Читать книгу Spaghetti Paraiso - Nicky Persico - Страница 4
ОглавлениеNÃO-TEMPO
Escuro. Escuro como breu. Fim da tarde, quase noite. O tempo como parado.
Fecho a porta do escritório. O último a sair, como acontece frequentemente. Nada de elevador, também desta vez. Enfio decidido uma estreita e empoeirada caixa da escada de cimento. Daquelas que conduzem, por habito, aos parques de estacionamento subterrâneos, com as faixas encarnadas e brancas nos cantos, as pontas apagadas, e o cheiro típico de humidade e de mofo.
Depois do último bloco de degraus, passo uma porta de ferro aberta, com um arganéu antipânico (porta de segurança que abre por dentro). A área de estacionamento está semi-vazia, lúcida. Um néon, que mal funciona, ilumina a custo alguns escorços, criando amplas penumbras entre pilares e as tiras amarelas no pavimento.
As rampas estão rotas e marcadas por manobras desajeitadas. Dois os carros parqueados. Dirigindo-me lá para o meu, logo atrás duma esquina vejo uma figura parada, há alguns metros. Fico congelado.
Uma mulher alta. Casaco comprido, escuro, e um chapéu com a aba larga. Cabelos compridos e claros.
Reconheço-a, embora está quase de costas. Tínhamo-nos avistado um pouco antes, no escritório. Depois tinha ido embora, alguns minutos antes de mim.
Está parada. Com os braços esticados empunha com duas mãos uma pistola cromada apontando-a direitinho, com segurança, diante de si.
Observo-a, e ao mesmo tempo observo tudo aquilo que tenho à minha volta, como se apenas o meu tempo estivesse a passar, enquanto todo o resto é um fotograma firme. Dou um outro passo, silencioso. Vejo melhor, agora. A arma que a mulher empunha com ambas as mãos está apontada sobre alguém, ainda menos visível, diante dela. Com dificuldade noto as suas feições: uma figura feminina com um casaco comprido escuro e chapéu. Cabelos compridos e claros.
São parecidos!
Também ela empunha uma pistola, apontada contra a sua gémea. Mas a empunha com uma única mão, e tem o corpo no sentido transversal, em relação ao seu alvo, como num duelo dos outros tempos.
A cabeça virada, alinhada ao ombro direito, e o braço levantado. Posso intuir que observa na mira, como um atirador de precisão que mira um alvo do polígono.
Três pontos alinhados: olho, mira, alvo.
Duas mulheres, armadas, em posição de impasse.
Certamente – é óbvio – uma defende-se da outra. Uma assassina, uma vítima, e depois eu: elemento inesperado, variável imprevista, complicação, ou sorte inesperada. Tudo depende daquilo que vai acontecer daqui em diante.
Sozinho, e o que poderei fazer.
De que maneira, e se, vou mover-me daqui.
Posso permanecer petrificado pelo medo, ou imóvel pela escolha. Posso gritar, tenho o instinto, ou então atirar-me ao chão, ou fugir tentando de abrigar-me, ou dar um passo para com elas, ou recuar. Posso fazer algo, ou não fazer nada, e pode mudar tudo: vida, também, ou morte.
Uma coisa, pois, é segura. Uma daquelas duas mulheres não está mais a defender apenas a sua vida: está a defender também a minha.
Se a assassina continuará a levar a melhor sobre o seu alvo, depois vai-me matar: sou uma testemunha.
Posso esperar, e rezar que aconteça o contrário. Ou posso agir.
Mas como?
Ninguém imagina de poder ver-se para decidir uma coisa tão importante em poucos minutos. E todavia pode suceder.
Nem eu teria imaginado por acaso de poder encontrar-me numa situação do género.
Não teria tão-pouco imaginado de poder ser juiz, ou árbitro, ou factor determinante, da vida de outras pessoas. As mesmas pessoas que, paradoxalmente, eram juiz e arbitro da minha.
E ter que decidir numa situação de não-tempo o que fazer. Ou não fazer. Sabendo que podia fazer a diferença entre viver e morrer.
O tempo não é sempre o mesmo.
Existem anos que duram um instante, e instantes que não parecem simplesmente eternos: o são realmente. É isto, o não tempo.
Ao meu lado, numa saliência da parede, uma forma compacta de metal, talvez uma tenaz do torno do banco, esquecida sei lá por quem. Apanhei-a mecanicamente, sem pensar.
Pesa pelo menos um par de quilos. E está gélido.
O instinto é o espaço dum instante que não existe. Não-tempo.
Para muitos aconteceu, por exemplo depois dum incidente, de não ter alguma recordação consciente de como aconteceu. Para depois, pelo contrário, descobrir que tinha conseguido virar, travar, e esticar simultaneamente um braço protegendo alguém. Muitas vezes acções eficazes, correctas. Talvez as melhores decisões que se podiam tomar naquela circunstancia.
No entanto, para rever os acontecimentos, não houvera interrupções, ou pausas, na sequência dos factos: algo inesperado e repentino tinha acontecido, e tinham agido por conseguinte.
Mas em que momentos decidiram como agir? Quando, puderam reflectir sobre as acções que depois puseram em pratica? Quando efectuaram o processo de questionar-se qual seria a melhor coisa para fazer, ou para não fazer, entre as varias possibilidades, talvez seleccionando ou descartando alguma por via dos efeitos colaterais consequentes?
A resposta deveria ser: nunca, porque não tiveram, materialmente, o tempo.
No entanto há uma incongruência, porque – de facto – escolheram, e depois executado, gestos calculados e racionais. Nem casuais nem confusos.
E como explicam-no, depois?
«Agi por instinto», dirão.
Mas aquilo que eles chamam instinto ocupou a razão por uma fracção de tempo que nunca existiu.
Não-tempo.
Que pelo contrario existiu, mesmo não sendo mensurável segundo as nossas convicções. Talvez pode-se definir tempo largo. Ou precisamente tempo eterno: não sendo mensurável o seu valor base, saltam todos os parâmetros que o ser humano fixou para medir o tempo.
Tinha ouvido falar, num certo sentido, também a propósito de Maradona.
Maradona era um campeão porque era mais veloz, mais rápido a decidir. Apenas com algum milionésimo segundo, talvez, mas suficiente para ser imprevisível: quando os adversários percebiam, era bastante tarde. Pensamento e acção, transmissão neuronal, cálculo dinâmico: aquele que o resto do mundo chama talento. Alguém, pelo contrario, usava o termo,
«Suave galanteio».
Todavia, a magia de Maradona realizava-se, aos olhos dos outros, quando a bola entrava na baliza. Realmente, a magia era enfim efectuada quando a bola de couro perdia o contacto físico com o seu pé. Naquele momento tudo já tinha acontecido, mas não se tinha ainda materializado o resultado.
Efectivamente, a partir daquele momento em diante ninguém poderia mais parar os acontecimentos.
Apenas assistir, e, segundo os adeptos seguidores, esperar.
Mas uma pessoa, uma única no universo, sabia, sentia, que a bola teria acabado propriamente ali onde ele tinha decidido que deveria terminar, no momento que tinha imaginado, avaliando em projecção posições, distancias, velocidades e movimentos de adversários, colegas da equipa, guarda-redes, posição espacial da baliza, e todas as outras variáveis existentes. Em combinação dinâmica entre eles.
Maradona sentia-o, contudo nem ele acreditava profundamente. De facto regozijava-se apenas quando a bola entrava na baliza. E se lhe questionássemos «quando» tinha feito todos aqueles complexos raciocínios que o tinham levado a uma sequência impressionante de escolhas, certamente responderia de tê-lo feito por instinto.
Como quer que seja, quando a bola deixa o peito das chuteiras é desferido o momento onde não se pode mais recuar: a glória, ou a mágoa eterna, para Maradona.
Aquela fracção de tempo, próprio o que, seja na verdade eterna ou menos, certamente para muitos o parece. Aquele tempo onde tudo é executado, e depois do qual aos acontecimentos sucessivos pode-se apenas assistir, não é mensurável com nenhum relógio do mundo.
Um gesto repentino, veloz e decisivo. Estico um pouco uma mão, fecho os dedos empunhando firmemente o metal e começo a carregá-lo num andamento passivo com um amplo movimento do braço, coadjuvado pela rápida torcedura da coluna.
Como no ténis, quando serve-se a bola.
O pesado objecto metálico, pois, começou a ganhar velocidade ao mesmo tempo em que o meu movimento, como tinha imaginado, atrai a atenção das duas mulheres durante um curtíssimo, infinitesimal instante.
Percebo a atenção delas, mas podem dedicar-me apenas uma parte marginal da sua mente e dos seus sentimentos, na situação em que se encontram. Desviar o olhar do adversário pode ser fatal, e nenhuma delas o teria por ventura feito. Por isso tinham permanecido paradas, ouvindo-me a chegar.
Mas por mais que frias e concentradas podem estar, por quanta adrenalina possam ter no corpo, o instinto lhes terá que levar, por força das coisas, para dedicar-me pelo menos aquele tanto que basta para compreender o que está a acontecer. O raciocínio delas, mesmo sem querer, deve tomar em consideração aquele movimento, aquele frufru repentino, proveniente da esquina mais obscura de todo parque estacionamento, que está a significar que me movimentei.
***
Ouvi que, mediante, os tenistas não profissionais conseguem arremessar a bolinha a uma velocidade mais de 180 km por hora, durante o serviço.
Eu tenho cerca de um metro e oitenta de altura, mais de 78 kg de peso, e joguei ténis.
Mas sobretudo era capaz de arremessar uma pedra pelo menos um terço mais longe que qualquer um dos meus amigos, desde criancinha. Lograva propriamente bom êxito. E tinha uma mira infalível.
São aqueles estranhos talentos que cada um de nós tem. Coisas que não servem para nada, muitas vezes. Coisas que parecem naturais e, não sabes porquê.
As duas mulheres, pois, tiveram que dirigir um fragmento da sua atenção sobre mim. Ambas, na sua mente, estão a elaborar aquele acontecimento repentino. A sua parte instintiva está a tentar perceber o que esteja a fazer exactamente aquela sombra. O que tenha a ver aquele movimento repentino que, contra a vontade delas, advertem.
Naquele mesmo espaço temporal necessário para questionar-se, o curso efectuado pelo braço alcança o fim.
Agora os meus dedos, segundo um comando neuronal preciso, libertam o gélido pedaço de ferro, movimenta lá para o seu alvo a uma velocidade impressionante, arremessado com todas as minhas forças depois de tê-lo carregado de inércia.
Querendo fazer uma avaliação, o alvo para o qual atirei a tenaz de ferro está entre os 15 e os 20 metros de mim.
Aquele objecto, calculando por estimativa uma velocidade de 160 km por hora no momento em que os meus dedos o tinham soltado, vai cobrir o percurso em poucos milésimos do segundo, alem de ser mais ou menos invisível, na luz fraca do parque de estacionamento.
Naturalmente, escolhi-o, o alvo.
Da rapidez de instinto, já disse anteriormente. Mas entre os instintos, aquele humano primário, à sobrevivência, é mais veloz dos outros, e o meu propósito de todas as formas, consegue perceber o perigo, e para realizar um gesto defensivo: afastar o busto para esquivar, ou pelo menos esta é a sua vontade.
O movimento não foi suficiente.
O pedaço de ferro, implacavelmente, atinge e embate violentamente o crânio, produzindo um som macabro.
A mulher atingida debilita-se de repente, estatelando-se no chão como um fantoche inanimado, e a outra, não estando mais na posição de tiro, vira-se devagarinho para reparar na minha direcção.
Os acontecimentos realizam-se. Não se pode voltar mais para trás, e as consequências da minha acção são totalmente desconhecidas. Talvez salvei a pessoa boa e a minha pessoa num único golpe.
Talvez.
Se pelo contrário, escolhi mal o meu alvo, desembaracei-me da única pessoa que podia fazer algo para salvar-me a vida. A mulher mais próxima de mim, aquela que empunha a pistola com as duas mãos, depois de virar-se vai acabar comigo. Como decidi agir, como escolhi, e quando decidi tudo isto, não saberia dizê-lo. «Agi por instinto.» Depois, um abalo. Tudo escuro, ao meu redor. Nenhum ruído.
Procurava de concentrar-me, de raciocinar. Estava estonteado. O coração batia precipitadamente e os meus músculos não respondiam.
Procurava de mover-me.
Depois de ter aberto com dificuldade o raio de olhos, dei-me conta que era noite. Noite escura.
Tentava, como sempre acontecia, de acalmar a ansiedade. Não é nada, dizia para mim mesmo, não é nada. Rimos: aconteceu uma outra vez.
Tinha sido um sonho.
Um sonho que conhecia bem, enfim.
Era sempre o mesmo, e terminava todas as vezes desta forma, porque eu despertava repentinamente.