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CAPÍTULO 3

Na rádio da loja passava um anúncio a um laxante.

Ao balcão, um homem gordo com cara de melão e cabeleira e barba amarela-acinzentada, conversava com Mário, que tinha deixado o jornal que estava a ler aberto nas páginas das prostitutas.

— É como eu te disse no outro dia, Mário, se queres fazer dinheiro tens de vender fruta!

— Eu já estou farto de dizer isso ao patrão, ele não me ouve.

— Pois, os patrões são complicados, por vezes. Eu próprio fui obrigado a discutir com vários dos meus. Entende, todo o patrão tem complexo e eles não gostam quando nós, o trabalhador pequeno, tem ideias porque fere-lhes esse… Enfim, fere-lhes esse complexo, compreendes?

— Sim — disse Mário, segurando no queixo. — Sim, acho que sim.

O homem gordo abriu os braços, como se tivesse dito a coisa mais inteligente de sempre.

— Então, prontos! A falar é que a gente conversa. Ou melhor, que a gente se entende. Agora o que tu tens a fazer, meu amigo, é convencer o senhor Amílcar disto. A fruta é o futuro, amigo Mário, não penses o contrário. Agora passa-me aí um maço, se fazes favor.

Óscar passou atrás do homem gordo e disse ao Mário para colocar na conta de Ivo as duas cervejas que levava lá para fora. Saiu da loja, entregou uma das cervejas a Ivo e voltou a sentar-se no seu poiso no passeio, com os pés na estrada.

— Disseste-lhe para pôr na minha conta?

Óscar disse que sim e provou a cerveja.

— Escuta, Ivo… Tu lembras-te da Caetana?

— Quem?

— Uma rapariga que andou na nossa escola. Chamava-se Caetana. Chama-se.

— Do nosso ano?

— Sim, mas de uma turma diferente — disse Óscar. — Aquela que estava quase sempre em salas ao lado das nossas.

— Sim, sim, sim. Era a turma do Luís, o que foi jogar badminton, e da Raquel, que se tornou modelo.

— Exato, essa turma.

— A Caetana… Ah, claro! Também com esse nome nem sei como é que não me estava a lembrar. Era aquela rapariga muito magra, não é? Quase esquelética, mesmo. Aliás, acho que a Laura uma vez disse-me que ela era anoréxica ou bulímica ou qualquer coisa assim. E que eu saiba nem era modelo como a Raquel.

— A Raquel também era bulímica?

— Não sei. Também foi a Laura que me disse, mas a Laura também é um bocadinho má língua, por isso não se pode levar tudo o que ela diz muito a sério. Não lhe digas que eu disse isto senão ela ainda me bate. É verdade, sabias que a Raquel é lésbica?

— Não — disse Óscar.

— Esta não foi a Laura que me disse, portanto deve ser verdade. Acho que ela anda com uma outra modelo agora, uma que veio do leste. O Tomás mostrou-me uma foto das duas. Lembraste como a Raquel era boa, certo? Pois a namorada dela ainda é melhor. Por acaso não sei se já deixam os homossexuais ter filhos ou não. Espero que sim. Eu oferecia-me logo para ajudá-las, se é que me entendes.

— Elas provavelmente preferiam adotar — disse Óscar. — Sendo modelos e tudo mais.

— Ah, pois, és capaz de ter razão. A não ser que haja modelos grávidas. Tipo coleção para grávidas, entendes? Olha que não era uma má ideia. Era capaz de dar dinheiro. Achas que alguém já teve essa ideia?

— Não sei.

— Eu também não, mas às vezes parece que as boas ideias já foram todas tidas por alguém. Penso nisso, às vezes, quando estou a pensar no que fazer. Tu sabes como eu sou. Vou fazendo uns biscates aqui e ali. Obras, entregar merdas. Um bocadinho de tudo, porque gosto de experimentar muita coisa. Vai-se conhecendo gente, vai-se conhecendo gajas boas. É fixe e dei-me bem em quase todo o lado. Tudo menos aqui, é claro.

Óscar sorriu.

— Foi quanto tempo que duraste? Um dia?

— Meio, mas o vosso patrão também é fodido. A dizer que eu agredi um cliente, coisa que nunca aconteceu.

— Mas agarraste-o — lembrou-o Óscar. — E ele fez queixa.

— Estava a recriar a cena em que a Arwen está a enfrentar os Nazgûl na água — explicou-se Ivo. — Que culpa é que eu tenho que o cliente e o senhor Amílcar não apreciem clássicos? Eles é que deviam ser despedidos só por isso.

— Sabias que a Liv Tyler ainda sabe dizer umas quantas coisas em élfico?

— Sou um grande fã, Óscar, é claro que sei — respondeu Ivo. — Mas como eu estava a dizer… Já tentei muitas coisas, mas nenhuma delas foi assim aquela coisa, como é que eu hei de dizer. Nenhuma foi a minha cena.

— Mas tu já tens a tua cena, certo? — Perguntou Óscar. — O rap.

— Sim, é verdade — disse Ivo. — O rap é a minha paixão número um. Tupac Shakur, N.W.A, Nas, Snoop, Biggie. Papo isso tudo. Não sou de guerras entre coasts, entendes? Mas tipo, não sou daqueles que só ouve rap e cospe em tudo o resto. Não. O rap para mim é o top do top, mas de uma maneira geral, gosto um pouco de tudo. Pop, rock, reggae, metal assim daquele pesado, europeu, baladas lamechas. Há muita merda boa por aí.

— No trabalho temos o rádio sempre ligado, portanto o que se ouve mais é mainstream.

— Não sou muito de rádio, sinceramente — disse Ivo. — Nunca passam rap.

Óscar assentiu.

— Normalmente é só pop. Pop mainstream. Antes não gostava muito, mas agora já me habituei. Mesmo assim continuo a preferir os géneros que eu já gostava. Música alternativa, eletrónica, sintética, se estivermos numa de rótulos. Mas às vezes é difícil.

— O que é?

— Como tu disseste, há muita merda boa por aí, mas às vezes é difícil encontrá-la. Há dias em que dou por mim e passei horas a ouvir as mesmas duas ou três músicas. Porque gosto delas, claro, mas também, sei lá… Suponho que é porque é difícil descobrir outra coisa quando estás tão apegado àquilo que já conheces.

Ivo massajou os pelos do queixo.

— Isso é tão profundo como ali o meu cão que não caga.

Óscar riu-se e olhou para o Fúria, que estava deitado no meio da estrada.

— Não estava a tentar ser profundo.

Ivo levou a cerveja à boca.

— Engana-me que eu gosto. Mas adiante. Enquanto a minha carreira de rapper não lança tenho de fazer qualquer coisa, certo? Houve aí uma altura em que eu também pensei escrever um livro, porque, no fundo, é como rap, contamos uma história. Mas depois desisti. Não gosto lá muito de livros.

— Eu também não — admitiu Óscar.

— Nestes últimos tempos tenho andado a pensar em fazer um filme. É assim, a ideia nem é nova e eu até já tenho uns guiões pequenos. Também tive de escrever, mas sei lá, é diferente. Até os cheguei a mostrar a um perito que mora na vila ao lado. Ele já fez filmes e ainda trabalha nesses meios. Bem, fez documentários, que normalmente não são muito interessantes, mas pronto, são filmes à mesma, acho eu.

— Diz que são.

— Mas o tal gajo disse que o meu trabalho não era grande coisa, portanto eu pus de lado a hipótese. Mas ultimamente ando a pensar muito. Ando a magicar ideias. E vamos lá ser sinceros, o que é que os grandes fazedores de filmes e produtores gostam mesmo?

Óscar coçou o nariz.

— Snifar coca?

— Remakes! — Exclamou Ivo. — Eles querem é remakes. E é por isso que eu estou a pensar numa nova versão do Titanic. Titanic 2097. Uma ópera espacial. A história seria parecida. O tipo pobre, a tipa rica. Mas seria no espaço e o Titanic era uma nave espacial e não um barco. Alerta spoiler: no fim, a nave acertava num cometa ou qualquer coisa e, tipo, a cena que protegia os passageiros é destruída e depois não ia haver oxigénio e era tudo dramático para caralho. E lá para o meio estou a planear mencionar nanotecnologia, mas não sei bem onde.

— O que é nanotecnologia? — Perguntou Óscar.

— Não sei, mas os filmes dos super-heróis estão cheios disso e o povo adora! — Óscar fez novo encolher de ombros e bebeu um gole de cerveja.

— Talvez.

— Mas e agora tu, Óscar. Os teus sonhos. Ainda estás a pensar?

— Ainda.

— É difícil — disse Ivo. — Saber-se o que se quer fazer. E às vezes sabe-se, mas as pessoas à nossa volta não nos respeitam por isso. Tipo os meus pais. Acham que eu estou só a perder tempo. Dizem que ando só na brincadeira com o meu rap e os meus guiões. Dizem que eu devia ter ido para a faculdade, estudar, arranjar um emprego bom. A minha mãe então está sempre a dizer que devia ir estudar medicina. Eu, saído de letras. Enfim.

— Os meus pais são parecidos — disse Óscar. — Mas para mim faculdade nunca foi uma opção.

— Digo o mesmo, não é para mim. É verdade, e os teus pais? Continuam lá para a terrinha da tua mãe?

Óscar disse que sim.

— Eles já estão reformados, por isso agora estão só a tomar conta dos meus avós.

— Já sei, já sei — respondeu Ivo. Depois, olhou para o céu azul, praticamente limpo de nuvens e tirou o gorro da cabeça. — Não está lá muito frio hoje. E ainda vai ficar mais quente, segundo vi na televisão. Foda- se… Nem sequer é verão, puta do aquecimento global. — Beberricou a cerveja. — Olha para mim. Um cidadão preocupado com o mundo. Se a nossa stôra de formação cívica me estivesse a ver agora até aplaudia.

— Ela era um bocadinho má.

— Mas era boa, que é o que interessa. Óscar continuou a beber a sua cerveja.

— Se tu o dizes.

Ivo esvaziou a sua garrafa e depois, ao terminá-la, deu um leve safanão no braço de Óscar.

— Então, mas e o que estavas a dizer?

— O quê?

— Estávamos a falar da Caetana. Perguntaste-me se eu me lembrava dela. Isso veio a que propósito?

— Não foi por nada de especial. Vi-a hoje depois de ir comprar os headphones.

— Continua magra?

— Já não me lembro muito bem, foi uma coisa de segundos, mas acho que sim.

— E que mais? Mamas, cresceram? O que é que mudou?

— Sei lá. Está um pouco mais velha do que era quando estava na escola, como nós.

— Foda-se, ficar mais velho é fodido — disse Ivo.

— Pois é — disse Óscar. — A ver se não fico.

A viagem de Óscar

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