seus olhos claros, lhe devolviam uma profundidade estranha e misteriosa à sua própria personalidade. Também ela tinha um passado, tal como os dois hipnotizadores.

– Cada um de nós tem um passado. Todos os passados são importantes para que possamos ser capazes de definir a nossa própria identidade. – disse-lhe uma vez o pai.

– E se eu não conhecer o meu passado? O que é que me acontece? – perguntou a curiosa Anne Pauline quando tinha apenas dez anos.

– Nesse caso, não saberás quem és. – respondeu-lhe o pai.

– Isso parece assustador. – respondeu a menina.

Este diálogo com o pai iria sempre manter-se uma viva recordação na mente de Anne Pauline. Foi a partir deste dia que a jovem rapariga prometeu a si mesma, que iria descobrir o seu passado. Ela tinha medo de não saber quem era e, por isso, partiu numa busca incessante por si mesma.

O passado de Anne Pauline estava ligado ao mar. Era sempre lá que regressava quando as suas angústias interiores não lhe permitiam ver nenhum caminho claro à sua frente. Uma boa razão para isso é que o pai fora pescador a vida toda. A mãe era uma incansável atadora de redes, uma profissão em vias de desaparecimento e que sendo executada por uma mulher, tornava ainda mais particular a sua situação. Ela era uma excelente atadora de redes e na comunidade piscatória comentava-se inclusivamente que ela era a melhor atadora do país. Ela organizava e cozia tão bem que o marido dizia frequentemente que era por causa dela que lhe calhavam mais peixes nas redes. Por outro lado, comentava-se igualmente que o pai de Anne Pauline era um excelente pescador. Alguma coisa nele, que devia ser a intuição, lhe dizia onde devia lançar a rede e por norma encontrava mais peixe do que os seus colegas de profissão. Raramente se enganava. Quando ele decidia lançar as redes numa certa zona do mar, costumava pescar grandes quantidades de todo o tipo de peixes, o que no final do mês significava ter ao seu dispor um orçamento mais avultado.

A família, por sua vez, era proprietária de um barco de pesca (como todas as famílias da comunidade) chamado “Argo”. A embarcação já tinha pertencido aos avós de Anne, também eles pescadores. Tendo sido deixado em terra firme durante muitos anos, este começou a degradar-se rapidamente. Após a sua restauração, o pai de Anne Pauline decidira dar-lhe o nome de Argo, o que gerou alguma polémica entre as pessoas que diziam que o nome se devia a um filho ilegítimo que ele tivera de uma rapariga que, um dia, aparecera naquela localidade e que desaparecera poucos meses depois sem deixar rasto. Várias vezes os dois foram vistos juntos, mas ninguém podia confirmar uma possível relação. Depois deste acontecimento, o Argo voltou ao mar no seu esplendor. O belo barco estava pintado em cores de arco-íris: de um lado estava desenhado um peixe onde se podia ler a palavra Icthus e do outro, para quem prestasse atenção, estava uma serpente que segurava a sua própria cauda e onde se podia ler, desta vez, a palavra Ouroboros. Ninguém sabia ao certo o que isto poderia significar. O pai de Anne Pauline era considerado inteligente, apesar de não ter estudos e, talvez por isso, algumas pessoas tinham receio de lhe dirigir a palavra. Existia nele uma espécie de reverência, que todos respeitavam, e que raramente colocavam em causa. Por essa mesma razão, nunca ninguém o confrontou com a história do filho ilegítimo e com o significado das estranhas mensagens que ele parecia evocar na sua embarcação. Nem mesmo a própria filha.

Durante a infância, Anne Pauline tivera muitas oportunidades de viajar com o pai, sentados os dois no Argo, olhando o horizonte. Ao final do dia, alguns cardumes de peixe assomavam à superfície da água como numa última tentativa de ver o pôr-do-sol, também eles admirados com a beleza do mundo. Ao fundo, muitas vezes, apareciam então as gaivotas, esbeltas e curiosas, atraídas pelos peixes que faziam do mar a sua varanda particular para ver o sol uma última vez. Também durante estas viagens, Anne Pauline questionava-se se teria mesmo um irmão ou seriam histórias, uma forma de as pessoas saciarem a sua curiosidade por novidades escandalosas? Por medo, nunca chegou a confrontar o pai com essa história.

O mar oferecia a Anne Pauline uma dádiva preciosa e que raramente lhe era permitido viver: a paz e tranquilidade interiores. Algo a perseguia. Era algo tão grande que ela tinha dificuldade em o compreender. Na realidade, desde criança que se lembrava de sonhar com imagens estranhas que lhe causavam angústia durante a noite e que não conseguia explicar. Frequentemente existiam momentos de inquietude e de tristeza que aparentemente não tinham explicação, pois apesar da pobreza, ela tivera uma infância feliz; pelo menos assim o poderia afirmar com convicção, quando se lembrava das suas viagens com o pai sentada na embarcação da família. A verdade, é que algo não a deixava viver.

Ninguém sabia, mas na realidade ela tinha uma vida de dia e outra à noite. Jamais ela comentou isto com os pais, que teriam dificuldade em a compreender, dado que a maior preocupação deles era trazer sustento para casa. De facto, quando a principal preocupação é sobreviver todos os dias, tudo o resto à volta parece desaparecer. Nada é mais importante do que sobreviver ao dia seguinte. Talvez por isso, os pais de Anne Pauline não soubessem o que se passava com o passado da filha: este era um passado que teimava em evidenciar-se sempre que podia. Durante muitas noites, uma voz de homem muito nítida costumava perguntar-lhe de forma incessante:

– Qual é o teu verdadeiro nome?

– Conheces bem o teu passado?

– És honesta?

– Queres o bem dos outros?

– Tens valores?

– Se um dia chegares a conhecer um lugar secreto, serás capaz de guardar segredo? Sabes guardar segredos?

A voz daquele homem vinha de um mundo que ela não conhecia. As perguntas eram sempre as mesmas e aos poucos, ela começou a duvidar da sua própria identidade. Ao longe, ela conseguia ver o rosto de alguém que abanava com a cabeça: não, ela não era honesta, era o que ele pretendia dizer. Como convencê-lo do contrário? Como é que ele a poderia conhecer tão bem ao ponto de a fazer duvidar de si mesma? E se ela teria outros nomes? Porque é que ela teria outros nomes? As perguntas começavam-lhe a assaltar a mente e nunca mais a abandonaram. Até ao dia, em que ela já não sabia quem era, apesar da promessa que tinha feito ao pai.

No dia em que Anne Pauline deixou de poder cumprir a sua promessa com o seu pai, de nunca esquecer o seu passado, de onde vinha, já nem as viagens de barco no mar lhe traziam a felicidade e a tranquilidade que ela necessitava. O “Argo” passou a ficar atracado mais vezes, e mesmo as gaivotas começaram a sentir a falta da jovem, que agora só via o horizonte na praia, desejando saber quem era aquele homem que lhe falava à noite, colocando-lhe tantas questões. Muitas vezes ao longe, a força das marés deixava visível uma faixa de terra, que elevando-se das águas, formava uma pequena ilha, onde todos os pássaros das redondezas procuravam o seu petisco do dia. Era uma ilha isolada, apenas feita de areia, onde reinavam os sons da natureza. Por isso, Anne Pauline chamava-lhe a “Ilha dos Pássaros”.

À medida que Anne Pauline ia crescendo, este sentimento foi-se intensificando até se tornar intolerável ao ponto de necessitar de procurar ajuda. Depois de muitos anos sem acreditar nos efeitos terapêuticos da hipnose, decidira finalmente procurar o famoso e carismático Marcus Belling. Ela não fugia às estatísticas. Também ela não conseguia resistir ao charme e ao encanto natural de Belling. Nem nunca pensara em Josef Salvaterra, quando decidira procurar na hipnose um tratamento para as suas inexplicáveis angústias. Ainda assim, ao contrário do que se passava com muitas pacientes de Belling, Anne Pauline não pretendia recorrer à hipnose para conhecer um amor do passado ou eventualmente saber se tinha sido uma figura histórica de destaque. Alguma coisa dentro dela lhe dizia que as suas emoções estavam relacionadas com experiências de diferentes vidas no passado que continuavam a enviar-lhe mensagens subliminares (mesmo que só através dos sonhos). O passado tinha então esta forma brutal de comunicar com ela como se durante todo aquele tempo lhe estivesse a impor a necessidade de regressar a um determinado local para rever os mesmos acontecimentos. O passado exigia-lhe agora que ela olhasse para o mundo à sua volta, de forma diferente.

Mas como poderia o passado estar a comunicar com ela? E como poderia ter ela a certeza de que um passado desconhecido tentava agora chegar até ela? Os sonhos de vidas passadas pareciam invadir as suas noites, ano após ano. Sem o conseguir impedir, ela ouvia a mesma voz familiar daquele homem que lhe continuava a colocar um conjunto de perguntas, que não pareciam ter sido escolhidas de forma aleatória:

– Quem és tu?

– Conheces a verdadeira história do Argo e do teu pai?

– Tens as tuas convicções, ou perdeste os valores?

– És capaz de viajar até ao passado? Queres descobrir o que existe lá?

– És uma pessoa respeitosa?

– Serias capaz de acreditar em algo que não és capaz de ver?

Este mesmo homem aparecia na sombra destes sonhos a abanar a cabeça. Não, ela não era uma pessoa respeitosa. Era necessário ela viajar até ao passado, mas como poderia fazer isso? E o que existiria no passado para ela descobrir? Cada vez se tornava mais claro que ela deveria ir até lá, mas tal como o homem lhe tinha perguntado, ela não sabia se era capaz de acreditar em algo que não pudesse ver. E se ela tivesse perdido os valores? Afinal, quem era ela? A este propósito, vendo-a tão pensativa, o pai disse-lhe uma vez:

– Hoje em dia as pessoas têm cada vez mais dificuldade em acreditar em algo que não vejam. Gostava que contigo fosse diferente. É importante acreditares na tua intuição e nas tuas convicções. Nada disso se vê, mas tudo isso se sente.

Aquele homem que lhe apareceu durante todas as noites durante a sua vida e juventude, fê-la duvidar de si mesma. Estranhamente, quando ele perguntava pelo seu passado, ele colocava em causa a sua honra e a sua dignidade. A jovem Anne Pauline não compreendia a atitude daquele homem, cujo rosto nunca se mostrava. Afinal, quem seria ele?

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Um dia, ele colocou-lhe uma pergunta diferente de todas as outras: «Imagina que possuías a capacidade de voltar ao teu passado. De certeza que não olharias para os mesmos acontecimentos da mesma forma. Terias um olhar diferente». Perante o desafio, Anne Pauline refletiu um pouco no que tinha acabado de ouvir e percebeu que seria antes de mais fisiologicamente impossível retornar ao passado. O ser humano não tem maneira de alterar o tempo. No entanto, existia uma possibilidade de o fazer. Talvez a única. Através da Regressão de Vidas Passadas. Desta forma, no momento de procurar um especialista em Terapia de Vidas Passadas, Anne Pauline conhecia bem a antiga disputa que existia há vinte anos entre Marcus Belling e Josef Salvaterra. Mas ela era alheia a tudo isso. Ela precisava de ajuda.

Era consensual que o carisma e o encanto de Marcus Belling não deixavam ninguém indiferente. O famoso hipnotizador era um homem de quarenta e cinco anos, relativamente alto, de cabelo escuro e olhos grandes castanhos: olhos esses que brilhavam quando discursava acerca da hipnose fosse na televisão ou nas palestras organizadas pelo Conselho Nacional de Hipnose. Com estas aparições, o seu glamour costumava espalhar-se pelo país todo. Também as mulheres de um modo geral deliravam com estes momentos. Todavia, não eram apenas os seus encantos próprios que ajudavam ao seu mediatismo, mas igualmente a sua reconhecida competência nacional e internacional no campo da hipnose e da regressão: a sua especialização dizia sobretudo respeito a duas grandes áreas, hipnose clínica e hipnoterapia. Belling tinha estudado Terapia de Vidas Passadas nos Estados Unidos onde adquirira uma grande parte dos conhecimentos sobre o tema. Apesar de todo o seu mérito, ele estava longe de constituir uma figura consensual.

No início da sua carreira, Marcus Belling era visto pelo público mais como um vendedor do que como um hipnotizador: ele era um vendedor que sabia vender bem o seu produto, como acontecia com todos os profissionais mais comerciais. Várias vezes tinha sido acusado disso mesmo! Era sua convicção de que a medicina convencional não era a resposta para a cura de todos os sintomas do Homem: apenas na procura de uma cura holística seria possível providenciar às pessoas aquilo que elas procuravam. Não raras vezes ele tinha sido considerado um charlatão. Por essa razão, ele tivera dificuldade em assumir-se como um reconhecido profissional na área, sobretudo nos primeiros anos. A superstição e o preconceito assombravam a carreira de Marcus Belling. Para isso, ele contava com o apoio inestimável da sua mulher, Patricia Murio, uma fisioterapeuta dedicada à família.

Por tudo isto, os primeiros dez anos na carreira de Marcus Belling foram difíceis de percorrer e nem a sua capacidade de criar rapidamente empatia com as pessoas facilitou o processo de adaptação a novos tempos. Ele queria transmitir a mensagem de que a hipnose poderia ser aplicada em diferentes contextos traumáticos, fisiológicos e emocionais. No entanto, com o decorrer dos anos, as pessoas foram-se apercebendo de que Belling era de facto um estudioso sério nesta área e que as suas investigações eram exaustivas e rigorosas. A ideia de charlatão e de vendedor foi-se desvanecendo. Por outro lado, era inquestionável o sentido de responsabilidade com que desempenhava diariamente a sua profissão. Assim foram sendo desmistificadas crenças em torno da hipnose e, nisto, assistiu-se a uma ascensão gradual, mas sólida, de um reconhecimento nacional de Marcus Belling. Alguns anos mais tarde, ele seria conhecido como o mais famoso hipnotizador do país.

Existiam muitas pessoas à espera de uma sessão de hipnose com o reputado Marcus Belling. Efetivamente, pode-se afirmar sem exagero, que estas mesmas pessoas podiam ser distinguidas na Avenida do Sol, das restantes, que eram apenas transeuntes. O rosto dos “escolhidos” ficava subitamente iluminado, como se tivessem acabado de ter tido uma clarividência acerca do mundo. Mas o mais importante é que Belling também conseguia distinguir entre alguns destes curiosos que chegavam ao seu gabinete, daqueles que apenas pretendiam vender imagens do interior do seu local de trabalho a revistas e jornais sensacionalistas e daí ganhar muito dinheiro. Tornava-se assim necessário filtrá-los a partir das centenas de pessoas que o procuravam para serem ajudadas com os seus problemas: estas pessoas sim, eram uma prioridade na sua carreira.

Tal como o seu pai, Elias Belling, o famoso hipnotizador queria servir as pessoas com a sua profissão. A hipnose era usada como um instrumento de missão pública, sendo esta a marca distintiva no perfil de Marcus Belling. Assim, procuravam-no pessoas que se queixavam de dificuldades no sono, peso excessivo ou magreza extrema, ansiedade, dores crónicas, emocionais ou físicas, ou de uma forma geral, influenciadas por inquietudes da alma. Quanto a estas últimas, a regressão ajudava a compreender o que existia no substrato do inconsciente, permitindo resolver traumas das vidas passadas e contribuindo, desta forma, para o desfrutar de uma vida mais plena.

O mesmo sucedia com Anne Pauline. Foi a inquietude da sua alma que a levou a procurar Marcus Belling, embora, por norma, os pacientes que faziam a regressão fossem os mais descrentes quantos aos efeitos terapêuticos da hipnose. Por isso, estes procuravam primeiro a orientação de um psicólogo para compreender o seu estado de alma e apenas quando os sintomas se mantinham inalterados durante vários anos é que recorriam a um hipnotizador. A Terapia de Vidas Passadas era então a única solução para os casos mais complicados.

Marcus Belling não trabalhava sozinho. Esta era uma parte da sua receita para o sucesso. Para evitar que os simples curiosos prejudicassem a sua carreira, o famoso hipnotizador trabalhava há muitos anos com uma pequena equipa que lhe era extremamente leal. Era esta mesma equipa que lhe filtrava os casos por ordem de prioridade e que conseguia avaliar as reais intenções daqueles que procuravam a sua ajuda.

Belling não seria famoso e rico sem a ajuda de Sofia Estelar, a sua secretária pessoal de há muitas décadas. Alta, de olhos joviais, ela era sua secretária desde o início da sua carreira, tendo assistido ao afastamento de Elias Belling da sua profissão, à medida que o filho ia ganhando maturidade e mediatismo. De aproximadamente cinquenta anos, Sofia era casada e mãe de dois filhos e mantinha por Belling uma relação maternal, porque quem nutria um enorme sentimento de proteção; eles já trabalhavam juntos naquele gabinete há mais de vinte anos, pelo que se tornara impossível não desenvolver uma relação de enorme proximidade emocional. Essa mesma proximidade era óbvia todos os dias, em todas as circunstâncias. Inclusivamente, existia no gabinete de Belling uma fotografia antiga dos dois, ampliada, que tinha sido registada quando o consultório abrira pela primeira vez as suas portas naquele preciso local há duas décadas. Desde essa altura, já Sofia e Marcus Belling tinham mudado as suas feições e um pouco o seu temperamento. Ambos sabiam que o tempo era sempre implacável com o Homem.

Um dos traços mais marcantes da personalidade de Sofia Estelar era a sua extrema desconfiança. Isto era algo que já tinha nascido com ela, que fazia parte da sua natureza, e que a ajudara a superar as dificuldades dos primeiros tempos, quando Marcus Belling tentou, de forma inovadora, apresentar a hipnose às pessoas como uma forma de tratamento da alma. Desde logo, que a sua figura chamou a atenção do famoso hipnotizador, que admirava o seu carácter forte e marcado, de alguém que não desiste perante as primeiras dificuldades; o sorriso ciumento que ela tantas vezes esboçava, era apenas a confirmação de que entregava toda a sua dedicação a algo em que acreditava. Por essa mesma razão, Belling soube desde o início que ela era a pessoa indicada para desempenhar aquela função para o novo consultório situado na Avenida do Sol. Teria de facto de ser alguém que, ao contrário do famoso hipnotizador, concentrava todas as suas atenções a detetar possíveis motivações menos éticas de alguns que apenas procuravam um breve momento de mediatismo.

Era difícil e exigente gerir a agenda profissional de Marcus Belling. O tempo era sempre curto para todas as solicitações e por isso tornava-se necessário identificar rapidamente as prioridades. Belling fizera uma escolha acertada quando escolheu Sofia Estelar para aquela exigente função. Por essa razão, há mais de vinte anos que trabalhavam unidos para trazer a hipnose para junto daqueles que mais precisavam dela. Ambos estavam conscientes de que este era um trabalho de missão pública.

Para além disso, Sofia Estelar assistira à primeira década bastante dura de Belling em que este tivera de se afirmar no panorama nacional como um reputado hipnotizador: a partir daí, deu-se a ascensão da sua carreira. Ela sempre fora um grande apoio e por isso não era exagerado afirmar que o sucesso de Marcus Belling estava ligado, de forma inevitável, aos esforços desenvolvidos pela sua secretária pessoal para o proteger de malícias e de esquemas que lhe pudessem ser prejudiciais. Sem exagero, também se podia afirmar, que a sua desconfiança natural tinha ajudado no processo de construção de uma estável carreira. Os dois eram, por isso, eternos confidentes. Existia assim da parte de Sofia Estelar um juramento que ela tinha feito há muitos anos: ela iria proteger o famoso hipnotizador de todos os ataques exteriores (que eram os mais variados e provinham de várias frentes de ataque). Isto porque, mais do que ninguém, conhecia o exaustivo trabalho de bastidores que existia por detrás da gestão da sua imagem e da sua carreira. De facto, durante mais de vinte anos ela concretizou o seu juramento com sucesso, exceto quando Anne Pauline entrou na vida de Marcus Belling. Neste caso, nem mesmo a sua personalidade desconfiada e a sua afiada intuição poderiam evitar que as suas vidas mudassem para sempre.

Sofia Estelar sempre fora leal a Marcus Belling. O juramento, verbalizado em palavras indecifráveis à noite, ao pé da sua cama, ditava-lhe a regra de que teria de proteger o famoso hipnotizador, independentemente do que acontecesse. Ela não era apenas a sua secretária. Ela era sua confidente e amiga. Assim, quando a vida profissional do famoso hipnotizador era assolada por escândalos com o objetivo de o descredibilizar, Belling procurava conforto junto dela e recebia, com prazer, a sua compreensão. Por vezes, a cumplicidade que existia entre os dois criava a aparência de uma relação ambígua que nem sequer era percetível a Patricia Murio. Ao longo dos anos, a relação foi-se tornando cada vez mais difícil de caracterizar, criando a ideia de se tratar de um casal de amantes, mas ainda assim apenas amigos. De facto, eram precisas novas palavras para descrever a sintonia que existia entre ambos, mas com o aparecimento de Anne Pauline os dois acabarão por descobrir que as suas vidas estão igualmente ligadas através do passado.

No início, Sofia Estelar trabalhava sozinha com Marcus Belling no seu consultório da Avenida do Sol, mas ao longo do tempo ela foi-se apercebendo que o seu amigo precisava de alguém que pudesse trabalhar a sua imagem. Belling era bastante ingénuo no que tocava à sua relação com os outros, não alimentando por ninguém qualquer tipo de desconfiança, o que por vezes o prejudicava, tendo em conta a sua posição. Desde cedo, a sua relação conflituosa com Josef Salvaterra lhe trouxe amarguras profissionais difíceis de gerir que, por vezes, desenvolviam pequenos escândalos que Sofia Estelar teve de ir resolvendo ao longo dos anos. Ao longo de duas décadas, e de forma inevitável, as personalidades de Sofia e de Belling foram-se alterando e definindo para acompanhar o passo do progresso, e as suas múltiplas facetas; desta forma, os dois eram pessoas diferentes quando olhavam agora a fotografia (pendurada numa das paredes) que lhes tinha sido tirada no primeiro dia em que abriram o consultório no nº. 27 da Avenida do Sol.

Por várias vezes, Sofia Estelar tinha pedido a Belling para ser uma pessoa mais desconfiada, tendo em conta a sua carreira e as suas responsabilidades, mas os elementos da sua personalidade dificilmente eram alterados por recomendação. «Tem de prestar mais atenção às pessoas que o rodeiam», dizia-lhe ela frequentemente. Contudo, estas palavras raramente surtiam efeito, pelo que os conflitos com Salvaterra acabaram por se agudizar ao longo dos anos. Tendo a situação se tornado insustentável, Sofia Estelar rapidamente percebeu que era necessário contratar alguém que pudesse gerir a imagem do famoso hipnotizador e, por esta via, veio a conhecer Maria de Burgos, uma mulher de trinta e oito anos, inteligente e perspicaz, filha de pais espanhóis e com sangue latino a correr-lhe nas veias. Carismática, já tinha trabalhado com outros profissionais que também lhe tinham solicitado os seus serviços para gerir a sua imagem pública. Desde o início, que existiu uma verdadeira empatia entre ela e Sofia Estelar e assim, foram compondo o começo de uma equipa de trabalho, que haveria de ser bastante leal a Marcus Belling. Maria de Burgos aceitou imediatamente o convite para integrar o grupo na Avenida do Sol. A equipa em si estava lentamente a formar-se e, através dela, vinha o inevitável sucesso de Belling.

Maria de Burgos passava agora então a gerir todos os assuntos relativos à imagem do famoso hipnotizador perante os meios de comunicação e o público em geral. Ela aconselhava-o quanto à postura a ter na sua relação com as pessoas, dando-lhe preciosas sugestões de como gerir este mesmo contacto e evitar demonstrar uma confiança excessiva. Por outro lado, a relação de Belling com Josef Salvaterra também se alterou, agora mais controlada e sem grandes escândalos. Mas, ao longo dos anos, Maria de Burgos compreendeu também, que não conseguia impor, totalmente, a sua forma de trabalho a Marcus Belling, pois ele insistia em manter uma proximidade demasiado grande (nem sempre recomendável, do seu ponto de vista), com o seu público. Tal implicava, por vezes, um risco para a sua carreira que, nem ela, nem Sofia Estelar, estavam de acordo, pois corriam o risco de ver o esquema logístico montado no consultório da Avenida do Sol colapsar. Agora, algo de bastante revolucionário estava prestes a suceder quando Anne Pauline entrou na vida do famoso hipnotizador. Para este, contudo, exercer aquela profissão significava aceitar que o risco fazia parte da mesma, embora isso nem sempre fosse óbvio.

Passada a primeira década da sua carreira, Marcus Belling trabalhava agora com mais confiança. O apoio de Sofia Estelar e de Maria de Burgos tinha mudado totalmente a configuração da imagem do seu consultório na Avenida do Sol. No entanto, a equipa não poderia estar completa sem ter alguém responsável pela cobrança das sessões de hipnose. A pessoa responsável por este cargo chamava-se Ruben Mortsel. O jovem contabilista trabalhava há poucos anos com Marcus Belling depois de ter substituído o seu antigo contabilista, Vicente Torquay. Este trabalhara com o famoso hipnotizador durante mais de duas décadas. Por outro lado, Mortsel desempenhava um papel fundamental no gabinete ao controlar todas as receitas que eram geradas pelo trabalho diário de Marcus Belling.

Vicente Torquay, o antigo contabilista do consultório da Avenida do Sol, tinha ensinado tudo a Ruben Mortsel, antes de se ter reformado. As novas funções de Mortsel exigiam agora um espaço diferente para o departamento e faturação, que passou assim a funcionar no prédio ao lado do n.º 27. Aqui, Torquay e Mortsel ainda trabalharam juntos um ano, informando o famoso hipnotizador acerca do dinheiro gerado com as suas sessões. Mas os relatórios de faturação sempre pareceram importar pouco para Marcus Belling, que não duvidava da honestidade profissional dos dois contabilistas. Ele sabia que ganhava muito dinheiro com a sua profissão, mas durante muito tempo decidiu desconhecer os reais valores das receitas geradas com as suas sessões de hipnose. Para além disso, o acesso ao gabinete de contabilidade do famoso hipnotizador era restrito, passando primeiro pelo crivo exigente e desconfiado de Sofia Estelar. Tudo parecia estar sob controlo até ao súbito aparecimento de Anne Pauline. O mesmo não se passava com Josef Salvaterra, que conhecia com detalhe toda a sua contabilidade.

Estava assim composta a equipa de trabalho de Marcus Belling. Todos eles tinham feito o juramento coletivo de defender o hipnotizador e o seu trabalho, lutando ao mesmo tempo pelo espírito de missão que os acompanhava: a hipnose servia para ajudar as pessoas a encontrar o seu caminho para a plenitude e felicidade interiores, embora nem todos acreditassem com a mesma intensidade neste lema de trabalho. No entanto, era este o mote para que o consultório na Avenida do Sol continuasse de portas abertas. Nesse aspeto, apesar de ser um pouco ingénuo, Marcus Belling era extremamente rigoroso quanto à atitude que esperava dos seus colaboradores e amigos: não tolerava egos inflamados pelo mediatismo e pelo sucesso, ataques de arrogância ou vaidade, e a ignorância acerca da própria prática da hipnose era rapidamente elucidada por ele ou por colegas para combater os preconceitos instalados. Existia, por isso, uma espécie de lema filosófico na sua vida profissional que ligava todas estas pessoas entre si e que tinham assinado um contrato de lealdade de trabalho para com o famoso hipnotizador. Ainda que os níveis de lealdade não fossem todos idênticos, a verdade é que esta existia em toda a equipa que promovia e defendia o trabalho do filho de Elias Belling.

Marcus Belling, por seu lado, era como uma espécie de cacho de uva que todos adoravam ver envelhecer e transformar-se num bom vinho. Nos tempos de estudante nos Estados Unidos, ele recorrera várias vezes à Clínica da Universidade para usar a hipnose como forma de aliviar as ânsias dos alunos durante o seu percurso académico. Estes foram tempos de uma intensa aprendizagem. Embora especializado em hipnose clínica, foi aqui que Belling tomou pela primeira vez contacto com a utilização da hipnose aplicada à regressão a vidas passadas. No início, também ele tinha os seus próprios preconceitos no que se referia à Terapia de Vidas Passadas que, no seu país, ainda era relativamente desconhecida. A partir desta experiência no estrangeiro, Belling começou progressivamente a deixar os hospitais, onde também despendia uma parte considerável do seu tempo, para se dedicar à investigação da hipnoterapia e da regressão. Com este novo interesse, foi a partir daqui que começou a crescer o seu sucesso junto do público.

Após se ter formado em Terapia de Regressão nos Estados Unidos, Marcus Belling veio a casar-se com Patricia Murio, uma fisioterapeuta que também tinha o seu consultório privado no centro da cidade, mas distante da Avenida do Sol. Tinham dois filhos e viviam nos arredores da cidade.

O famoso hipnotizador considerava-se agradecido pela sua vida, que era bem-sucedida, de uma maneira um pouco inesperada, mais calma do que em tempos anteriores, mas ainda assim turbulenta. Nesse aspeto, Maria de Burgos tinha o trabalho diário de afastar pessoas incómodas, algumas vezes sem êxito. Entretanto, Salvaterra vivia obcecado com o sucesso do colega, alguns anos mais novo do que ele e que se iniciara na carreira mais tarde, tirando-lhe assim todo o protagonismo. Para além de ambos possuírem personalidades distintas, existiam também diferenças no método de trabalho que criavam clivagens profundas entre ambos. De facto, muitos pacientes de Marcus Belling afirmavam que ele dispunha de uma maneira mais democrática de trabalhar do que o seu colega Josef Salvaterra: este identificado com uma linha mais tradicional da prática da hipnose em que se recorria à chamada indução hipnótica clássica. Nestes casos, o hipnotizador obrigava o paciente a entrar em estado hipnótico segundo as suas palavras e orientação sem lhe dar a liberdade de escolher como entrar nesse mesmo estado. Para outras pessoas, pacientes de Salvaterra, isto era apenas um detalhe sem grande importância.

Apesar de serem muito diferentes na sua forma de trabalho, Belling e Salvaterra sabiam que era a confiança que estabeleciam com os seus pacientes que trazia a verdadeira cura para a alma. A eficácia dos seus tratamentos tinha algo de “efeito placebo”. O efeito placebo não criava ilusões menos verdadeiras, não sendo este o propósito; na realidade, ajudava as pessoas no processo de construção de um “convencimento interior” de que as técnicas empregues poderiam de facto intervir na alma e curar os seus piores traumas. Estes métodos funcionavam realmente com sucesso, mas os mais céticos tinham dificuldade em aceitar esta ideia, pelo que era importante criar a aparência dessa mesma eficácia. O que efetivamente importava nesse processo é que o efeito pretendido funcionava muitas vezes e, por essa razão, era utilizado pela maioria dos hipnotizadores que integravam o Conselho Nacional de Hipnose. A confiança com os pacientes era assim o elemento fundamental para uma carreira de sucesso na área da hipnose.

Marcus Belling e a sua equipa de trabalho tinham há muito tempo conhecimento dos métodos de trabalho de Josef Salvaterra. Este possuía uma postura de maior autoridade e de arrogância que assustava todos aqueles que já estavam habituados à relação democrática e aberta que mantinham com Belling no seu gabinete. Sem surpresa, os dois hipnotizadores faziam parte de duas escolas diferentes de hipnose que defendiam posturas distintas na relação entre hipnotizador e hipnotizado. O passado dos dois homens explicava também a sua opção pelo recurso a técnicas tão diferentes.

Vale por isso a pena conhecer agora um pouco melhor Josef Salvaterra. Tendo mais alguns anos de prática do que o seu concorrente, teve uma infância difícil, embora sempre acompanhado pelo seu tio rico. Um pouco mais velho do que Belling, de olhos e cabelos castanho escuros, tinha a alcunha de “batata” quando era pequeno devido à forma achatada do seu nariz que muitas vezes fazia lembrar uma verdadeira batata. Salvaterra foi na realidade o primeiro grande hipnotizador conhecido do público. Também nessa altura pouco se sabia acerca da hipnose, apenas que se tratava de um método terapêutico muitas vezes complementar da medicina convencional. Neste aspeto, o uso da palavra correta tinha-se tornado fundamental: há vinte anos, a hipnose era complementar, não alternativa aos métodos existentes, no que respeitava ao tratamento de hábitos de vida nocivos e de diagnóstico das doenças. A diferença na terminologia empregue tinha influência no processo de credibilidade da prática da hipnose.

Ao crescer, Salvaterra percebeu que a escolha da profissão era importante para alimentar todos os egos inflamados que se tinham escondido durante todo aquele tempo. O tio rico sempre tinha considerado uma boa ideia o sobrinho seguir a carreira de hipnotizador. Neste campo, começavam a florescer as primeiras formações de hipnose, pelo que existiam mais oportunidades de o sobrinho ser pioneiro em algo que as pessoas ainda não estavam ainda habituadas a lidar e a ouvir. Também já não era necessário frequentar a Universidade de medicina, cujos longos e extensos cursos contribuíam para uma maior delonga, desnecessária, numa carreira que se pretendia ser lucrativa, desde o primeiro dia. Por essa razão, desde cedo que o tio lhe começou a incutir o interesse pela hipnose, chamando-lhe a atenção que aquela carreira poderia ser o seu futuro sucesso, se tivesse a coragem de explorar terrenos que nunca tinham sido percorridos. Para o ajudar na decisão final, ele apresentou-lhe a jovem Marbella Gorey, de olhos castanhos escuros e quentes, por quem o sobrinho se apaixonou loucamente. Ele sabia que Marbella era ousada, ambiciosa e gananciosa. Com a sua astúcia e alguns encantos próprios, ela conseguiu assim convencer Josef Salvaterra a lançar-se na carreira de hipnotizador, tornando-se ela própria beneficiária desse mesmo sucesso. O tio e Marbella estavam felizes, e bem assim também Salvaterra que apesar de tudo encontrava na sua profissão o alento necessário para esquecer a sua infância difícil. Tudo estava a correr bastante bem neste percurso até Marcus Belling se ter começado a destacar a nível nacional. Ao mesmo tempo, nesta época, já o perfil de Salvaterra como hipnotizador se encontrava definido; a sua arrogância desencorajava-o de continuar a investigar na sua área de trabalho e desta forma começou, progressivamente, a usar um tom cada vez mais autoritário com os seus pacientes. Nem todos possuíam o espírito crítico orientado para duvidar que era “possível fazer diferente”. Esta abertura de mentalidades apenas surgiu alguns anos mais tarde, com Belling.

Marbella Gorey não ficou igualmente satisfeita com o mediatismo de Belling. Sem o confessar, este acontecimento levou-a a considerar o seu casamento com Salvaterra como um projeto falhado. Tanto ela como tio rico, jamais poderiam imaginar que iria sobressair no panorama nacional um talento inato para a hipnose, como o de Marcus Belling. Contudo, também ela se tinha apaixonado ao início por Salvaterra e por isso não questionou afastar-se dele, pelo menos durante os primeiros dez anos. No entanto, o seu espírito inquieto mandava nela e não se conformava com aquela situação. Marbella começou assim, ao longo do tempo, a atiçar a disputa entre os dois hipnotizadores e a necessidade de ganhar mais dinheiro e estatuto social orientava-lhe todos os propósitos na vida. De alguma maneira, tentava ter o controlo sob as receitas geradas com as sessões de hipnose realizadas no consultório do marido. Marbella Gorey era particularmente venenosa, para além de ser uma pessoa com quem ninguém se sentia bem. Com os anos, foi ganhando um corpo cada vez mais raquítico como se por dentro estivesse a ser devorada por vinganças pessoais que não conseguia ultrapassar.

Marbella era uma grande amiga de Jasmine, sendo esta a única pessoa capaz de controlar Marbella e de a manipular para os seus próprios fins. As duas eram amigas há muitos anos. Na realidade, Jasmine era uma pessoa única e diferente, talvez por ser orácula, vidente e cartomante o que lhe tinha permitido desenvolver fortes perceções extra-sensoriais que a tornavam uma pessoa a quem se recorria em situações de dificuldade. Assim, quando Anne Pauline entra na vida de Marcus Belling também a sua própria vida irá mudar, tanto no presente como no passado.

Josef Salvaterra não tinha medo da mulher. Conhecia-lhe bem o caráter e sabia impor a sua autoridade. Amava-a profundamente. Por a conhecer tão bem, ele sabia perfeitamente quando é que ela o tentava controlar e manipular, o que raramente acontecia, pois ele não aceitava com facilidade as suas sugestões para dirigir o seu trabalho enquanto hipnotizador, numa dada direção. Isto sucedia particularmente quando ela lhe recomendava pessoas para trabalhar juntamente com ele, que normalmente serviam de espiões para controlar Marcus Belling e a sua equipa. «Tens de assegurar o lucro certo ao final do mês», dizia-lhe ela frequentemente. Marbella, por seu lado, não insistia. No fundo, ela tinha bastante receio de perder a sua “galinha dos ovos de ouro” e, por essa razão, ao longo do tempo, aquela união foi-se tornando uma relação de conveniência.

Ao contrário de Marcus Belling, Josef Salvaterra não contava com uma equipa leal que defendesse e promovesse o seu trabalho enquanto hipnotizador. Pontualmente, ele contava com a participação de pessoas escolhidas pela mulher para melhorar e controlar a parte logística da sua profissão, mas rapidamente as dispensava. Tanto Salvaterra como Marbella, tinham necessidade de dominar todas as circunstâncias daquele negócio; efetivamente, a hipnose era apenas um negócio e os seus pacientes eram seus clientes. Não existia ali um espírito de missão pública que os movia, e as receitas geradas pelas sessões de hipnose eram a principal razão para manter o consultório aberto. Este localizava-se numa zona oposta da cidade ao de Belling, longe da conhecida Avenida do Sol.

Ao mesmo tempo, Marbella tinha ainda um pequeno desejo e ambição escondidos. Desejo esse que nunca confidenciara ao marido. Na cidade existia um clube secreto que era conhecido como o “Clube da Feitoria” bastante restrito e do qual faziam parte as mulheres mais ricas do país. Tinha-se tornado uma honra fazer parte desse mesmo clube e comentava-se, em sussurro, que estas mulheres controlavam um grande número de estruturas ligadas à cultura e à educação, o que lhes devolvia ainda mais poder. Altamente privilegiado, o clube não aceitava qualquer mulher, mas apenas aquelas que demonstravam possuir rendimentos de uma certa categoria. Na realidade, Josef Salvaterra conhecia os intentos da mulher e a sua vontade em pertencer ao tal “Clube da Feitoria” embora esta ideia não lhe agradasse. Ele queria-a junto de si. De facto, ele sentia-se por vezes sufocado com a sua constante presença, mas ficava igualmente perdido quando ela desviava a sua atenção para outros interesses. Jamais Salvaterra pretendia que ela integrasse o tal Clube, com receio de ela própria se desinteressar dele. Por essa razão, várias vezes Marbella expressou a Jasmine que via um pouco Salvaterra como o destruidor dos seus sonhos; esta era uma ideia e um sentimento que ela foi alimentando de forma perigosa e que lhe fez nascer um estranho desejo de vingança em relação ao marido. Marbella e Josef Salvaterra viviam assim um casamento de conveniência, embora o hipnotizador ainda amasse a mulher. Em ambos era possível encontrar a mesma antipatia para com Marcus Belling que lhes fazia novamente despertar o sentimento de orfandade que continuava a inquietá-los.

Para agravar ainda mais esta situação, Marbella atiçava a inveja no marido e Salvaterra sentia-se encurralado neste sistema. Ele amava a mulher, mas por vezes não a compreendia. Ele estava a envelhecer e as antigas disputas com Marcus Belling já o cansavam, razão pela qual rapidamente recolhia ao seu local de trabalho sempre que a mulher vinha ter com ele. Quando Anne Pauline toca à campainha do consultório de Belling já quase não existia entendimento possível entre Salvaterra e Marbella: os dois não se compreendiam e progressivamente começaram a ter diferentes propósitos na vida. A distância entre ambos era apenas um facto visível de algo mais profundo que ocorria dentro do espírito e da alma.

A vida e as experiências pessoais dos dois hipnotizadores moldaram-lhes assim duas formas distintas de praticar hipnose. De forma inevitável, estes acabaram por estabelecer diferentes níveis de confiança com os seus pacientes. Como era conhecido, um era considerado mais democrático, o outro mais autoritário, embora nem todos tivessem a mesma perspetiva acerca do conteúdo real desta “autoridade”. Gradualmente, intensificou-se a luta pela ribalta.

Quando Anne Pauline toca, neste dia, à campainha do consultório de Marcus Belling, ela desconhece todas estas histórias de vida. Também ela própria tem a sua, por vezes dividida entre o presente e o passado. Por um lado, ela não sabe que existe uma equipa leal e dedicada que trabalha com Belling, que Marbella e Salvaterra possuem uma acérrima disputa com o famoso hipnotizador há vinte anos, e que Sofia Estelar e Maria de Burgos desenvolveram um esquema operativo bastante bem elaborado no consultório da Avenida do Sol. Por isso, nem a própria Anne Pauline tem consciência do que está prestes a desencadear com o seu aparecimento.

O consultório de Marcus Belling funcionava num prédio antigo, entre os muitos que tinham sido construídos durante o século XVIII na principal avenida da cidade. Ao longo de dois quilómetros existiam aqui inúmeros cafés e restaurantes, esplanadas repletas de pessoas, e sobretudo, muitas fontes de água que eram verdadeiras preciosidades arquitetónicas. Para além de tudo isso, não muito longe do n.º 27, ficava localizada a estátua da Fénix que tinha sido mandada erigir no início do século XX: um enorme pássaro parecia levantar-se do chão, para depois levantar voo. Ao seu lado, numa espécie de pia, encontravam-se as suas cinzas, que significavam o seu renascimento. Há muito tempo que a jovem Anne Pauline andava à procura da sua identidade e precisava desesperadamente de saber o que tinha acontecido no seu passado. O homem que lhe aparecia todas as noites há muitos anos em sonhos, quase que lhe tinha exigido que ela regressasse ao seu passado. Por outro lado, ele tinha-lhe destruído a sua confiança interior, fazendo-a duvidar da pessoa que ela era realmente. Ela precisava de se reerguer, tal como o pássaro da Fénix.

Desta forma, ao caminhar em direção ao consultório de Belling, Anne Pauline parou em frente à estátua para admirar a sua arquitetura. A pintura que cobria o pássaro já se tinha desvanecido com o tempo, tendo permanecida intacta apenas a força da pedra, uma metáfora para mostrar que era sempre necessário confiar num futuro melhor. A jovem respirou fundo e encontrou ali alguma esperança para si mesma, tal como quando observava a “Ilha dos Pássaros” na sua praia.

A Avenida do Sol, larga e esplêndida, era a principal artéria da cidade. Sendo uma avenida entusiasmante, repleta de cafés e restaurantes, era frequente ver aí sentados Belling e Sofia Estelar a conversar. As mulheres que reconheciam o famoso hipnotizador aproveitavam esta sua aparição para pedir autógrafos e tirar fotografias, o que apenas incomodava ainda mais a sua secretária pessoal. Sofia Estelar era mais do que uma confidente próxima. No fundo, a sua relação próxima com Belling tornou-a quase como uma amante dissimulada que não podia expor os seus verdadeiros sentimentos, ainda que quisesse. A verdade é que Marcus Belling não imaginava que algo de intenso a pudesse estar a consumir, mesmo que trabalhasse com ela diariamente.

Talvez por tudo isto, Sofia Estelar exagerava nos pedidos que dirigia às mulheres que pretendiam ter uma sessão de hipnose com Belling. «Tudo isto tem caráter obrigatório», dizia ela obrigando-as depois a preencher papéis intermináveis quase para as fazer desistir dos seus propósitos. Existia nela algo de manipulador, difícil de controlar. Apesar de tudo, ela conseguia filtrar os casos prioritários, distinguindo os casos urgentes daqueles que não o eram, apercebendo-se sobretudo, dos meros curiosos que vinham apenas saciar o seu gosto pela fama. Mas a astúcia de Sofia Estelar não era verdadeiramente conhecida por Belling que se escondia por detrás da sua característica capa de ingenuidade, para justificar o seu desconhecimento relativamente à abordagem que existia no consultório, por parte da sua secretária.

Anne Pauline tocou ao meio-dia à campainha do n.º 27 da Avenida do Sol. Perante o silêncio, tocou uma segunda vez. O sol e o calor pareciam ter amolecido as pessoas que agora caminhavam de forma dolente pela avenida, quase como se pressentissem a revolução que estava prestes a ocorrer. Naquele momento, as cores vermelha e dourada que ainda resistiam da estátua da Fénix acentuaram-se como se o pássaro quisesse tomar vida e voar. Seguidamente, como acontecia duas vezes por dia, o mecanismo elétrico que existia dentro da estátua fez acionar o movimento das placas onde se encontravam as cinzas, de onde agora corria uma água límpida e fresca. Subitamente, a estátua tinha-se transformado numa fonte de água.

Entretanto, enquanto Anne Pauline esperava que Sofia Estelar lhe abrisse a porta, algo de muito importante para a sua vida estava a acontecer, naquele preciso momento, numa outra zona da cidade.

Georgine Gunderson era bibliotecária há muitos anos e, naquele dia de verão, tinha sido chamada pelo diretor de arquivos da biblioteca municipal. Não medindo mais de um metro e sessenta, de olhos verdes escuros e rosto oval, recebeu a informação que tinha sido destacada temporariamente para a antiga biblioteca nacional, já extinta. Seria assim a única funcionária permanente daquelas instalações, abandonadas há mais de sete anos. O antigo edifício da biblioteca, do século XIX, albergava agora encomendas e livros que, por motivos logísticos, não podiam ser guardados noutros locais da Câmara por falta de espaço. Era um espaço antigo que tinha funcionado como repositório dos mais importantes catálogos da cidade e que se encontrava fechado há vários anos.

Georgine Gunderson não compreendia a razão pela qual tinha sido colocada naquelas funções, extremamente solitárias e aparentemente inadequadas à sua experiência profissional. Por momentos, pensou que o seu segredo mais íntimo tinha sido revelado. Sim, ela tinha um segredo. Existia ainda outra hipótese; talvez as suas investigações fora do horário de expediente para descobrir a verdadeira história da Avenida do Sol, tivessem incomodado as suas chefias, sendo esta a forma encontrada, de se voltar a concentrar no seu trabalho. A verdade é que, neste dia, ela era oficialmente a única funcionária destacada pela Câmara para arquivar livros na extinta biblioteca.

– É apenas um espaço temporário. Precisamos de alguém que, por agora, nos possa ajudar a dar alguma arrumação ao que ainda lá se encontra naquela biblioteca. Hoje chegou uma encomenda importante. Preciso que a Georgine vá até lá e ajude a arrumar os livros que vieram hoje. Vai lá ficar durante os próximos nove meses. Depois disso, volto a colocá-la como funcionária permanente na nova biblioteca, prometeu-lhe o chefe.

Ela nada podia fazer. Relutantemente, Georgine Gunderson foi naquela manhã para a rua onde ficava localizado o edifício da biblioteca antiga. À sua espera, num pequeno camião, estavam várias caixas de livros que foram trazidas para dentro das instalações. Com cuidado, todas as caixas foram colocadas em cima de uma antiga mesa, hoje coberta de pó. Algo naquele espaço a assustava. Georgine não gostava de ser a única pessoa a trabalhar naquele lugar inóspito, atualmente fechado ao público.

Cuidadosamente, a bibliotecária abriu todas as caixas que lhe tinham chegado naquele dia. Todas elas tinham sido numeradas pela Câmara. Não sabia de onde vinham aqueles livros e essas explicações nunca lhe foram dadas. Foi assim, com bastante alívio, que após duas horas de trabalho, abriu a última caixa daquele carregamento: a BO18. Lentamente, com muito cuidado, começou a colocar os livros nas prateleiras. Georgine Gunderson não sabia, mas naquele dia, fora destacada para guardar um segredo. Segredo esse que ela teria de manter em segurança durante os próximos nove meses, de acordo com as orientações dadas pelo seu chefe. Entretanto esperava-lhe muito trabalho.

Os nove meses significariam muito, tanto para Anne Pauline, como para Georgine. Sem que as duas pudessem ainda adivinhar, os seus destinos acabariam por se cruzar. Isto porque, embora Georgine Gunderson não estivesse habituada a guardar segredos porque ninguém os confiava (não por falta de confiança, mas porque ela era uma pessoa invisível aos olhos dos outros), a verdade é que ela guardava agora uma verdade inconveniente acerca da nova paciente de Marcus Belling. Sem o saber ainda, fechou a caixa BO18 e, com um sentimento estranho, regressou a casa.

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