Читать книгу Arena Um: Traficantes De Escravos - Морган Райс, Morgan Rice - Страница 7

I
UM

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Hoje o clima está menos tolerante que nos outros dias. O vento açoita impiedosamente, derrubando a neve acumulada no pesado pinheiro diretamente em meu rosto, enquanto caminho montanha acima. Meus pés, enfiados em botas para alpinismo muito pequenas para mim, desaparecem nos quinze centímetros de neve. Eu escorrego e deslizo, lutando para manter meu equilíbrio. O vento vem em rajadas tão gélidas, que me tiram o fôlego. Sinto-me como se estivesse andando em um globo de neve real.

Bree me diz que é dezembro. Ela gosta de contar os dias que faltam para o Natal, riscando-os um por um em um calendário velho que encontrou. Ela o faz com tamanho entusiasmo que não me atrevo a contá-la que estamos bem longe de dezembro. Não vou contar que este calendário é de três anos atrás nem que não teremos um novo, já que não fabricam mais desde o dia em que o mundo acabou. Não vou acabar com sua fantasia. É para isso que servem as irmãs mais velhas.

De qualquer maneira, Bree se apega muito às suas crenças, e ela sempre acreditou que neve significa dezembro então, mesmo se eu dissesse, duvido que ela mude de ideia. É como se fosse uma criança de dez anos.

O que Bree se recusa a aceitar é que o inverno chega rápido aqui em cima. Estamos no alto das montanhas Catskills e, aqui, o tempo passa diferente, a passagem das estações é diferente. Aqui, a três horas ao norte de onde um dia fora a cidade de  Nova Iorque, as folhas caem no fim de agosto, espalhando-se pelas cadeias montanhosas que se estendem até onde a vista pode alcançar.

Nosso calendário esteve atualizado uma vez. Quando tínhamos acabado de chegar, três anos atrás, eu me lembro de ver a primeira neve cair e verificar o mês, incrédula. Eu não entendia porque na página estava escrito outubro. Supus que a neve havia caído mais cedo que o usual. Mas logo entendi que não era isso. Estas montanhas são altas o suficiente, frias o suficiente, para que o inverno tome o lugar do outono.

Se Bree virasse o calendário para trás, ela veria bem ali, o ano que já passou, em letras grandes e feias: 2117. Obviamente, três anos atrás. Penso que ela está absorta demais em seu entusiasmo para prestar atenção a isso. É o que eu espero. Mas, ultimamente, uma parte de mim tem começado a suspeitar que, na verdade, ela sabe, mas que prefere apenas se perder em sua fantasia. Eu não a culpo.

É claro, nós não temos um calendário utilizável há anos. Nem celular, computador, TV, rádio, internet, nenhuma tecnologia de qualquer tipo – sem mencionar eletricidade, ou água corrente. Mesmo assim, de alguma forma, nós temos conseguido sobreviver, apenas nós duas, por três anos, dessa maneira. Os verões sempre foram suportáveis, com poucos dias de fome. Pelo menos podemos pescar e os riachos da montanha parecem sempre carregar salmões. Há também frutinhas e ainda alguns pomares de maçãs e peras selvagens que ainda, depois desse tempo todo, dão frutos.  De vez em quando, nós até conseguimos pegar um coelho.

Mas os invernos são intoleráveis. Tudo está congelado ou morto e todo ano eu tenho certeza de que não aguentaremos. E este tem sido o pior inverno de todos. Eu continuo dizendo a mim mesma que as coisas irão melhorar; mas estamos há dias sem uma refeição decente e o inverno apenas começou. Nós duas estamos fracas pela fome e Bree, ainda por cima, está doente. Não é um bom presságio para o futuro.

Enquanto eu subo penosamente a montanha, refazendo os mesmos passos desafortunados de ontem, procurando por nossa próxima refeição, começo a sentir que nossa sorte se esgotou. Apenas o pensamento de que Bree está deitada, me esperando em casa, é que me faz seguir em frente. Paro de sentir pena de mim mesma e, ao invés disso, mantenho rosto dela em minha mente. Sei que não posso encontrar medicamentos, mas espero que seja apenas uma febre passageira e que uma boa comida e um pouco de calor sejam tudo que ela precisa.

Eu sei que o que ela realmente precisa é fogo. Mas eu não acendo mais a nossa lareira; não posso arriscar que a fumaça e o cheiro denunciem nossa localização a um comerciante de escravos. Porém, hoje eu irei surpreendê-la, por pouco tempo, vou correr esse risco. Bree adora fogueiras, e isso vai levantar seu ânimo. E, se pelo menos eu pudesse encontrar algum alimento para complementar  – mesmo algo pequeno como um coelho – isso completaria sua recuperação. Não apenas fisicamente. Eu notei que ela começou a perder as esperanças nesses últimos dias – posso ver em seus olhos – e eu preciso que ela seja forte. Recuso-me a ficar parada e vê-la partir, como aconteceu com mamãe.

Uma nova rajada de vento bate em meu rosto, de uma forma tão longa e cruel que eu preciso abaixar minha cabeça até que ela passe. O vento ruge em meus ouvidos e eu faria qualquer coisa por um bom casaco de inverno. Visto apenas um agasalho gasto, encontrado há muitos anos ao lado da estrada. Acho que pertencia a um menino, o que é bom, porque as mangas são longas o suficiente para cobrir minhas mãos e são quase o dobro do tamanho de luvas. Meço 1,70m , não sou exatamente baixa, então, quem utilizou isso deve ter sido alto. Às vezes me pergunto se ele se importaria de eu estar utilizando sua roupa. Mas então me dou conta que provavelmente ele está morto. Assim como todos os outros.

Minhas calças não são muito melhores: ainda uso os mesmos jeans, me dá vergonha quando percebo que continuo utilizando os mesmos desde que escapamos da cidade, anos atrás. Se há uma coisa que me arrependo é ter saído tão apressadamente. Suponho que eu tenha achado que encontraria algumas roupas por aqui, que talvez alguma loja ainda estivesse aberta em algum lugar ou quem sabe até o Exército da Salvação. Isso foi idiotice minha: afinal, todas as lojas de roupas foram saqueadas há muito tempo. Foi como se o mundo, da noite para o dia, tivesse ido da abundância à escassez. Eu consegui pegar algumas peças de roupa espalhadas nas gavetas da casa de papai. Essas, eu as dei para Bree. Estava feliz que pelo menos algumas de suas roupas, como suas vestimentas térmicas e meias, iriam mantê-la aquecida.

O vento finalmente para, então eu levanto minha cabeça e me apresso a subir antes que ele retorne, me forço a dobrar minha velocidade até alcançar o platô.

Eu chego ao topo, respiração ofegante, as pernas queimando, e olho ao redor, devagar. As árvores são mais escassas aqui em cima e, ao longe, há um pequeno lago montanhês. Está congelado, como todos os outros; e o sol brilha tão intensamente que meus olhos ficam semicerrados.

Olho imediatamente para a minha vara de pescar, a que eu deixei encaixada entre duas pedras no dia anterior. Ela se projeta sobre o lago, uma longa linha liga a ponta da vara até um pequeno buraco no gelo. Se a vara encurvar, significa que eu e Bree teremos janta hoje à noite. Se não, eu saberei que não funcionou – novamente. Eu me aproximo com pressa, passando entre algumas árvores, através da neve, e dou uma boa olhada.

Está reta. É claro.

Meu coração aperta. Penso em caminhar sobre o gelo e usar minha machadinha para abrir mais um buraco. Mas eu já sei que isso não fará diferença alguma. O problema não é a posição – o problema é o lago. O chão está congelado demais para que eu possa cavar e procurar minhocas e eu nem sei onde encontrá-las. Não sou caçadora por natureza nem sei fazer armadilhas. Se eu soubesse que eu acabaria aqui, eu teria dedicado minha infância inteira à Educação ao Ar Livre e a aprender técnicas de sobrevivência. Mas agora me sinto inútil em quase tudo. Não sei montar armadilhas e raramente minhas linhas de pesca pegam algo.

Sendo a filha de meu pai, filha de um fuzileiro da Marinha, a única coisa em que eu sou boa –  lutar – não serve para nada aqui. Se sou inútil no reino animal, pelo menos posso me defender daqueles seres de duas pernas. Desde cedo, querendo ou não, meu pai insistiu que eu fosse sua filha – a filha de fuzileiro da Marinha e eu fosse orgulhosa disso. Ele queria que eu fosse o filho que ele nunca teve. Inscreveu-me em aulas de boxe, de luta livre, artes marciais mistas… Tive infinitas lições de como usar uma faca, como atirar uma arma, como achar pontos fracos, como lutar sujo. E, mais que tudo, ele insistiu que eu fosse valente, que nunca mostrasse medo, nem chorasse.

Ironicamente, nunca tive a chance de usar nenhuma das coisas que ele me ensinou, e isso não podia ser mais inútil aqui; não há ninguém à vista. O que eu realmente preciso saber é como achar comida – não como chutar alguém. E, se  por ventura, encontrasse outra pessoa, eu não iria lhe dar um chute, eu pediria ajuda.

Eu penso com esforço e me lembro de que há outro lago por aqui, em algum lugar, um menor; eu o vi uma vez, em um verão quando eu me aventurei e subi ainda mais a montanha. Fica a uns 400 metros de subida íngreme, eu não tentei mais ir lá desde então.

Eu olho para cima e suspiro. O sol já está se pondo, um pôr-do-sol sombrio de inverno aparece em tonalidades avermelhadas; eu já me sinto fraca, cansada e congelada. Preciso de mais energia do que tenho só para descer a montanha. A última coisa que eu quero é subir ainda mais. Mas uma voz baixinha dentro de mim apela para que eu continue escalando. Quanto mais tempo eu passo sozinha esses dias, mais forte é a voz de papai em minha cabeça. Ela me deixa ressentida e tento bloqueá-la, mas, não sei por que, não consigo.

Pare de reclamar e continue em frente, Moore!

Papai sempre gostou de me chamar pelo meu sobrenome. Moore. Isso me irritava, mas ele nunca se importou.

Se eu voltar agora, Bree não terá nada para comer à noite. O lago lá em cima é a minha melhor chance, nossa única fonte de comida. Eu também quero que Bree tenha uma fogueira, e toda a lenha aqui embaixo está encharcada. Lá no alto, onde os ventos são mais fortes, eu posso encontrar lenha seca o suficiente para acendê-la. Dou mais uma olhada montanha acima e decido seguir em frente. Abaixo minha cabeça e começo a escalar, levando minha vara comigo.

Cada passo é doloroso, sinto milhões de agulhas pulsando em minhas coxas, o ar gelado perfura meus pulmões. O vento me golpeia e a neve me castiga, como se houvesse uma lixa em meu rosto. Um pássaro grasna bem lá no alto, como se zombasse de mim. Bem quando eu sinto que não consigo dar mais nenhum outro passo, eu alcanço o platô seguinte.

Este aqui, tão alto, é diferente de todos os outros: é densamente carregado com pinheiros, dificultando visualizar mais de 3 metros à frente. O céu se oculta sob sua enorme copa e a neve está coberta de agulhas verdes. Os troncos gigantescos conseguem impedir a passagem do vento também. Sinto como se tivesse entrado em um pequeno reino privado, oculto ao resto do mundo.

Eu paro e me viro, apreciando a vista: é incrível. Eu sempre achei que tínhamos uma excelente vista da casa meu pai, no meio da montanha, mas aqui, no topo, é espetacular. Picos de montanha aparecem em todas as direções e, além deles, à distância, posso ver o rio Hudson, cintilando. Vejo também as estradas sinuosas que cortam a montanha, incrivelmente intacta. Provavelmente devido ao pequeno número de pessoas que vem até aqui. Eu, na verdade, nunca vi carros nem nenhum outro veículo. Apesar da neve, as ruas estão livres; as estradas íngremes e angulares se aquecem ao sol, sendo perfeitamente drenadas e, para minha surpresa, muito da neve já derreteu.

Sou então atingida por uma pontada de preocupação. Preferia quando as estradas estavam cobertas de gelo e neve, quando eram intransitáveis aos veículos, pois as únicas pessoas que hoje em dia tem carros e combustíveis são os comerciantes de escravos – caçadores de recompensas impiedosos que trabalham para abastecer a Arena Um. Eles patrulham todos os lugares, à procura de sobreviventes, para sequestrá-los e levá-los à arena, como escravos. E lá, me falaram, são obrigados a lutar até a morte para entretenimento da plateia.

Bree e eu temos tido sorte. Não vimos nenhum comerciante de escravos desde que chegamos aqui em cima – mas eu acho que é somente porque moramos no alto, em uma área remota. Apenas uma vez eu ouvi o gemido estridente do motor de um comerciante de escravos, ao longe, do outro lado do rio. Sei que eles estão lá embaixo, em algum lugar, patrulhando. E eu não quero correr nenhum risco – me asseguro de mantermos discrição: raramente queimamos lenha, a menos que seja necessário, e fico de olho em Bree o tempo todo. Na maior parte das vezes, eu a levo para caçar comigo – a teria levado hoje comigo, se não estivesse tão doente.

Eu me viro para o platô e fixo meus olhos no pequeno lago. Completamente congelado, brilhando sob a luz da tarde, parece uma joia perdida, escondida atrás de um bosque de árvores. Aproximo-me, dando alguns passos vacilantes no gelo para me certificar de que este não se quebrará. Quando percebo que é bem sólido, ando um pouco mais. Escolho um ponto, tiro a machadinha do meu cinto e atinjo o gelo, repetidas vezes. Uma rachadura aparece. Retiro minha faca, me ajoelho e golpeio com força bem no meio da rachadura. Enfio a ponta da faca ali e faço um pequeno buraco, de tamanho suficiente para retirar um peixe.

Corro de volta para a borda, escorregando e deslizando e então fixo a vara de pescar entre dois galhos, desenrolo a linha e corro de volta para mergulhá-la no buraco. Eu a tiro da água algumas vezes, com a esperança de que o brilho do metal do anzol atraia alguma criatura viva debaixo do gelo. Mas não consigo deixar de sentir que isso não passa de um esforço inútil, não consigo deixar de suspeitar que tudo que um dia já viveu nessas montanhas morreu há muito tempo.

É ainda mais frio aqui em cima e eu não consigo ficar parada, olhando a linha de pesca. Eu preciso continuar me mexendo. Viro-me e me afasto do lago, meu lado supersticioso me falando que talvez eu pegue um peixe se eu não ficar aqui, em pé, olhando. Ando em pequenos círculos em volta das árvores, esfregando minhas mãos para mantê-las aquecidas. Quase não faz efeito.

Então me lembro da madeira seca. Olho para o chão à procura de lenha, mas é uma tarefa inútil. O chão está coberto de neve. Olho para as árvores e vejo que os troncos e galhos também estão cobertos de neve. Mas, ali, ao fundo, detecto algumas árvores atingidas pelos ventos, sem neve. Dirijo-me em direção a elas e inspeciono a casca, deslizando meu dedo. Fico aliviada ao ver que alguns galhos estão secos. Tiro minha machadinha e corto um ramo dos grandes. Tudo que preciso é uma braçada de lenha, e esse galho é perfeito.

Eu o seguro quando ele cai, sem deixar que toque a neve, e então o apoio contra o tronco e o corto novamente na metade. Eu repito isso de novo e de novo até ter um pequeno estoque de lenha, o bastante para carregar em meus braços. Eu deixo essa pilha encostada em um galho, a salvo e sem ser molhada pela neve que está abaixo.

Eu olho em volta, inspecionando outros troncos e, quando olho mais de perto, algo atrai minha atenção. Aproximo-me de uma das árvores, observando-a atentamente e percebo que sua casca é diferente das outras. Eu olho para cima e percebo que não se trata de um pinheiro e sim de um bordo. Estou surpresa por ver um, aqui no alto, e ainda mais surpresa por reconhecê-lo. Na verdade, um bordo é provavelmente a única coisa na natureza que eu reconheceria. Sem eu querer, uma memória vem à tona.

Uma vez, quando eu era mais nova, meu pai colocou na cabeça que me levaria a uma excursão na natureza. Deus sabe o porquê, mas ele me levou para extrair a seiva dos bordos.  Dirigimos por horas em direção a algum lugar desolado no interior, eu, carregando um balde de metal e meu pai, um bocal, e então passamos mais algumas horas andando pela floresta com um guia, em busca dos bordos perfeitos. Eu me lembro do seu olhar de decepção quando extraímos seiva da primeira árvore e um líquido claro escorreu para dentro do nosso balde. Ele estava esperando que saísse xarope.

Nosso guia riu, dizendo a meu pai que árvores de bordo não produziam xarope – elas produziam seiva.  A seiva precisava ser fervida para virar xarope. Em um processo que demorava horas, ele falou. E era necessário cerca de 80 galões de seiva para fazer um quarto de galão de xarope.

Papai olhou para o balde que transbordava seiva e ficou vermelho, como se alguém lhe tivesse vendido gato por lebre. Ele era o homem mais orgulhoso que eu já conheci e, se havia algo que ele odiava mais do que se sentir bobo, era alguém zombando dele. Quando o guia riu, papai arremessou o balde nele, errando por pouco e então pegou minha mão e fomos embora.

Depois dessa, ele nunca mais me levou para passear na natureza de novo.

Mas eu não me importei – na verdade, eu tinha gostado do passeio, mesmo com meu pai enfurecido na viagem inteira de volta. Eu havia consegui pegar um pequeno copo de seiva antes de ele me levar embora e lembro-me de ter bebido um pouco no carro, na volta para casa, quando ele não estava olhando. Eu adorei. Tinha gosto de água com açúcar.

Estando aqui, parada, na frente desta árvore, eu a reconheço como se fosse uma irmã. Essa aqui é tão alta, fina e magricela que me deixaria surpresa se tivesse seiva. Mas eu não tenho nada a perder. Tiro minha faca e atinjo a árvore, de novo e de novo, no mesmo local. Então, enfio a faca no buraco, empurrando-a cada vez mais fundo, torcendo-a e girando-a. Eu realmente não espero que nada aconteça.

Fico surpresa quando uma gota de seiva sai. E ainda mais surpresa quando, momentos depois, a gota vira um pequeno fluxo. Estendo meu dedo, encosto no líquido e levo a minha boca. Sinto o açúcar e reconheço o gosto imediatamente. Exatamente como eu me lembrava. Nem consigo acreditar.

A seiva está saindo mais rápido agora e estou perdendo grande parte dela, que escorre pelo tronco. Procuro em volta desesperadamente por algo para armazená-la, algum tipo de balde – mas é claro que não há nenhum. E então me lembro de minha garrafa térmica. Tirei minha garrafa da minha cintura e a esvaziei, derramando toda a água. Posso conseguir água em qualquer lugar, especialmente com essa neve toda – mas esta seiva é preciosa. Seguro a garrafa vazia rente à árvore, desejando que eu pudesse ter um bocal de verdade. Deixo-a o mais perto possível do tronco e consigo colher uma boa parte da seiva. Ela escorre mais devagar do que eu gostaria, mas em poucos minutos, consigo encher metade da garrafa.

O fluxo da seiva parou. Espero por alguns segundos, me perguntando se ele recomeçaria, mas isso não acontece.

Olho a minha volta e reparo em outro bordo, a uns três metros de distância. Eu vou correndo até ele, levanto ansiosamente minha faca e o atinjo com força, dessa vez, me imagino enchendo a garrafa térmica com seiva, imagino a cara de surpresa de Bree quando ela provar. Pode não ser nutritivo, mas isso com certeza a deixará feliz.

Mas, desta vez, quando minha faca fere o tronco, há um ruído agudo pelo qual eu não esperava, seguido por um estalo da madeira. Eu olho para cima, vejo a árvore se envergando e percebo, tarde demais, que esta árvore, congelada e envolvida em neve, já está morta. O golpe de minha faca era tudo que ela precisava para inclinar em direção à borda do lago.

Um segundo depois, a árvore inteira, de pelo menos seis metros, cai, espatifando-se no chão. Isto provocou uma enorme nuvem de neve e agulhas de pinheiros. Abaixei-me, aflita que talvez tivesse alertado alguém sobre minha presença. Estou furiosa comigo mesma. Foi um descuido. Uma besteira. Eu deveria ter examinado a árvore antes.

Contudo, depois de alguns minutos, meu pulso volta ao normal, quando me dou conta de que não há ninguém aqui em cima. Volto a ser sensata, lembro-me que árvores caem sozinhas na floresta o tempo todo e essa queda não necessariamente denunciaria minha presença humana. E, quando passo o olhar sobre onde estava a árvore, algo atrai minha atenção. E me encontro observando, incrédula.

Ali, ao longe, escondendo-se por trás de um bosque de árvores, ao lado da montanha, há uma pequena casa de pedra. É uma estrutura pequena, um perfeito quadrado, com 4,5m de largura e profundidade e 3,5m de altura, com paredes feitas de antigos blocos de pedras. Uma pequena chaminé se levanta do telhado e há pequenas janelas nas paredes. A porta principal, de madeira e em forma de arco, está entreaberta.

Esta pequena casa está muito bem camuflada, se mistura perfeitamente com os arredores, tanto que eu, mesmo olhando para ela, mal consigo distingui-la. Seu telhado e paredes estão cobertos de neve e as pedras expostas se integram precisamente com a paisagem. A casa parece antiga, como se tivesse sido construída centenas de anos atrás. Não entendo o que ela está fazendo aqui, nem quem a teria construído ou por qual motivo. Talvez tenha sido feita para algum vigia de um parque estadual. Talvez tenha sido lar de algum eremita. Ou de um sobrevivente louco.

Parece que não tem sido habitada há anos. Analiso cuidadosamente o chão da floresta, à procura de pegadas ou rastros de animais, saindo ou entrando pela porta. Mas não há nada. Penso em quando a neve começou a cair, vários dias atrás e faço as contas em minha mente. Ninguém saiu ou entrou nessa casa há pelo menos três dias.

Meu coração acelera com a ideia do que pode haver dentro. Comida, roupas, medicamentos, armas, materiais – qualquer coisa seria um presente divino.

Movimento-me com cautela através da clareira, olhando por cima de meu ombro para ter certeza de que não há ninguém me observando. Movo-me rapidamente, deixando grandes pegadas visíveis na neve. Quando alcanço a porta da frente, olho para trás uma vez mais e fico parada por vários segundos, apenas ouvindo. Não há nenhum som a não ser o do vento e o de um rio próximo, que corre ao lado da casa. Alcanço minha machadinha e, com sua parte de trás, bato com força na porta. Um barulho alto ressoa, para dar a qualquer animal que possa estar escondido na casa, um aviso final.

Não há resposta.

Abro rapidamente a porta, empurrando a neve para trás e então entro na casa.

O interior é escuro, iluminado apenas pela última luz do dia, entrando através das pequenas janelas, preciso de um momento para que meus olhos se ajustem à penumbra. Eu aguardo, de pé, com as costas contra a porta, alerta caso algum animal esteja utilizando esse espaço como abrigo. Mas, após vários segundos, minha visão se ajusta à fraca luz e está claro que estou sozinha.

A primeira coisa que noto nessa pequena casa é o seu calor. Talvez por ser tão diminuta, com um teto baixo e construída com as pedras da montanha ou talvez por estar protegida do vento. Mesmo com as janelas completamente abertas à natureza e com a porta entreaberta, deve estar uns quinze graus mais quente aqui – muito mais quente do que a casa de meu pai, mesmo com a lareira acesa. Sua casa fora construída com poucos gastos, as paredes são finas e o revestimento é vinílico e fica no canto de uma colina onde parece estar na rota de todas as ventanias.

Mas este lugar é diferente. As paredes de pedras são grossas e bem construídas. Sinto-me cômoda e segura aqui. Só consigo pensar em como este lugar ficaria ainda mais quente se eu fechasse a porta, pregasse tábuas nas janelas e acendesse a lareira – que parece estar em boas condições.

O interior é formado por uma grande sala, aperto meus olhos na escuridão para analisar o chão, procurando por qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, que eu possa resgatar. Incrivelmente, parece que, desde a guerra, ninguém mais entrou nesse lugar. Todas as outras casas em que  entrei tinham as janelas quebradas, escombros espalhados por todos os cantos e certamente haviam saqueado qualquer objeto útil, até as fiações. Mas esta não. Está impecável, limpa e arrumada, como se seu proprietário tivesse acordado um dia e simplesmente ido embora. Pergunto-me se foi antes de a guerra começar. Ao julgar pelas teias de aranha no teto, e sua ótima localização, tão bem escondida entre as árvores, eu acredito que sim. Ninguém entra aqui há décadas.

Vejo o contorno de um objeto na parede do fundo e me dirijo a ele, mãos à frente, tateando no escuro. Quando encosto, percebo que é uma cômoda. Passo meus dedos pela sua superfície lisa de madeira, posso sentir o pó que a cobre. Deslizo meus dedos sobre pequenas maçanetas – as alças das gavetas. Eu as puxo delicadamente, abrindo uma de cada vez. Está muito escuro para enxergar, então toco cada gaveta com minhas mãos, explorando a superfície. Não há nada na primeira gaveta. Nem na segunda. Por fim, abro todas rapidamente, minhas esperanças desaparecendo – quando, de repente, na quinta gaveta, eu paro. Ali, no fundo, sinto alguma coisa. Devagar, eu a tiro aos poucos.

Seguro o objeto contra a luz e, a princípio, não sei dizer o que é; mas logo sinto a folha de alumínio delatora e percebo: é uma barra de chocolate. Há algumas mordidas nele, mas ainda encontra-se em sua embalagem original e bem preservado. Eu desembrulho um pouco e o aproximo de minhas narinas para sentir seu cheiro. Não consigo acreditar: é chocolate de verdade. Não comemos chocolate desde a guerra.

O cheiro me causa uma pontada de fome, preciso de toda minha força de vontade para não abri-lo e devorá-lo. Eu me obrigo a permanecer forte, cuidadosamente o reembrulho e o guardo no meu bolso. Vou esperar até estar com Bree para desfrutá-lo. Eu sorrio ao imaginar a expressão dela quando comer sua primeira mordida. Será impagável.

Reviso rapidamente as gavetas restantes com a esperança de encontrar qualquer tipo de tesouro. Mas todas as demais se encontram vazias. Regresso à sala e a percorro em sua largura e extensão ao longo das paredes, por todos os cantos, procurando qualquer coisa. Mas o lugar está deserto.

De repente, piso em algo macio. Ajoelho-me para pegá-lo e o seguro o contra a luz. Estou impressionada: um ursinho de pelúcia. Está gasto e lhe falta um olho, mas, mesmo assim, Bree adora ursinhos de pelúcia e sente falta do que ela deixou para trás. Ficará eufórica quando vir este aqui. Parece que é seu dia de sorte.

Eu o coloco em meu cinto e, quando me levanto, minha mão esbarra em algo fofo no chão. Eu o agarro e o levanto e fico encantada ao me dar conta que é um cachecol. É preto e está coberto de poeira, por isso que não o vi no escuro, e, ao colocá-lo em meu pescoço e sobre meu peito, já consigo sentir seu calor. Eu o seguro para fora da janela e o chacoalho com força, removendo todo o pó; olho para ele sob a luz, é longo e grosso – não tem nenhum buraco. É como ouro puro. Eu imediatamente o coloco ao redor de meu pescoço e debaixo de minha blusa e já me sinto mais aquecida. Acabo até espirrando.

O sol está se pondo e como parece que eu já encontrei tudo o que podia, começo a sair. Ao me dirigir para a porta, de repente, bato meu pé em algo duro, de metal. Eu paro e me ajoelho, analisando se é uma arma. Mas não é. É uma alça de ferro, redonda, grudada ao chão de madeira. Parece um batente. Ou uma maçaneta.

Eu o puxo para a esquerda e para a direita. Nada acontece. Experimento girá-lo. Nada. Então fico ao lado e tento puxá-lo para cima, com força.

Um alçapão se abre, levantando uma nuvem de poeira.

Olho para baixo e descubro um forro, com um pouco mais de um metro de altura e um chão de terra. Meu coração acelera de alegria diante das possibilidades. Se morássemos aqui, e se acontecesse algum problema, eu poderia esconder Bree aqui embaixo. Essa pequena casa fica cada vez mais valiosa aos meus olhos.

E não é só isso. Ao olhar para baixo, percebo algo brilhante. Empurro a porta de madeira por completo e rapidamente desço a escada. Está escuro aqui embaixo e eu mantenho minhas mãos à frente, tateando o caminho. Assim que dou um passo à frente, sinto algo. Vidro. Há estantes na parede, e enfileirados nelas, há frascos de vidros. Frascos de conservas.

Eu pego um deles e o seguro na luz. Seu conteúdo é vermelho e mole. Parece geleia. Eu rapidamente retiro a tampa, levo o frasco ao meu nariz e sinto seu cheiro. O cheiro acre de framboesas me atinge como uma onda.  Meto o dedo, tiro um pouco do conteúdo e levo a minha boca. Não consigo acreditar: geleia de framboesas. Seu sabor é tão fresco que parece que foi feita ontem.

Aperto a tampa rapidamente, coloco o frasco no meu bolso e volto às estantes. Estendo minhas mãos e sinto mais dezenas de frascos na escuridão. Pego o mais próximo e retorno à luz, segurando-o. Parecem picles.

Estou deslumbrada. Esse lugar inteiro é uma mina de ouro.

Gostaria de levar tudo, mas minhas mãos estão congelando, não tenho nada para carregá-los e está ficando escuro lá fora. Então devolvo o vidro de picles aonde eu o encontrei, subo a escada e, ao regressar para o piso principal, fecho o alçapão atrás de mim. Gostaria de poder trancá-lo. Sinto-me insegura de deixar tudo aqui embaixo, desprotegido. Mas então me lembro de que esse lugar não é tocado há anos – e que eu provavelmente jamais o notaria se aquela árvore não tivesse caído.

Quando saio da casa, fecho a porta por completo, sentindo que devo protegê-la, sentindo como se essa casa fosse nosso lar.

De bolsos cheios, eu me apresso para chegar ao lago – quando, de repente, me amedronto ao perceber movimentos e ouvir barulhos. A princípio, tenho medo que alguém tenha me seguido; e, então, ao me virar lentamente, vejo algo a mais. Um cervo está parado, a três metros de distância, olhando para mim. É o primeiro que eu vejo em anos. É grande, seus os olhos pretos fixos em mim então, de repente, ele se vira e sai correndo.

Estou sem palavras. Passei meses procurando por um cervo, na esperança de chegar perto o suficiente de um e lançar minha faca nele. Mas eu nunca consegui encontrar, em lugar nenhum. Talvez eu não estivesse caçando no local certo. Vai ver eles sempre viveram aqui em cima.

Eu decidi voltar aqui, assim que amanhecer, e esperar o dia todo, se necessário. Se ele já esteve aqui uma vez, talvez retorne. Na próxima vez que eu achar um, vou matá-lo. Um cervo nos alimentaria por semanas.

Estou cheia de novas esperanças enquanto me dirijo ao lago. Assim que me aproximo, olho para minha vara de pescar e meu coração dispara quando vejo que ela está curvada quase na metade. Tremendo de emoção, corro através do gelo, escorregando, deslizando, e pego a linha, que sacode violentamente, e rezo para que ela aguente.

Estendo minha mão e a seguro firmemente. Eu consigo sentir a força de um peixe grande se distanciando e, silenciosamente, afrouxo a linha para que ela não se rompa. Dou um puxão final e o peixe sai voando pelo buraco. É um salmão enorme, do tamanho do meu braço. Ele aterrissa no gelo e dá pulos em todas as direções, deslizando. Corro e me agacho para alcançá-lo, mas ele resvala entre minhas mãos e volta a cair no gelo. Minhas mãos estão muito escorregadias para segurá-lo, então eu desenrolo minhas mangas e dessa vez o agarro com firmeza. Ele se debate e retorce em minhas mãos por uns trinta segundos até, finalmente, ficar parado, morto.

Estou maravilhada. É a minha primeira pesca em meses.

Sinto-me eufórica enquanto atravesso o gelo, em seguida, deixo o peixe na borda do lado, colocando neve por cima dele com medo de que de algum jeito ele ressuscite e volte para o lago. Tiro a vara de pescar e a linha e as seguro com uma mão e o peixe, com a outra. Posso sentir a compota de geleia em um bolso, a garrafa térmica com seiva no outro, junto com a barra de chocolate e o urso de pelúcia na minha cintura. Bree terá muita fartura hoje à noite.

Só falta uma coisa para levar agora. Vou até minha pilha de lenha seca, equilibro a vara em meu braço e, com minha mão livre, eu pego o máximo possível de lenha que consigo carregar. Eu derrubo algumas e não posso pegar tantas como eu gostaria, mas não reclamo. Posso voltar aqui no resto da manhã.

Com mãos, braços e bolsos cheios, eu desço deslizando pela íngreme montanha sob a última luz do dia, tomando cuidado para não deixar cair nenhum tesouro meu. Ao mesmo tempo, não paro de pensar sobre a casa. É perfeita e meu coração bate mais rápido diante de tais possibilidades. É exatamente o que precisamos. A casa de nosso pai é muito visível, construída em uma estrada principal. Tenho me preocupado há meses porque, assim, ficamos muito vulneráveis. Tudo que precisamos é que um comerciante de escravos inesperado passe por ali e então estaríamos em apuros. Estou querendo nos mudar faz muito tempo, mas não sabia para onde. Não há nenhuma outra casa aqui em cima.

Esta pequena casa, no alto, distante de qualquer estrada – e, literalmente construída na montanha – é tão bem camuflada que é quase como se tivesse sido construída apenas para nós. Ninguém conseguiria nos encontrar aqui. E, mesmo que nos encontrassem, não conseguiriam se aproximar com um veículo. Eles teriam que escalar a pé e, sob este ponto de vista, eu os detectaria a quilômetros de distância,

A casa também conta com uma fonte de água doce, um córrego que passa bem na frente de sua porta; eu não teria que deixar Bree sozinha toda vez que eu fosse sair para tomar banho ou lavar nossas roupas. E eu não precisaria carregar baldes de água, um de cada vez, do lago para nossa casa toda vez que preparasse uma refeição. Sem mencionar que, com aquela enorme folhagem das árvores, nós estaríamos escondidas o suficiente para poder acender a lareira toda noite. Estaríamos mais seguras, mais quentes, em um lugar cheio de peixes e caça – e equipadas com um sótão cheio de comida. Já me decidi – vamos nos mudar para lá amanhã mesmo.

É como se tivessem tirado um peso de meus ombros. Sinto-me como se tivesse renascido. Pela primeira vez, desde que me lembro, não sinto a fome me dilacerando, o frio perfurando meus dedos. Até mesmo o vento, enquanto desço, parece estar em minhas costas, me ajudando a descer e eu sei que as coisas finalmente mudaram. Pela primeira vez, desde que me lembro, sei que conseguiremos seguir em frente.

Agora, podemos sobreviver

Arena Um: Traficantes De Escravos

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