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LOUCURAS Cor de laranja

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Vi-a e levei logo um golpe. Algo nela atraia-me e me repelia ao mesmo tempo, algo infinitamente doce e secretamente triste sobre uma boca da mulher e um sorriso de criança, quase que se estivessem reunidos nela uma mágica inocência e uma lânguida perversão. Mais a reparava mais me convencia que albergasse nela uma dupla natureza e, daí, uma dupla beleza. E efectivamente linda me parecia, duma elegância rara, como duma tímida roseira crescida entre os abrolhos selvagens. Foi assim, instintivamente, que a segui: caminhava suavemente sem virar-se, rápida e segura como longas pernas de pantera. Mas bastava reparar durante um instante o seu perfil puro para encontrar ali a incerteza infantil que me tinha encantado e que agora mais que nunca parecia tocar mal no seu corpo perfeito. Como num sonho ainda revejo os seus morenos cabelos deixados soltos nos ombros que pareciam estar a tremer, o nariz pequenino e arrebitado, a ruga amarga e macia da sua boca. Enquanto a seguia imaginava até o som áspero da sua voz, que devia ser subtil como as suas ancas e harmoniosas como o tenro delinear-se das suas coxas. E me parecia conhecê-la desde sempre no momento em que me questionava o que estaria a fazer ali, sozinho naquela longa rua, perseguindo unicamente um aroma de mulher.

Estes pensamentos acompanhavam o longo caminho que parecia não ter fim.

Mas nada tinha fim naquele dia: nem o palrar submetido dos passarinhos, ou o calor das áridas colinas e muito menos o suor que pingava implacável e lento da minha testa. Mas continuava para frente, impelido pelo único ardente desejo que finalmente ela virasse e durante um único instante dirigisse para mim o seu olhar. De repente, quase importunada pelo barulho dos meus passos, ela virou: colhi um olhar sanguinário e aguçadas feições de fuinha. Cruel e sanguinária, pois! Mas o seu lábio tremeu de medo e eu experimentei outra vez a coragem de quem se sente o mais forte. Reparei-lhe eu também, demoradamente, desejoso e atrevido, derramando outra vez nos meus olhos os pensamentos proibidos durante muito tempo adormecidos. Mas não avancei um passo, possuído pelo inconsciente receio que aquela fosse uma visão dum instante, uma miragem perseguida por uma vida que por uma única imprudência pudesse desfalecer. Sentia de ter uma extrema necessidade de afundar nela, de sentir o calor da sua pele e a doçura da sua boca. Tive a vontade de feri-la, de apertar aquelas ancas leves e dissolvê-las entre os dedos, e colocar os meus dedos nos seus seios e depois arrancar-lhos, para pisar e destruir algo bastante precioso e frágil para não ficar furioso e dar cabo o meu coração.

Ela estava ali, firme, e não fugia. E por acaso por que deveria? Desconhecidos um ao outro e fixos num único pensamento, ninguém de nós os dois moveu-se, e ficamos a repararmo-nos como alunos irrequietos à espera do som duma campainha que não chegava por ventura. No fim moveu-se e eu continuei atrás dela. Era talvez cúmplice dum misterioso subentendido escondido nos seus olhos. Desorientado e perdido segui o ligeiro ritmo dos seus batimentos, o prazer que transpirava da sua pele e a obscura voluptuosidade dos seus sentidos.

Retomamos desta forma aquele eterno vagar entre campos e colinas, e o céu parecia o mar, e todo cheiro prometia tempestade.

Acompanhava-me um presságio de morte que de repente me assolou a alma e não pareceu mais a abandonar-me. E eu, que nunca tinha amado o calor do meu corpo, adverti-o com macabra veemência, quase como se estivesse despertado por vingança do longo esquecimento a que eu mesmo o tinha condenado. Eu, que nunca tinha amado uma mulher, agora abaixaria para pedir, atirar-me-ia impulsivamente de joelhos em frente daquelas amáveis ancas implorando uma hora de piedosas e amáveis carícias. Mas era pois eu aquele homem que tivera medo de amor, e por isso tinha-se confinado para sempre nas certezas dum destino irrevogável, num trabalho uniformizado, negando para si próprio o calor da lareira doméstica por pura covardia? Eram meus, todos aqueles pesados anos nos ombros em que tinha esquecido de ter sido criança, e por isso abominava ao pensamento dum toque na testa e do sorriso de pequeno amante dum recém-nascido? O que tinha feito da minha pobre vida se não um fato bastante apertado onde por pouco encontrava lugar sozinho?

Sepultado por estes pensamentos dei-me conta que tínhamos chegado nas proximidades duma casa, e que a mulher estava enfim perdida. Reparou-me e eu permaneci fora, numa inútil espera dum convite que não chegou por acaso. Parado na sua porta não sucedeu nada naquele dia, e nem sequer naqueles sucessivos, e eu fiquei em pé a respirar o poeirento ar dos campos até quando o sol ficou incandescente, e a poeira queimou-me os pés e um impetuoso vento obrigou-me a voltar aos meus passos.

A partir daquele dia vivi o terror de mim mesmo, toquei com a mão a inutilidade da minha vida vazia e constatei com amargura o desmoronamento das minhas ilusões. De repente deu-me uma repulsa a minha pele leve de velho. E percebi finalmente de não ter por acaso amado, de ter escolhido com feroz teimosia e percorrer sozinho esta passagem na terra, absorvido em dar valor àquilo que valor não tem, se não aquele imaginário e inconsciente da vaidade dos homens.

Seguindo um dia aquela mulher fui durante uma hora eu mesmo: agora voltei à minha vida, à rua em declive que me levará ao seu possível fim.

Sei que nunca serei feliz; mas talvez conseguirei convencer-me de não ter falhado para repreender-me e péssimas escolhas por renegar. Estenderei um véu na minha alma como fazem todos e percorrerei a linha de demarcação do tempo justificando cada minuto o meu mau acto. O esquecimento é tudo aquilo que desejo.

Mas agora sei caminhar no vazio, sem esperança e sem amor.

Cores

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