Читать книгу A viagem de Óscar - Rafael Pires - Страница 4

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CAPÍTULO 1

Óscar estava deitado na cama, os olhos fixos no teto. Um sonho acordara-o, mas ainda não perdera tempo a pensar nele. A dúvida com que adormecera na noite anterior persistia: Será possível ser-se verdadeiramente livre?

No seu cérebro não se referia àquela liberdade mais representativa em que se pensa quando se discutem liberdades sociais ou medita sobre o livre-arbítrio do homem. Óscar ia um pouco mais longe do que isso. Pensava num estado de liberdade em que o Ser se solta do tudo o que existe, um tudo tanto literal como figurado.

Antes que se prolongasse neste pensamento, que, na sua modesta opinião, era até bastante filosófico, os gritos dos vizinhos do lado já interrompiam o seu raciocínio. Eram os Antunes, dissera-lhe a Dona Helena uma vez. Óscar puxou a almofada para si e pressionou-a contra a cara quase até lhe faltar o ar. Depois, atirou- a e bocejou, conformado em ouvir os berros grosseiros dele e os estridentes dela. Desta vez discutiam sobre loiça, ou então sobre roupa, não tinha a certeza. O vizinho era um tipo de trinta e tal anos, mas tinha cara de quarenta. A ela, Óscar só a vira uma ou duas vezes, e tinha cabelos amarelos.

Um segundo bocejo e voltou a aninhar-se nos lençóis, arrependendo-se logo de ter atirado a almofada sabe-se lá para onde. Fechou os olhos, mas só por um instante.

— Mijar.

Ergueu-se sobre o chão frio de cerâmica, reparando que lhe faltava uma meia, e seguiu para a casa de banho. Não se deu ao trabalho de limpar duas pingas de mijo que caíram no assento da sanita, e puxou o autoclismo antes de lavar as mãos com três pedaços de sabonete praticamente desfeitos, desejando ter um daqueles líquidos que não partiam quando caíam ao chão. Perguntou-se se venderia isso na loja, mas achou que não.

Fechou a torneira com um movimento curto, mas lento. O espelho quadrado sobre o lavatório devolvia-lhe a imagem do rosto, não feio mas banal e incaracterístico a que se habituara ao fim de vinte e quatro anos. Sempre se considerara um gajo simples. Uma trunfa castanho-escura em caracol desviava as atenções de dois olhos escuros, castanhos também, e sem brilho. O nariz e a boca, sabia lá ele, tinha-los comuns, embora não desgostasse da curvatura angular do queixo.

Regressou ao quarto com a ligeira sensação de que não chegara a sair. Estacou junto à secretária do computador e deteve a atenção no tapete que a mãe sempre lhe dizia para arejar com frequência, coisa que ele não fazia. Era um quarto aborrecido, que Óscar nunca soubera como tornar mais interessante. Não via onde se poderia ter metido a meia que lhe faltava.

Pisou a almofada que tinha atirado há pouco e levantou-a com os dedos do pé descalço, pontapeando- a para cama. Seguiu o seu movimento com o próprio corpo, cansado, nem sabia bem porquê; talvez do sonho que estava a ter pouco antes de acordar. Os sonhos, por vezes, também eram cansativos. Sonhava com o quê, afinal? Tentou lembrar-se, mas a única coisa que lhe assomava à memória eram portas. Muitas portas. Mal voltara a fechar os olhos quando retomaram as interjeições desarticuladas da casa ao lado, que Óscar nem se apercebeu que teriam terminado. Tinham uma miúda de dez ou onze anos, ou coisa parecida, e viviam na moradia geminada há quatro ou cinco. Desentendiam-se por tudo e por nada e discutiam todos os dias, discussões feias ao som de gemidos e pancadas abafadas e objetos a partir. Um daqueles casos de violência doméstica que agora se dizia ser um crime público. Talvez a miúda os motivasse a continuarem juntos. Óscar não fazia ideia. Nada sabia sobre ter filhos ou sobre casamentos e muito menos ainda sabia sobre as complicações que se guardavam nas mentes das pessoas.

Certa vez, ainda os pais de Óscar moravam com ele, tentou-se chamar a polícia, mas a informação que lhes chegara por telefone era que os agentes nada podiam fazer sem testemunhas que comprovassem supostas agressões. Talvez a definição de crime público devesse implicar a existência de um vizinho valente capaz de arrombar portas para testemunhar ocorrências de violência doméstica em primeira mão, coisa que nunca aconteceu naquele caso, pelo que toda a atuação das partes envolvidas se reduzira ao famoso ditado que dizia que entre marido e mulher não se punha a colher.

Com um gesto rápido e mecânico puxou do seu velho mp3, máquina boa, ainda que meio ultrapassada para padrões atuais, em cima da mesinha de cabeceira. Pôs os headphones na cabeça, escolheu uma música chamada Swoon, dos The Chemical Brothers. O relógio digital da mesinha de cabeceira disse-lhe que ainda era cedo. Era sábado, Óscar não ia trabalhar e o seu único compromisso era à tarde, portanto acordara consigo mesmo que ficaria deitado durante toda a manhã. Levantar-se-ia apenas para o ocasional lanche, ou para bater uma, quem sabe. Não era o plano ideal, mas tinha a certeza de que havia outros piores. Foi então que algo de errado aconteceu. Óscar desconectou os headphones e voltou a conectá-los, mas não solucionou o problema. Estavam estragados ou meio estragados, pelo menos, uma vez que as batidas agudas e prolongadas da canção só se faziam ouvir do lado direito.

Na casa ao lado continuavam os berros. Óscar retirou os headphones da cabeça e suspirou. Desligou o mp3 e foi até à janela, espreitar o dia de sol. Suspirou, voltou a sentar-se na cama, segurou na cabeça. Amanhã seria o dia do seu aniversário, faria vinte e cinco anos e precisava dos headphones a funcionar para o que se ia passar.

Foi limpar aquelas pingas de mijo que tinha deixado no assento da sanita e de seguida voltou ao quarto para procurar a meia que lhe faltava entre os lençóis. Calçou umas calças de ganga azul, deixou-se ficar com a t-shirt branca que já tinha vestida e agarrou no seu casaco amarelo, estilo corta-vento. Junto à porta, pegou na chave de casa e na carteira e tentou recordar-se, mesmo antes de sair, do sonho que tivera horas antes. Não se conseguiu lembrar de nada senão do raio das portas.

A luz nas escadas piscava.

Ainda não alcançara o rés-do-chão quando se apercebeu da presença da velha Dona Helena à porta de casa, no lado direito, inócua e sorrateiramente vasculhando a mala. Com certeza já dera por ele a descer, e agora não havia maneira de não se cruzarem. Quando Óscar, descendo sem pressa, finalmente alcançou o último patamar, mostrou-se agradavelmente surpreendida, como se uma lembrança fortuita lhe ocorresse à cabeça.

— Já viste isto, Óscar? — Perguntou-lhe, segurando com uma das mãos a malita quadrada que levava a tiracolo, com sacos de compras entre as pernas. — O homem ‘teve cá nem faz uma semana a tratar da luz e já está assim outra vez.

— Pois — respondeu Óscar. — Realmente é estranho.

— Olha que não é assim tão estranho, não — disse a senhora, em jeito de lamento. — Sabes que antigamente era o senhor Herculano, Deus o tenha, que arranjava estas coisas. Era eletricista, portanto percebia do assunto, bem-haja. O homem que aqui vem é bom rapaz, mas não tem jeito... De dois em dois meses aí está ele, sempre, sempre apetrechado, sempre preocupado — agora gesticulava com as mãos miúdas, que, entretanto, já seguravam a chave de casa. — Portanto já se vê que o trabalho nunca é bem feito! É como eu sempre digo. Isto já nada é como antes.

— É verdade — disse Óscar, apenas por dizer. — Até logo, Dona Helena.

A vizinha ergueu uma mão, como que o enxotando, e respondeu, sem, no entanto, dar qualquer ideia da intenção de se mover:

— Vai, vai, Óscar, que eu vou aqui arrumar estas compras e ainda tenho de ir à feira!

Óscar desceu os últimos degraus a caminho da porta da rua quando os gritos recomeçaram no andar de cima. Ouviu-se o trinco da porta, a porta a arrastar e depois a bater com força. A miúda dos Antunes, de dez anos ou coisa parecida, apareceu em corrida pelas escadas abaixo, dois degraus de cada vez, e saiu. Nem a Dona Helena, que a chamou, nem o encontrão que dera em Óscar a abrandaram.

— Meu Jesus — Lamentava-se a Dona Helena, num tom, parecera a Óscar, genuíno. — Pobre Teresinha… O que é que eu lhe disse ainda agora? — Baixou a voz, como partilhasse um segredo: — No tempo do senhor Herculano, homens como aquele não viviam no prédio! Não senhora. Ai, que eu tenho uma pena… — Curvou-se para levantar os sacos das compras, mas a porta de casa continuava fechada. — Vai lá Óscar, vai lá à tua vida.

Óscar só por pouco não sorriu. Saiu da moradia e fez-se ao caminho. Era um lugar pequeno e desinteressante, aquele, feito de ruas calcetadas, jardins minúsculos e casas que eram, na sua maioria, moradias geminadas como a dele, que nunca ultrapassavam os dois ou três andares. Mais desinteressante parecia numa manhã de sábado como aquela, onde os poucos transeuntes que circulavam a zona “baixa” da vila eram atraídos pela feira da Vila da Barata, a freguesia vizinha. A zona baixa era assim chamada para se distinguir da zona das colinas, a zona rica das grandes vivendas e mansões. Óscar poucas vezes metera lá os pés, sendo até fácil esquecer-se de que as colinas ainda pertenciam à sua vila. Ficava-se pela zona baixa, pequena e desinteressante.

Um aspeto positivo da coisa era que Óscar poderia facilmente percorrer toda a vila a pé (à exceção da zona das colinas); não tinha carro, só uma velha bicicleta guardada na arrecadação há alguns anos. Outro aspeto positivo, e já eram dois, era que, apesar de não haver nada naquela vila e à volta dela, havia, pelo menos, uma loja de eletrónica que certamente venderia headphones novos. Era na sua direcção que caminhava.

Chegando ao centro, os rostos com que Óscar se cruzava assemelhavam-se aos habituais: O Fernando e o Germano, dois irmãos velhos, um baixo e um alto, mas ambos de porte, sentados no banco a debitar sobre como o governo lhes roubava a reforma; a Odete que se entretinha a alimentar os pombos, a corcunda das costas cada vez mais curva; o velho Arnaldo Vaz, que sofria de Alzheimer e dizia a todos para irem trabalhar.

Cruzou-se também, e pela segunda vez naquele dia, com a Teresa, a filha dos Antunes. Da moradia de Óscar, tinha fugido para dentro de um pequeno parque e enfiara-se num baloiço, dobrada sobre si mesma, com o rosto enfiado entre os joelhos, vendo-se apenas a sua trança ruiva e desajeitada a correr-lhe sobre as costas magras.

Óscar passou bem perto do parque, por isso notou como ela apertava os braços em volta dos joelhos, tremendo como se estivesse a chorar. Pensou que aquilo devia ser fodido, um pensamento curto. Depois pôs as mãos nos bolsos do casaco amarelo, perguntou a si mesmo por que razão as pessoas existiam e seguiu caminho.

O horário da loja de eletrónica aos sábados era das nove à uma da tarde. Lá dentro, foi rápido a encontrar o corredor dos headphones. Perdeu apenas um pouco de tempo a ler as informações descritas em algumas das embalagens e, passado exatamente três minutos, dirigia-se para a caixa. A sua tarefa estava terminada e ainda nem sequer eram dez horas da manhã.

Pensou num sítio tranquilo para os experimentar e optou pela velha ponte, um antigo caminho de cabras, sobre o rio, de leito estreito, que deitava a perder de vista na periferia ocidental da vila.

Parou na ponte, bem no centro, os olhos postos na água que corria abaixo. Ligou o mp3, daquela vez com os headphones novos, e sorriu quando percebeu que funcionavam na perfeição—sorriso curto, rápido a desaparecer.

O seu súbito entusiasmo esmagado por uma vontade imensa de chorar, Óscar conteve-se. Decidiu regressar a casa e aguardar o dia de amanhã. Tinha vindo a antecipar o dia do seu vigésimo quinto aniversário há algum tempo e a ansiedade crescia dentro dele. No domingo de amanhã, Óscar planeava…

— Está tudo bem?

Óscar quase deixou cair o mp3 à água com a voz grave que o interpelava. Voltou-se para trás, surpreendido pela aparição súbita de dois olhos verdes, que o observavam. A rapariga tinha cabelos negros, curtos e o rosto era moreno. Vestia um macacão azul, reparou Óscar quando se recompôs. A sua intenção foi responder-lhe o “sim” que se esperava daquela questão tão banal, mas, não soube bem porquê, em vez disso, limitou-se a terminar o pensamento que estava a ter, só que, daquela vez, em voz alta:

— Amanhã vou matar-me.

A viagem de Óscar

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