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Capítulo 3

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Estava louco, tinha de estar. Nenhuma pessoa no seu juízo perfeito proporia uma coisa dessas.

Então, observou-o e pensou que sabia muito bem o que estava a fazer. A sua expressão, em vez de a tranquilizar, aterrou-a e não era uma mulher que se assustasse facilmente. Aprendera a disfarçar e disfarçou nesse momento.

– Isso é inimaginável – replicou.

Ele encolheu os ombros, pegou no copo e serviu uma dose generosa.

– Perfeito. Não quero uma esposa que tenha ilusões românticas. Não vou casar-me por amor, vou casar-me para herdar o património da família. O meu irmão morreu sem filhos. Sou o filho que resta, mas só posso herdar se estiver casado.

– Para que queres esse património? Já tens uma fortuna.

– Para o manter na família. O dever chama-me, finalmente.

– Precisas de uma esposa para herdar?

– Sim. O património está… Está ligado a um fideicomisso muito antigo que só pode ser herdado por um homem casado.

– Isso é legal?

– Demoraria anos a desmontar esse fideicomisso e a adaptá-lo aos tempos modernos. Não tenho anos, tenho de agir já.

– Então, procura outra.

– Não quero outra. As outras são demasiado dependentes e tu és dura.

– Nem sequer me conheces – replicou ela. – Há vinte minutos, achavas que era inglesa.

Era dura porque tivera de ser. Criara uma carapaça para virar as costas à família quando lhe tinham rasgado o coração e quando perdera Johann e descobrira que o coração se rasgava outra vez. Fora um processo natural, não fora conscientemente, não percebera que tinha essa carapaça até há quatro anos, quando estava a viver e a trabalhar em Haia e um colega bêbado a acusara de ser uma cadela insensível. Então, voltara ao pequeno apartamento que partilhara com Johann, olhara-se ao espelho e percebera que o colega tinha uma certa razão. Não era uma cadela, sabia que não era, mas insensível… Efetivamente, olhara-se ao espelho e tivera de reconhecer que já não sentia nada, que estava vazia por dentro.

– Sei tudo o que tenho de saber, querida. Não preciso de saber mais nada. Não quero conversar contigo na cama e que me contes os teus sonhos. Será uma sociedade, não uma aventura. Preciso de alguém pragmático e que mantenha a frieza nos momentos complicados.

Achava que ela era essa pessoa? Não sabia se rir ou chorar. Transformara-se numa pessoa tão fria que alguém podia pensar que aceitaria uma proposta tão carente de sentimentos?

Fora uma pessoa calorosa, sentira o sol, tanto no coração como na pele.

No entanto, o que é que essa proposta dizia dele? Como é que alguém podia ser tão cético sobre o casamento?

– O casamento não é uma brincadeira – replicou ela.

Eva olhava para os maços de notas e para os olhos ardentes de Daniele. Esse dinheiro seria crucial para o acampamento. A Blue Train Agency dependia plenamente das doações e nunca eram suficientes para cobrir todos os projetos.

Esses olhos…

Desviou o olhar e fixou-o no mar, não conseguia acreditar que estava a pensar naquela proposta desatinada.

– Não estou a brincar. Casa-te comigo e ganharemos todos. A tua organização humanitária terá doações garantidas que poderá gastar como quiser, tu receberás um valor em dinheiro ilimitado para gastares contigo própria, a minha família saberá que o património familiar estará a salvo durante outra geração e eu receberei a minha herança. És uma pessoa pragmática, Eva, sabes que o que proponho é muito coerente.

Nem sempre fora uma pessoa pragmática. Fora uma sonhadora, tivera muitas esperanças, mas todas tinham acabado destruídas.

– Não sei. Dizes que não é uma brincadeira, mas também dizes que todos ganharemos. O casamento é um compromisso entre duas pessoas que se amam, não entre duas pessoas que nem sequer gostam uma da outra.

– Os antepassados da minha família têm séculos. Os casamentos que correram melhor foram os que tinham motivos práticos, para formar alianças, não por amor. Nunca quis juntar a minha vida com a de uma pessoa em concreto, mas estou disposto a comprometer-me contigo. Não será um casamento baseado no amor, mas posso prometer-te um casamento baseado no respeito.

– Como podes respeitar-me se estás a tentar comprar-me?

– Não vou comprar-te, querida. Considera esse dinheiro como um incentivo.

– Não serei uma propriedade tua.

Não voltaria a ser propriedade de ninguém. Emancipara-se da sua família assim que fizera dezoito anos, no dia em que deixara de pertencer aos pais, para não continuar submetida às suas regras impostas de uma maneira inflexível. Dobrou a mão esquerda e sentiu a dor fantasma do tendão dos dedos. Os dedos tinham sarado há muito tempo, mas a dor continuava como um espetro do passado, como uma lembrança do que deixara para trás.

– Se quisesse ser dono de uma mulher, não te escolheria.

O mordomo apareceu para levar a sopa antes de ela conseguir responder. Ficou surpreendida ao ver a tigela vazia, pois não se lembrava de ter comido. Esperou que servissem o lombo Wellington para fazer a pergunta seguinte.

– Se aceitar, o que vai impedir-me de ficar com o dinheiro e fugir com ele?

– Não receberás dinheiro para o teu uso próprio até estarmos casados. Segundo a lei italiana, só poderás divorciar-te depois de três anos, mas isso não te impediria de me deixar. Tenho de confiar que não me deixarás sem falar comigo primeiro.

Ele tinha de confiar nela, mas a questão era se ela podia confiar nele.

– Se não queres um casamento tradicional, que casamento queres para nós? – perguntou ela.

Também não conseguia imaginar um casamento tradicional, nem com Daniele nem com ninguém, mas, para sua surpresa, percebeu que conseguia imaginar um casamento por conveniência onde a organização humanitária, que tanto amava, recebia quantias enormes de dinheiro.

Daniele Pellegrini era incrivelmente bonito e o pobre Johann teria dado os dois braços magricelas para ter a sua sensualidade, mas isso era tudo superficial. O seu corpo poderia reagir a ele, mas o seu coração estava a salvo. Daniele não queria uma relação nem conversar na cama, o que unia um casal, forjava a intimidade e deixava uma pessoa exposta ao desengano.

Não voltaria a expor-se a uma situação vulnerável, não podia. Tinham-lhe esmigalhado tantas vezes o coração que a seguinte poderia ser a definitiva.

– Todos vão ver-nos como um casal – respondeu ele. – Viveremos juntos. Visitaremos os amigos e a família e receberemos como um casal.

– Seremos o acompanhante principal um do outro?

– É uma forma fantástica de o expressar. Além disso, algum dia, é possível que sejamos pais…

Eva engasgou-se com a comida, bateu no peito, tossiu ruidosamente e bebeu um gole de água diretamente da garrafa.

– Estás bem…? – perguntou Daniele.

– Não. Achava que tinhas dito alguma coisa sobre sermos pais.

– Disse-o. Se vamos casar-nos, dormiremos na mesma cama.

– E não achas que devias ter-mo dito?

– Não achei que houvesse necessidade de o dizer com todas as letras. Os casais dormem juntos, querida, e eu vou dormir contigo – indicou. – O facto de dormirmos juntos é outro estímulo para que nos casemos.

– Não quero ter relações sexuais contigo.

– Acho que essa é a primeira mentira que me disseste. Não podes negar que te atraio.

– Se me atraísses, não teria rejeitado a tua oferta de ir para a suíte.

– Se não te atraísse, não terias hesitado antes de a rejeitar. Achas que não sei quando uma mulher me deseja? Sei interpretar a linguagem corporal e mostras todos os sinais de ser uma mulher que reprime o desejo e entendo, não pode ser fácil reconhecer que desejas um homem que te incomoda tanto.

– Sempre foste tão egocêntrico?

– Tive de exercitar durante anos, mas, finalmente, consegui. Além disso, ainda não negaste que te atraio.

– Não me atrais.

– Duas mentiras em dois minutos? Isso não está bem para uma mulher que vai ser a minha esposa.

– Não aceitei…

– Ainda, mas vais aceitar. Ambos sabemos.

– Quero deixar uma coisa clara, se aceitar casar-me contigo, não terei relações sexuais contigo.

– Eu também vou deixar uma coisa clara, quando nos casarmos, dormiremos na mesma cama. Se temos relações sexuais nessa cama ou não, depende de ti.

– Não vais impor os teus direitos conjugais?

– Não tenho de os impor. Podes negá-lo à vontade, mas há atração entre nós e aumentará quando estivermos na mesma cama.

– Vais tentar obrigar-me?

– Nunca. Não posso prometer que não tente seduzir-te, és uma mulher muito sensual e teria de ser um santo para não tentar, mas respeito a palavra «não». Assim que a disseres, viro-me e durmo.

Esteve prestes a perguntar se tencionava ter uma amante. O razoável era que, se não ia ter relações sexuais com ele, as tivesse com outra mulher.

No entanto, isso era um assunto diferente e a intuição dizia-lhe que era melhor deixá-lo como estava. Passara seis anos sem ir para a cama com alguém e não sentira a falta. Sentira a falta dos abraços, mas não do sexo, algo que, no fundo, sempre a defraudara. Não entendia como as pessoas lhe davam tanta importância, mas davam, e não esperava que Daniele se contivesse.

– Se aceitar, quererei continuar a trabalhar.

– Não precisarás de trabalhar.

– Vais deixar de trabalhar? Não precisas de trabalhar. Podias reformar-te neste momento e não te faltaria nada durante o resto da tua vida.

– Queres trabalhar? – perguntou ele.

– Adoro o meu trabalho.

– Já não poderás trabalhar no acampamento.

Ela ficou atónita. Adorava trabalhar no acampamento. Poderia dizer-se que o seu trabalho era administrativo, mas era útil. Aprendera coisas que não teria aprendido em nenhum outro lugar e, à sua maneira, fora crucial para muitas pessoas que tinham perdido tudo.

– Não posso deixá-lo – sussurrou ela.

– Porquê? A organização perderá uma empregada, mas ganhará três milhões de dólares por ano e o salário que vais perder será compensado com a pensão que vou dar-te.

– Não se trata do dinheiro.

– De que se trata?

Eva respirou fundo. Como podia explicar-lhe que o trabalho no acampamento lhe dera um sentido? Encontrara esperança no meio de tantas privações e exatamente quando achara que não restava esperança. Além disso, mesmo que encontrasse as palavras, Daniele não se importaria. Para ele, o dinheiro era o mais importante.

Isso fez com que tomasse uma decisão.

– Cinco milhões por ano. Essa é a quantia que terás de pagar à minha organização se quiseres que me case contigo. Além disso, quero-o por escrito, num documento legal.

– Fará parte do nosso contrato pré-nupcial – replicou ele.

– O meu advogado vai aprová-lo.

– Claro.

– Preciso de avisar com um mês de antecedência…

– Não – interrompeu ele. – É demasiado tempo. Temos de organizar muitas coisas e não podem esperar. Quero que nos casemos em Itália o mais depressa possível. Comunicarás aos teus chefes que vais despedir-te imediatamente ou fico com a mala e procuro outra esposa.

Viu a expressão de indignação dela depois do aviso.

– Vou fazer com que alguém apto ocupe o teu lugar até conseguirem encontrar um substituto permanente – acrescentou ele.

– E se não encontrares alguém?

– Encontrarei. Contudo, amanhã, assim que entregar o dinheiro, ficaremos noivos. Não poderás mudar de ideias.

– Não o farei, desde que o meu advogado aceite que o contrato pré-nupcial é inquebrável.

– Então, combinado? Vais casar-te comigo? Vais deixar o trabalho e acompanhar-me a Itália amanhã?

– Tenho de passar por minha casa antes de ir para Itália.

– Qual é a desculpa para isso?

– Tu és italiano, mas vão considerar-me uma forasteira. Trabalhei no ministério de Assuntos Exteriores e sei do que estou a falar. Tenho de passar por minha casa em Haia para ir buscar os documentos que as autoridades do teu país me pedirão.

– Mandarei alguém buscá-los.

– Não vou deixar que um desconhecido rebusque entre as minhas coisas.

– Muito bem, levo-te aos Países Baixos, mas mais nada, não vou permitir mais atrasos. Isto significa que estamos de acordo? Digo aos meus advogados para redigirem o contrato pré-nupcial?

Eva pigarreou e tentou não fazer caso a todas as objeções que lhe ecoavam na cabeça. O que importava que estivesse a aceitar um casamento frio e sem sentimentos quando passara seis anos numa vida fria e sem sentimentos? Casar-se com Daniele significava que a Blue Train Agency beneficiaria generosamente do seu dinheiro, algo muito mais vantajoso do que tê-la como empregada. Como Daniele dissera, casar-se com ele significava que todos saíam a ganhar.

No entanto, uma voz repetia-lhe na cabeça que, para haver um vencedor, também tinha de haver um perdedor.

Como podia ser a perdedora? Não ia dar o coração a Daniele, só a sua presença física. Não fez caso dessa voz e observou-o.

– Sim, estamos de acordo.

– Vais casar-te comigo?

Eva apagou a imagem de Johann que aparecera na sua mente e assentiu.

– Diz! – ordenou Daniele.

– Sim, vou casar-me contigo.

– Então, proponho que bebamos alguma coisa para afogar as mágoas.

Daniele olhou para o relógio e suspirou. O dinheiro estava nas mãos dos chefes atónitos da Blue Train Agency, tinham aceitado a substituta provisória de Eva e os seus advogados esperavam ter o contrato pré-nupcial redigido antes de aterrarem na Europa. O seu motorista pusera a mochila de lona de Eva no porta-bagagens do carro e já se concluíra toda a papelada para que deixasse o seu emprego. Já deviam ter saído do acampamento, mas Eva desaparecera depois de balbuciar alguma coisa sobre despedir-se. Imaginara que seria uma questão de minutos, mas passara quase uma hora.

Aceitou outro café de uma empregada que ficava corada cada vez que olhava para ela e esboçava um sorriso forçado. Só queria desaparecer daquele lugar que fazia com que se odiasse por ter nascido com tantos privilégios. Embora nunca o reconhecesse a Eva, teria doado esses milhões mesmo que ela rejeitasse a proposta.

Eva apareceu no edifício precário onde se refugiara quando estava a acabar aquele líquido repugnante e decidiu que teria de acrescentar café decente à doação.

– Pronta?

Perguntou-o num tom que deixava muito claro que, se não estivesse preparada, a poria ao ombro e a levaria.

Ela assentiu. Não trocara mais de duas palavras com ele desde que chegara ao acampamento e também não olhara para ele nos olhos.

– Então, vamos.

O carro estava perto. O motorista viu-os a aproximar-se e abriu a porta do acompanhante.

– Eva!

Ambos olharam para trás e viram três adolescentes que se aproximavam a correr e a falar sem parar em espanhol.

O rosto de Eva iluminou-se.

Abraçou-os com força e, embora eles fingissem aborrecimento, deu-lhes um beijo na face e passou-lhes a mão pelo cabelo. Só se sentou no carro depois de os abraçar outra vez.

Daniele sentou-se atrás dela e deu uma palmadinha no vidro de separação para que o motorista se pusesse imediatamente a caminho.

Os rapazes correram ao lado do carro enquanto saíam do acampamento e abanavam as mãos e mandavam beijos, que Eva devolvia.

Então, quando chegaram à estrada e o acampamento ficou para trás, Daniele viu uma lágrima solitária que lhe caía pela face.

Poder e sedução

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