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CAPÍTULO UM
Оглавление18 de junho de 1715
Uma mão sacudia na água escura e agitada, segurando-se com força no bote. Se não fosse pela luz da lua, Christophe o teria perdido antes de uma segunda mão se juntar à primeira e uma cabeça cabeluda de olhos arregalados aparecer sobre a borda. Os membros pertenciam ao pirata magricela que tentou eviscerá-lo enquanto tentava de fugir do navio que ia a pique.
O rangido da madeira acompanhado pelos estalos e estilhaços precederam a pancada quando o mastro caiu na água. O murmúrio dos gritos ecoava pelo horizonte negro do mar infinito. Ninguém para ouvir os homens morrendo, exceto o segundo veleiro que se distanciava da destruição que causou. A pólvora permeava o ar salgado com sua espessa fumaça negra, fazendo os olhos de Christophe queimarem mesmo ele tendo conseguido direcionar o bote para longe do naufrágio.
O homem na água lutava para se impulsionar para o bote, fazendo-o balançar perigosamente. Ele era feio, desnutrido e lhe faltavam vários dentes. A água do mar tinha escondido os traços de suor e falta de banho, mas ainda havia um pouco de bolor no casaco dele que ficara mais evidente por causa da umidade. Ou ele ou o pirata cabeludo teriam um encontro com as profundezas geladas, e Christophe não tinha planos de comparecer a essa reunião em particular. Não quando a liberdade finalmente tinha dado sinais. Esse homem, que Deus proteja a sua alma, não atrapalharia a sua fuga.
Além do pirata encharcado, uma barbatana triangular rompeu a superfície, a carne cinzenta e molhada brilhou no prata pálido que ondulava através das ondas. O tubarão cortou a água como uma lâmina letal, circulando silenciosamente o barco como se percebesse que o jantar esperava por ele. Ou não… já que o pirata que se puxava sobre a borda do bote não conseguiria entrar.
– Desculpa, camarada. – Christophe se encolheu com o estalo seco da própria voz. A fumaça não lhe fez nenhum favor. Na verdade, estava feliz demais por estar deixando a pirataria, e esse maldito estilo de vida, para trás quando remou com o bote para longe. Finalmente entrava no próximo capítulo da sua vida. O problema era que o pirata agarrado ao barco como uma craca indesejada com certeza tiraria a sua vida assim que ele fosse a bordo. Era melhor descartar completamente aquela opção.
Christophe puxou os remos para dentro do bote e então desembainhou a espada. Supôs que poderia se limitar a atirar no homem, mas preferiu preservar o máximo de munição possível. Então ele abaixou a lâmina da espada, como se fosse um cutelo, em direção ao local onde o pirata se agarrava ao barco, mas errou carne e osso e bateu na madeira nua. Com um grito agudo, o pirata se soltou e agitou os braços abertos enquanto caía nas profundezas azuis, chapinhando enquanto tentava se manter à tona. Uma segunda barbatana se juntou à primeira, rodeando o barco pelo lado oposto, e então se afundaram. O homem tossiu, gritou e desapareceu.
Christophe embainhou a espada enquanto vasculhava a superfície da água, mas o pirata não ressurgiu e o primeiro tubarão continuou a circulá-lo, esperando. Desarrolhando a garrafa de rum que tinha pegado durante a fuga, Christophe a ergueu em saudação ao bucaneiro e tomou um bom gole.
– Espere o quanto quiser, tubarão. Você não vai ter um gostinho de mim. – Ele tampou a garrafa e a enfiou na mochila que tinha feito às pressas, então colocou os remos de volta no suporte das laterais do barco, preparando-se para a partida.
Chegaria às Bermudas ao meio-dia, isso se não saísse do curso, e já que só teria rum como alimento até lá, precisava se apressar e ficar acordado até conseguir chegar à terra. De outra forma, teria sua pistola ou se jogaria aos tubarões, mas nenhuma dessas opções tinham o mesmo apelo que a liberdade.
Christophe fechou os olhos, inclinou a cabeça para trás e suspirou. Liberdade. Ansiava por ela há tanto tempo, mas nunca tivera oportunidade para persegui-la sem que houvesse represálias. Sempre tinha havido olhos sobre ele. Sussurros e moedas trocando de mãos por informação quando o navio aportava. Se capturado, a punição pela tentativa de fuga seria severa. Trabalhou muito duro para subir as posições e poder ter essa oportunidade e não iria perdê-la agora. O dinheiro que tinha lhe garantiria uma refeição ou duas e ele poderia trabalhar para conseguir uma passagem de volta para as colônias.
Iria para casa.
O esperado alívio com aquela perspectiva não foi tão forte quanto deveria ter sido. Queria muito ir para casa. Temia, no entanto, que não fosse ser aceito de braços abertos. Tornar-se um pirata, mesmo não tendo sido por escolha própria, tinha posto um preço em sua cabeça. Os crimes cometidos durante o tempo que fez parte da tripulação eram o suficiente para levá-lo à forca. Não importava o fato de ele ter sido forçado à prática, porque as leis sobre a pirataria não eram misericordiosas. Sua volta para casa traria uma mancha para a família, caso a verdade fosse revelada. Sua vida estava tão à deriva quanto ele naquele momento, remando sem destino, exceto pelo propósito de encontrar algo para comer e um lugar para dormir. Perdido. Desamparado. Sozinho.
À distância, A Serpente do Mar, o galeão que tinha atacado, recuava com apenas as velas de velocidade distinguíveis na noite enfumaçada. E, à sua esquerda, bolhas, destroços flutuando, alguns ainda em chamas, e corpos marcavam a localização do Calypso. Assim que a água entrou com maior rapidez, a embarcação afundou. Uma bala de canhão no lugar certo tinha selado a desgraça da escuna. Enquanto a tripulação do navio atacante fazia reféns, o Barba Magricela tinha sido o único pirata a notar a sua retirada. O pirata tinha estado tão determinado a impedi-lo de pegar um dos botes do Serpente do Mar que nadou atrás dele em vez de alertar os outros.
E ele fez um bom trabalho, mesmo com o agito do mar e a ingestão de água salgada. Oh, e então o maldito acabou virando isca de tubarão. A experiência não deve ter sido muito agradável.
– Antes você do que eu – murmurou. Até faria um cumprimento com o chapéu, mas o perdeu durante a fuga. Antes o chapéu do que a vida.
Bem quando tinha acreditado que a tripulação com a qual viajava era formada pelos homens mais estúpidos que já conheceu, o Serpente do Mar chegou com menos bom senso do que o resto deles. A única razão pela qual sobreviveram era que eles tinham mais armas e mais homens. Sem muito intelecto em qualquer um dos lados, os músculos ganharam rapidamente.
Não passou pela cabeça de nenhum deles que um dos tripulantes do Calypso fosse a bordo do Serpente do Mar em vez de lutar para mantê-los fora do navio e que, então, fugiria no bote dos rivais. Ele riu, sentindo a dor por remar percorrer o corpo cansado. Precisava de descanso, mas não agora. Tinha que chegar ao fim do curso perigoso ao que tinha se jogado.
Pouco mais de um ano atrás, ele tinha sido raptado pelos marinheiros depois de desmaiar na taverna por causa de uma bebedeira. Christophe acordou no mar com um monte de piratas sanguinários que tinham baixa moral e nenhum respeito pelas mulheres. Pensar naquilo levou um sorriso ao seu rosto. Dependendo da quantidade de rum que tomasse, ele mesmo poderia ser um pouco canalha. Enquanto o ano se passava, e a fuga parecia menos provável, conseguiu, de alguma forma, ganhar a confiança da tripulação e do capitão, o suficiente para que acabasse sendo elevado a contramestre do Calypso. Provavelmente porque ele era um dos poucos que tinha o mínimo de bom senso para fazer o maldito trabalho. Ele era letrado, e o dono anterior do posto morreu de disenteria. Uma forma horrorosa de ser morrer.
Quando o Calypso começou a afundar, Christophe hesitou por um mero segundo antes de partir para a ação. Agora, quem restou da sua antiga tripulação ou estava morto ou tinha sido levado prisioneiro junto com o Serpente do Mar. Ninguém procuraria por ele. Já tinha passado muito tempo para que alguém descobrisse a sua identidade e pedisse um resgate. E tudo ficaria bem mais uma vez. Finalmente.
Resignando-se a ficar vivo, e longe dos dentes dos tubarões, ele só desejou chegar à terra, o que tinha começado como um plano tão decente quanto a maioria dos planos decentes começava. Ele parou de remar para descansar os braços, mas o cabelo da nuca se arrepiou e ele olhou em volta. O primeiro sinal para voltar a remar para o outro lado deveria ter sido o brilho abaixo da superfície.
A coisa o rodeava, um brilho azul-esverdeado debaixo da água, espalhando-se cerca de quinze metros em todas as direções. Christophe parou para admirá-lo e tentava, ao mesmo tempo, desvendar a causa. A água escura se agitava ao redor do brilho. Nenhuma luz que já tinha visto, seja de lamparina ou de fogo, já criou um brilho assim. Um homem supersticioso presumiria que aquilo era algum trabalho de bruxaria ou magia negra, mas ele não acreditava em mágica. Ele ria de tais disparates – isso se não estivesse olhando para uma luz que parecia vir de outro mundo e que estava brilhando bem no meio do oceano.
As listras da pele do seu companheiro tubarão ficaram claramente visíveis enquanto ele o rodeava com os dentes afiados e mortais. Em volta dele, cardumes de peixes brancos se afastavam freneticamente para todas as direções. Aquele foi o segundo sinal para a retirada, mas era tarde demais.
Um enorme redemoinho se formou abaixo, lento de início. Explosões brilhantes de água turquesa giravam, ficando cada vez mais largo e profundo, até que o meio se afundou e o rugido do mar sugou o bote como uma tromba d’água em uma tempestade de luzes. Não pôde fazer mais nada além de jogar a mochila sobre o ombro e se segurar com a vida enquanto a corrente capturava o bote e a embarcação começava a girar indo para o fundo do abismo.
Havia tantas coisas que desejava para a vida. Casamento, filhos. Fazer a diferença, ainda que não soubesse de que forma. A pirataria tirou tudo dele, e ele se permitiu ter esperança, talvez esperança demais, de que poderia voltar ao caminho a que tinha se proposto antes.
Nunca voltaria.
Christophe ia morrer, sem dúvida, e se não fosse afogado, então seria pela pressão de ser engolido pelo vórtice. De qualquer forma, o rum iria com ele; um pequeno prazer ao qual se agarrar na vida após a morte.
18 de junho de 2015
Eu queria me apaixonar por um homem diferente de qualquer outro que eu já conheci.
Serena abriu os olhos enquanto o meteorito sumia. Fazer um desejo para uma estrela-cadente era meio infantil, mas o conforto do ato tinha sido mais nostálgico que qualquer coisa. Momentos mais tarde, os fogos de artifício se acenderam no céu com explosões de ouro, azul, violeta, verde e vermelho. As explosões de luzes azuis e verdes eram particularmente vívidas, refletindo na água que seguia o rastro do navio, quase como se tivessem sido disparadas por debaixo da superfície. Lindo.
Os passageiros foram só “óóó” e “aaa” enquanto apontavam para o efeito. Com vários outros estouros acima, o navio sacudiu e virou para a esquerda, indo em direção ao lugar ali na água que tinha emitido a luz azul-esverdeada. Serena segurou a amurada com força para se equilibrar. Na água, os reflexos dos fogos de artifício diminuíam, mas o brilho pareceu quase girar ali por um instante, como o ralo de uma banheira. Quando piscou, ele desapareceu.
Uma criança começou a chorar atrás dela, provavelmente assustada por causa do movimento brusco do navio, e o tumulto a fez voltar para a realidade.
– Por favor, permaneçam calmos – alguém disse no sistema de autofalante. – Algo bateu no navio. Provavelmente um… tubarão-baleia? – O sistema de comunicação desligou com um estalido seco. Serena engoliu o impulso de rir. Eles anunciaram mesmo que tinham batido em um tubarão, como se eles não tivessem certeza de que tinham batido mesmo? Não achava que aquele seria o tipo de coisa que anunciariam, mas quem era ela para saber?
Ao seu lado, uma mãe segurava os pequenos com força enquanto eles tentavam espiar sobre a amurada, esperando ter um vislumbre do tubarão-baleia que foi capaz de agitar um navio de cruzeiro. Não parecia plausível, mas, se era mentira, o que mais poderia ter causado o movimento?
– O navio não machucou o turbarão, machucou? – uma garotinha perguntou enquanto as lágrimas escorriam pelo seu rosto. – Coitadinho do tubarão.
Serena se afastou da amurada enquanto um homem magro com óculos bifocais olhava ao redor, a paranoia gravada em seus olhos arregalados.
– Esse navio é grande demais para sofrer o baque do golpe de um tubarão-baleia – ele deu voz aos pensamentos dela antes de se virar para o amigo, que se limitou a erguer uma sobrancelha, então ele prosseguiu. – Estamos no Triângulo, cara! Alienígenas.
Ela bocejou e achou que aquela era a sua deixa para voltar para a cabine. Alienígenas e Triângulo das Bermudas eram duas coisas nas quais não acreditava e não começaria a acreditar agora. A nostalgia de infância por fazer um pedido para uma estrela-cadente desapareceu, e a meia-noite parecia uma ótima hora para ir para a cama. Os vinte e oito não a estavam tratando com bondade no que dizia respeito a ficar acordada até tarde, mesmo tendo aquela idade pelo total de um dia. Costumava ser muito boa em só ter duas horas de sono, mas ultimamente… se não dormisse ao menos de 6 a 8 horas, ficava com o humor de uma fera. Além do mais, era para ela se divertir na viagem.
Divertido não era exatamente a palavra que ela usaria para se referir ao cruzeiro que fez pelo Caribe para comemorar o aniversário. Duas das suas amigas cancelaram em cima da hora, e Becky Ann acabou ficando tão enjoada hoje mais cedo que até mesmo os medicamentos que deram para ela não estavam ajudando. Ela teria que ficar na enfermaria até que o navio aportasse no dia seguinte.
As primeiras horas sem Becky Ann foram ok, mas acontece que no dia do seu aniversário, Serena acabou zanzando por aí sozinha, sem falar com ninguém. Verdade seja dita, isso a salvou dos esforços da amiga de lhe arranjar alguém, a maioria dos homens ali estavam com suas esposas e filhos, de qualquer forma. Mal podia esperar para voltar para casa, sério. Fariam uma última parada nas Bermudas e então voltariam para as Bahamas.
Ela foi caminhando em direção às cabines do navio e uma multidão apressada chamou a sua atenção.
– É o Jack Sparrow! – alguém gritou animado.
– Não, dã. Ele é louro. – Isso foi dito como se fosse um sacrilégio colocar os dois na mesma frase. Que Deus não permita.
Parando na base da curta escadaria que conduzia aos quartos, Serena olhou rapidamente para trás, na direção da gritaria, bem na hora que uma pequena horda de mulheres e crianças passavam em uma animada troca de murmúrios.
– Mas eu quero tirar uma foto com ele – a mulher disparou. – Você já tirou uma.
– Você é um rato imundo e desprezível? – um garotinho perguntou com a voz maravilhada.
– Você diz coisas como “faça o navio em pedaços?”
Uma mulher murmurou “Eu o faria em pedaços.”
– Por que você não vai procurar a sua irmã, Tommy? E deixa a mamãe falar com o pirata bonzinho?
– Você é um pirata de verdade? Posso segurar a sua espada?
– Oh, meu Deus, Lisa, olha o traseiro dele. Ele é genuíno e sexy. O cruzeiro investiu mesmo neste ator.
Retrocedendo até chegar perto da multidão, Serena tinha que ver este pirata misterioso que estava atiçando hormônios e imaginações. Era seu aniversário, afinal. Ela não merecia dar uma boa olhada?
O bando de mulheres e crianças curiosas tinha feito um círculo em volta do ator vestido como, é… um pirata. Espada, pistola, botas gastas na altura do joelho, casaco longo e marrom com botões dourados que brilhavam sob a luz. O pelo facial que crescia no rosto dele não era bem uma barba, mas não estava muito longe de ser. O cabelo louro era longo e parecia ondulado por causa da água do oceano e do vento. Anéis cobriam os seus dedos e quando ele virou a cabeça, a pequena argola que adornava a orelha brilhou à luz.
Tá de sacanagem.
Mas que clichê. Tudo o que faltava era um ventilador em algum lugar soprando o cabelo e o casaco enquanto ele tirava fotos estilo capa de romance com as suas ávidas admiradoras. Ele era lindo, ela tinha conseguido um vislumbre dele, mas nem morta se aproximaria daquela horda, não se pudesse evitar.
Estava quase se afastando mais uma vez quando notou que o pirata não estava sorrindo. Em vez disso, ele estava acuado perto da parede, como se estivesse prestes a colocar sua espada meio-que-realista-demais entre os dentes e escalar o casco do navio. Talvez ele não tivesse sido avisando de que não teria apenas crianças obcecadas com piratas, mas mulheres salivando pelo romantismo difundido pela cultura pop também.
Afff. Piratas românticos. Ela revirou os olhos. Faça-me um favor. Eles eram canalhas maliciosos e sujos cheios de dentes podres e sem nenhuma moral. Óbvio, Hollywood fazia com que fossem atraentes, mas piratas de verdade não eram sexys. Não eram modelos cheios de lápis de olho e com roupa de couro igual àquele cara da série Once Upon a Time. Eles eram criminosos. Mesmo quando encaixados nas áreas nebulosas, crimes ainda eram crimes no final das contas.
Ainda assim, Serena não conseguiu não se simpatizar com o cara enquanto ele olhava, com cautela, para a multidão. Pois bem, pirata. Ela deu de ombros. Multidões eram uó. Pessoas demais pairando com seus olhares curiosos e julgadores… Não. Simplesmente… não. Preferia saltar numa piscina de ácido. Infelizmente, por ser adulta, não conseguiria escapar das responsabilidades com facilidade. Principalmente porque precisava pagar as contas. O trabalho maçante no arquivo do enorme escritório de advocacia era perfeito para ela. Ela tinha a própria sala, não precisava ver os clientes e podia evitar pessoas durante a maior parte do dia.
Também era o trabalho mais chato da face da terra, por isso os amigos lhe deram um cruzeiro como presente de aniversário. Uma aventura muito necessária, eles disseram.
Serena bufou quando uma mulher se atirou no cara, agarrando-se a ele com força. Os olhos do pirata se arregalaram e ele baixou lentamente os olhos para a mulher agarrada a ele como uma estrela-do-mar e pigarreou. Ele embainhou a espada meticulosamente e tentou afastá-la. Era óbvio que ele não tinha bancado o pirata antes. Talvez fosse a estreia dele, o que era estranho considerando que o cruzeiro estava chegando ao fim. Naquele momento, ele parecia quase uma alma irmã; uma vítima de uma multidão que não queria deixá-lo em paz.
Os poucos amigos que tinha a ajudavam quando as pessoas, em geral, sobrecarregavam-na. Talvez fosse o que ela devesse fazer no seu aniversário: devolver o favor. Respirando fundo, Serena se preparou para o inevitável horror de falar com pessoas que não conhecia. O carma pela boa ação deveria dar uma guinada na sua sorte, era o mínimo a se esperar.
– Ok, pessoal, ok. Abram caminho. O capitão, é, Morgan voltará amanhã. Ele precisa ir alimentar o papagaio. – Serena pegou o pirata pelo braço e o puxou apesar das reclamações da multidão de que não havia um papagaio de verdade. O couro grosso do casaco dele era macio ao toque, o braço ali embaixo era quente e forte. Ela tremeu, e não foi de frio. Muito pelo contrário. Ele não se mexeu, e o calor subiu pelo pescoço e pelo rosto dela. Esperava que não tivesse feito algo que acabaria em humilhação. Odiava passar vergonha em público. Não lidava muito bem com essas ocasiões, o que divertia muito os seus amigos.
Em vez disso, ele encarou a sua mão e então foi subindo lentamente o olhar, viajando do braço até o seu rosto. O contato visual a atingiu como uma bala de canhão, um golpe certeiro que destruiu a sua decisão e a deixou nua enquanto o mundo ao redor deles se estilhaçava nas profundezas da sua percepção. Como se tivesse experimentado o mesmo que ela, os lábios dele se entreabriram. Então um sorriso presunçoso ergueu um dos cantos da boca do cara e ela engoliu em seco enquanto a realidade dura e fria voltava com toda intensidade. Não havia dúvida de que ele tinha a aparência de um malandro temerário, e Serena temia que não fosse tão imune àquilo quanto desejava.
– Oh, meu Deus. Aquele olhar – disse uma mulher do meio da multidão, quebrando o que restava do que quer que fosse aquele feitiço que amarrou Serena e o pirata por um instante. – Ali está. Saqueie-me, pirata! Saqueie-me com força! – Risadinhas e arquejos escandalizados da multidão fizeram Serena sair da inércia enquanto um garotinho perguntava em voz alto o que significava saquear, e muitas risadas sem graça foram ouvidas.
– Certo – adicionou Serena quando o homem não colaborou. O coração batia com força no peito, e a respiração ficou mais rápida por causa do pânico causado pela atenção dele e das pessoas que tinha sido focada nela. – Você pode vir comigo ou ficar com eles. A escolha é sua. – Precisava escapar dali antes que começasse a hiperventilar. Estava se fazendo de boba. Ele não precisava da sua ajuda, e ela tinha presumido algo que não deveria.
O pirata olhou para as mulheres e para as crianças com desdém, só pareceu lembrar da presença deles quando se virou para ver o que a fizera parar de olhar para ele, o que criou ainda mais tumulto. Ele se inclinou para pegar uma sacola velha e suja e a jogou sobre o ombro antes de fazer sinal para que Serena fosse na frente. Ela se virou, seguindo para o corredor de onde tinha vindo sem sequer esperar para ver se ele a seguia.
Podia ouvir a multidão às suas costas começar a se dispersar, e assim que eles viraram no corredor, sozinhos, o capitão Morgan a fez parar. Ele a pegou pela mão e levou as juntas dos seus dedos aos lábios, beijando-as levemente.
– Preciso lhe agradecer, amor, pelo audacioso resgate.
Sentiu um frio na barriga que a fez tremer. Ele tinha um sotaque inglês que era influenciado pelas inflexões das ilhas caribenhas. Uma cacofonia de dialetos dentro de um único e delicioso timbre de voz masculina. Ótimo. Agora eu sou uma das adoradoras do pirata.
– A seu dispor. – Ela puxou a mão da dele e brincou, desconfortável, com uma mecha de cabelo. – Olha, você precisa melhorar sua lengalenga para amanhã, ou eles vão te comer vivo.
O capitão Morgan franziu o cenho.
– O que diabos é esse lugar? Um navio gigantesco cheio de canibais?
– O quê? – Ele só poderia estar brincando, mas a expressão horrorizada dele logo a fez adicionar – Oh, não. Não. Eu não quis dizer que eles o comeriam vivo literalmente falando. Eu quis dizer figurativamente, como em uma figura de linguagem. – Serena esperou que ele risse, que batesse no ombro dela de brincadeira e dissesse “sacanagem”. Mas ele não fez isso. Maldição. Ele estava realmente imerso no personagem agora que não estava sendo assediado. Deve ter sido medo de palco.
O pirata percorreu o seu corpo com os olhos aquecidos, observando as coxas nuas por baixo do seu short jeans e se demorou no lugar onde a blusinha floral deixava à mostra um pedaço de barriga. Ele lambeu os lábios, e Serena teve que afastar o olhar e respirar fundo. Por que não estava vestido calça e casaco? Que se danasse a temperatura de 35ºC.
O corredor era estreito, e o homem tomava a maior parte do espaço. O quarto dela era perto da proa do convés superior, e a vontade de fugir começou a ter certo apelo. Um homem nunca a olhara com tanta fome antes, e ela não sabia como agir como se não tivesse notado. Com certeza não iria encorajá-lo e fazer com que ele esperasse por algo que ela não estava disposta a dar. Bem, estar disposta não era bem a questão. Na verdade, a questão era a ação. O que a deixava com nenhuma outra opção que não fosse recuar. Era mais seguro. Nada de passar vergonha ou de ter conversas embaraçosas.
Conhecer pessoas novas sempre foi difícil para ela, especialmente quando essas pessoas eram homens. Todas as coisas engraçadas que ela diria em uma conversa normal não aconteceriam até que ela repassasse toda a conversa em sua mente mais tarde. Assim que as conhecia por mais tempo, as coisas ficavam mais fáceis, mas ela era péssima em flertar e sequer podia fazer contato visual por muito tempo, a menos que estivesse louca da vida. A raiva lhe dava mais coragem do que normalmente possuía. Uma bênção e uma maldição, a depender da circunstância.
– Rapariga – disse o capitão Morgan, dando um olhar corajoso e persistente demais para o seu peito —, eu morri e fui para um veleiro de devassidão como recompensa? Essa é a vida após a morte?
Serena cuspiu marimbondo. Ele está usando falas de pirata? Sério? Além do mais, ele estava dando mole para ela? De todos as respostas em que pôde pensar, o melhor que veio a sua mente foi:
– Você me chamou de rapariga? – Quando ele se limitou a piscar como resposta, ela suspirou, fazendo o possível com o que tinha, por pior que fosse. – É claro que chamou. – Movimentando a mão para fazer xô para ele, ela adicionou – Vá fazer suas devassidões em outro lugar. Eu estou indo para a cama. Tente se resolver antes de voltar lá para aquela multidão. Boa noite.
Ela deu as costas para ele e deu no pé, talvez um pouco rápido demais. Becky Ann ficaria de cara com o que ela fez. Quando Serena dissesse a ela que o ator pirata meio que deu em cima dela e ela fugiu intocada, a amiga lhe daria um sacode. Ela sabia que Serena era um horror na arte da pegação, mas ela não a teria deixado fugir como uma corça assustada.
Na verdade, provavelmente foi um presente do céu Becky Ann ter ficado doente porque ela os teria trancado no armário de limpeza até se convencer de que eles tinham feito vários dribles e marcado ao menos um gol. A melhor amiga era extremamente à vontade com a sexualidade. E no que dizia respeito ao seu método de formar casais, era à vontade demais. Era exaustivo se esquivar das ideias da amiga sobre diversão quando ela, com um drinque na mão e um sorriso maligno nos lábios, mandava Serena passear.
Enquanto enfiava a mão no bolso procurando pelo cartão, ela olhou para trás e soltou um gritinho. O capitão Morgan a seguira e esperava a alguns metros de distância com um brilho quase que ansioso nos olhos. Ele ergueu uma sobrancelha dourada e cruzou os braços quando ela não conseguiu destrancar a porta.
– Abra a porta da cabine, rapariga. Estou cansado, mas tenho estamina o bastante para cuidar de você primeiro.
O significado das palavras dele foi como um soco no estômago, liberando todo o frio que estava lá dentro. Tudo aquilo fez as suas partes entrarem em alerta máximo: preparando, esperando, ansiando. Ah, merda. Ela fodeu com tudo.
– Mas que diabos? – aquilo era ela, fodendo com as coisas. – Você não vai entrar. Esse é o meu quarto. Vá procurar o seu. – Ele estava sendo assustador, não estava? Então por que a respiração dela ficou profunda, quase como se ela estivesse pensando em permitir que ele entrasse no quarto?
Aquilo jamais aconteceria. Não poderia seduzir um homem nem se tentasse. Faltava confiança, ela se sentiria boba… e muito, muito ansiosa.
O pirata balançou a cabeça.
– Eu vou ficar com você até aportarmos. Talvez você possa resolver o mistério desse… navio. – Ele fez um gesto abrangendo o ambiente.
Aquilo era de verdade?
– Hum, que tal… não. – Mistério? Que mistério? Sua mente e o seu corpo a puxavam para direções opostas. Ao menos sua mente tinha bom senso, e estava dizendo para ela se fechar no quarto e trancar a porta. Esse homem é perigoso, mas não por ele ser um pirata falsificado. Estava atraída por ele, e ela não iria se envolver com ninguém naquele cruzeiro, não importa o que Becky Ann dissesse.
O pirata pareceu pensar naquilo, coçou a barba no queixo, mostrando os múltiplos anéis de prata que brilhavam à luz. Ambas as orelhas tinham argolinhas de ouro. Nunca tinha sido do tipo que tinha uma quedinha por homens com piercing, mas eles caíam bem nele.
– Eu gosto da perseguição, amor. Posso esperar a noite toda. – O sorriso espertalhão implicava que ele estava bem ciente de que ela o desejava. Uma pena, para ele, que aquilo não tinha a mínimo de importância.
– Não estou brincando de nada. – A voz dela tinha soado tão rouca para ele quanto soou aos seus ouvidos?
Ele invadiu o seu espaço pessoal, colocando a mão sobre a porta e enjaulando-a com o corpo. Serena prendeu a respiração e ele ergueu a outra mão para afastar o cabelo do seu rosto com carícias suaves. Ela tremeu quando ele murmurou:
– Você está. – As mãos dele eram grandes, calejadas e quentes. Como seria a sensação delas sobre o seu corpo nu?
Não, não iria pensar naquilo.
O cheiro de mar, suor, rum temperado e alguma coisa que não reconheceu tomou os seus sentidos, e ela quase podia acreditar que ele tinha saído de um navio pirata para tomar tudo e qualquer coisa que ele quisesse… dela. Ela franziu o nariz.
– Que cheiro é esse?
Surpreso, o capitão Morgan recuou e levou a lapela do casaco marrom escuro ao nariz e deu uma fungada.
– Pólvora.
Imagens dele atirando, com a pistola que estava enfiada no cinto da espada, em piratas vis penetraram em seus pensamentos. Canhões retumbando, madeira quebrando. Pancadas de água enquanto corpos caíam sobre as laterais de um navio alto ostentando o sinistro Jolly Roger preto na bandeira. Coisas que não acharia atrativas, mas que de alguma forma, achava. Filmes demais.
– Certo. Eu não ouvi pistolas disparando. Só os fogos de artifício. Podemos deixar a encenação de pirata de lado, capitão Morgan? Você pode sair do personagem quando estiver perto de mim. Não vou contar para o seu chefe. – Talvez ele fosse ter problemas caso saísse do personagem assim como acontece nos parques temáticos.
O pirata franziu o cenho, toda a provocação tinha sumido de seus traços.
– Eu me chamo Christophe Jones, e eu não sou capitão. Não houve explosões porque o seu veleiro não estava por perto quando o meu afundou sob o ataque. – Christophe cruzou os braços novamente e murmurou – Nem tenho certeza de como vim parar a bordo desse… – Ele olhou em volta, desconfiado. – … mamute. – De certa forma, ele parecia um pouco aflito. Por causa do tamanho do navio?
A tripulação o trouxe a bordo e o colocou para trabalhar como pirata para pagar a passagem dele depois de ele ter sobrevivido a um naufrágio? Aquilo era absurdo. Ela deveria ligar para o sindicato dos trabalhadores quando aportassem.
– Sinto muito pelo acontecido – respondeu Serena, sem saber o que mais dizer sobre os comentários estranhos. – Mas eu ainda não vou deixar que você entre no meu quarto.
Cristophe, mais uma vez, deu um sorriso pretencioso, colocando mãos possessivas em seus quadris e puxando-a para perto. Apesar do seu desconforto por ser objeto da atenção dele, o desejo se acendeu por todo o seu corpo. Essa onda de excitação e luxúria era paixão? Tivera intimidade com os namorados no passado, mas de alguma forma aquilo era diferente. Por que ele estava vestido como um pirata? Não, nunca curtiu muito desse negócio de faz de conta. Não conseguia apontar o que o fazia ser tão… interessante.
– Eu vou fazer valer a pena. – Ele levou uma mão à algibeira presa ao cinto e tirou de lá duas moedas com caras de velha. – Pago adiantado.
Seu cérebro não compreendeu o propósito.
– Pagamento pelo quê?
Christophe levou os lábios aos dela com força, quase como se ele acreditasse que nunca mais voltaria a beijar uma mulher e quisesse aproveitar a experiência ao máximo. A língua dele tinha gosto de rum caribenho e a cabeça dela nadou. Ele trilhou beijos por sua bochecha e ela o puxou para mais perto, não acreditando no que estava acontecendo e desejando que nunca terminasse. Daquela forma ela não teria que recuar e quebrar o encanto. Então ele sussurrou:
– Pelos seus serviços, é claro.