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CAPÍTULO DOIS

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A bela rapariga seminua se afastou bruscamente dos seus braços e lhe deu um tapa na cara. A cabeça de Christophe virou para o lado e a dor formigou marcando a sua pele. Momentaneamente atordoado, ele levou a mão à bochecha e a encarou. Uma mulher jamais tinha lhe dado um tapa.

– Oh, não me olhe assim. Babaca machista. – Ela atirou as moedas nele e elas bateram no seu peito antes de caírem no chão enquanto ela destrancava a porta com um quadrado branco estranho e a batia às suas costas. Franzindo o cenho para aquela chave ridícula que ela usava, ouviu enquanto ela passava o trinco. Christophe esfregou a bochecha golpeada, já que não podia fazer nada além de encarar a porta que a separava dele.

Que peculiar. Era óbvio, pelo estado de nudez da mulher lá dentro, que aquele navio era algum tipo de bordel onde as mulheres tinham passe-livre com os seus filhos bastardos. Ele também tinha visto homens, obviamente clientes ou tripulação. Onde mais ele poderia estar? A outra explicação é que ele tinha morrido e agora estava em um inferno cheio de mulheres parcialmente vestidas que não o queriam em suas camas.

Não, as mulheres no convés o desejaram. A que ele desejava, não. Antes de ser forçado a se juntar à pirataria, as mulheres o adoravam. Não teve muito tempo para cortejar ou levar alguém para a cama no último ano, mas nas poucas ocasiões que fora um bordel, nunca tinha visto os falsos sorrisos relutantes que os outros homens normalmente recebiam. Ele não era um ogro horrendo que maltratava mulheres ou que ignorava os desejos delas, então o que tinha feito de errado naquela noite?

Christophe olhou ao redor e então estremeceu. Em um momento tinha caído em um redemoinho, e no seguinte se viu deitado no convés de um veleiro enorme, seco como um osso, com pessoas demais à sua volta, tochas sem fogo mais brilhantes que qualquer chama, e roupas e frases estranhas que o deixavam confuso. Ele tinha sido bombardeado com perguntas esquisitas e disparos luminosos de luz e mulheres animadas demais vestidas de forma semelhantes à sua tímida sedutora. Nada fazia sentido, mesmo quando se firmou no convés. Então ela colocou a mão nele.

O coração dele saltou uma batida no minuto em que reparou na beleza dela. O cabelo castanho-escuro emoldurava o rosto em formato de coração com os lábios mais beijáveis nos quais já tinha posto os olhos. O caos em volta deles tinha diminuído, borrando-se até virar nada. Tudo o que parecia errado naquele navio tinha fugido para o seu subconsciente e só ela pareceu ser importante. Conhecê-la, prová-la… poderia se preocupar com suas estranhas circunstâncias outra hora, tinha ficado tão confuso, tão afoito, inferno, ele ainda estava. Talvez tivesse se enganado quanto à profissão dela, e a tinha ofendido por manchar a reputação dela.

Ele sequer sabia o nome dela.

Erguendo a mão, ele a colocou na porta, pensando em chamá-la para se desculpar por qualquer ofensa que ele, inadvertidamente, causou. Talvez tivesse sido audaz demais. A julgar pela reação e a linguagem corporal dela, ela estava nervosa, mas tinha sido afetada e não lhe faltou desejo.

Aquilo o deixava com um dilema, já que ele não conhecia ninguém a bordo, exceto ela. Sem ter outro lugar para ir, procurar pelo capitão seria seu próximo caminho para obter informação, mas como explicaria sua aparência? Como convenceria o homem de que não queria causar nenhum mal? Ele pegou as moedas e memorizou os números ao lado da porta da mulher. Ela o confundia, e Christophe gostava de resolver uma charada. Ele se desculparia pelo erro de julgamento e ganharia o carinho dela, ao menos pelo resto da viagem.

– Senhor, você não é membro do staff. – Atrás dele, um homem em um uniforme branco imaculado o examinava da cabeça aos pés. – Terei que pedir que o senhor tire a fantasia e pare de fingir que trabalha para a companhia de cruzeiro. – Ele não parecia ameaçador, mas a voz soou autoritária. – Essa pistola é de verdade? – O homem se aproximou. – Preciso que o senhor me acompanhe.

Christophe olhou mais uma vez para a porta fechada e deu de ombros. Não era como se ele tivesse algo melhor para fazer, e o homem parecia preocupado, justamente por encontrar um homem estranho e armado que não deveria estar ali, mas não era hostil, o que lhe surpreendeu. A arma não ter sido tomada dele só podia significar duas coisas: o navio não se deparava com violência normalmente ou nunca, ou eles eram crédulos demais. Precisando conseguir algumas respostas, Christophe fez sinal para ele ir na frente e o seguiu.

Uma sensação incômoda na nuca o tentou a olhar para trás uma última vez. A rapariga estava parada na porta, mas ela recuou no momento em que seus olhos se conectaram. Ele deu um sorriso largo.

Não tinha acabado com ela. Não mesmo.


Serena logo fechou a porta e a trancou uma segunda vez antes de se apoiar nela e fechar os olhos com força. Ele pensou que ela fosse uma prostituta! O cara tentou pagá-la com moedas velhas para fazer sexo. Como se sequer fosse digna de dinheiro de verdade? Talvez ele estivesse brincando, ainda no personagem. Sacudiu a cabeça. Ele a tocou como se esperasse que ela caísse naquela cantada barata.

Aquele beijo. Gemeu, confortável na solidão do seu quarto, sem poder ser criticada por ninguém. Serena levou a ponta dos dedos aos lábios e podia sentir a memória dos dele ali, a maciez, o calor. A aspereza da barba por fazer em contato com o seu queixo. Arrgh. Seu corpo tinha ficado aceso até que ele arruinou tudo chamando-a de puta. Talvez o famoso balde de gelo tivesse sido uma coisa boa. Com certeza foi. Não o conhecia e não tinha desejo de ir para a cama com alguém que acabou de conhecer.

O toque musical penetrou no silêncio e ela deu um salto. Tirando o celular do bolso de trás, esperou que a ligação conectada pelo wi-fi do navio funcionasse direito, já que o parelho não tinha sinal da operadora. Era horrível na melhor das hipóteses, mas era ótimo ter o serviço. Bem-vinda ao século XXI. Ao atender, Serena sorriu de alívio ao ouvir o quanto a voz da amiga estava boa.

– Sinto muito por ter perdido o seu aniversário! – A voz de Becky Ann a cumprimentou. – Já estive em barcos antes. Talvez eu não estivesse bêbada o bastante. Lembre-me de ficar bêbada na ilha para a viagem de volta. Aí sim eu ficarei bem.

Ficou feliz por ter notícias da amiga. Ela a visitara várias vezes durante o dia, mas o quarto ficava solitário sem ela.

– Tudo bem. Estou feliz por você estar se sentindo melhor.

Becky Ann continuou a falar.

– Mal posso esperar até atracar nas Bermudas amanhã. Vou aproveitar ao máximo a terra firme enquanto eu posso. Uma pena não termos mais um dia em Nassau. – Ela mudou de assunto, abruptamente. – Por favor, diga que você ao menos conversou com algum cara enquanto eu estava fora de serviço. Não me diga que se trancou no quarto enquanto eu estava presa nesse lugar chato.

Ela bufou.

– É claro que conversei. – Verdade seja dita, Christophe foi o único. Becky Ann não precisava saber desse pequeno detalhe. – Eu estava com medo demais de ser jogada pela amurada caso você me pegasse escondida no quarto. – Como eu estou agora.

– E por que eu estou com a sensação de que você está dormindo? – Becky Ann arfou. – Não foi com o bartender, foi? Isso é trapaça. Se eles estão trabalhando para o cruzeiro, não conta. Você deveria se envergonhar, mocinha. Não me importo se você já tem vinte e oito anos, eu vou te dar uns tapas na bunda.

Serena não tinha nenhuma sombra de dúvida de que Becky Ann ia levar aquela ameaça a cabo. Uma vez a amiga a avisou que se ela não parasse de usar só calça jeans e blusas grandes demais quando saísse, que ela iria lhe fazer cócegas até que ela fizesse xixi nas calças. Então, em uma tarde, depois de passar no mercadinho, Serena, que estava usando roupas confortáveis, foi para a casa, e acabou sendo emboscada assim que abriu a porta. Ela não tinha feito xixi nas calças, por pouco. Foi igual a um foguete para o banheiro.

– Era um cara fantasiado de pirata lá no convés. Suponho que ele trabalhava para o navio. – Não tinha ouvido o que o cara falou para ele lá no corredor, mas presumiu que ele tinha se encrencado por abandonar a posição. Bem feito, mesmo tendo sido ela quem o tirou de lá.

– Serena! – gemeu Becky Ann. – Você precisa conversar com homens disponíveis, não com os que são pagos para te ajudar.

A lembrança do mal entendido no corredor a fez se encolher. Ficou irritada por alguém ter pensado que ela era uma prostituta. Ela mal podia manter contato visual com ele, então como diabos poderia seduzi-lo a troco de dinheiro?

– Pera lá. – A voz de Becky Ann se partiu na última palavra. – Pirata? Ele era gostoso? Ele parecia com o Billy Bones? Charles Vane? Você sabe muito bem que eu amo Black Sails, e é sua obrigação como minha amiga me dar cada detalhezinho. E também dar para ele, já que eu estou sendo feita de refém pela minha própria saúde. Vou ter que viver indiretamente através de você, gata. Vá dar uns pegas nele e me liga. Eu vou esperar.

Revirando os olhos, ela se deitou na cama e descreveu Christophe, deixando de fora o jeito como eles se separaram, esperando que a amiga não percebesse o quanto tinha sido afetada por aquele homem.

– Você. Beijou. O. Cara? Estou tão orgulhosa! – Dava para perceber só pela voz que ela estava pegando no seu pé.

– Hum… não fique. Ele é um idiota, e não vai voltar a acontecer. – Infelizmente, o corpo não estava concordando com a mente. E ela se inquietou, precisando parar de imaginar as mãos dele, os lábios, ou os olhos azuis tão fixos nela e prometendo coisas sujas sobre as quais só um pirata poderia saber tanto.

Um suspiro exasperado veio do outro lado da linha.

– Você nunca mais o verá depois que voltarmos. É seu aniversário, e essa aventura não vai terminar em casamento ou em bebês, caso você use camisinha. Vá se divertir e depois dê um perdido nele. Parando para pensar, essa coisa de brincar de pirata é excitante pra caralho. Você pode pedir para ele te amarrar e te ameaçar a andar pela prancha caso você se negue a entregar os espólios.

Aquilo nunca iria acontecer. Perturbada, ela pigarreou antes de começar a fantasiar com tudo o que Becky Ann tinha dito.

Serena não era extrovertida, e de jeito nenhum usaria alguém para fazer sexo e então agir como se nada tivesse acontecido. Não estava no seu sangue. Gastar tanta energia com um cara com quem queria ter intimidade significava que ela se jogaria de cabeça, e as primeiras impressões não foram muito favoráveis para Christophe. Ela sequer sabia por que estava deixando Becky Ann colocar essas ideias na sua cabeça.

Ele é muito atraente. Se não fosse aquele fiasco…

Para!

Alguém falou no fundo da ligação e Becky Ann disse que precisava desligar. Depois de prometer esperar por ela para desembarcarem na minha seguinte, Serena desligou. Momentos mais tarde, brincando com os dedões e tendo pensamentos indecentes sobre o homem que a insultara, ela gemeu e rolou para fora da cama.

Christophe era o culpado por ela estar inquieta e sem poder dormir mesmo se tentasse. Não tinha trazido um livro porque acreditava que Becky Ann estaria com ela durante a viagem toda, e elas se divertiriam muito para que tivesse tempo de ler.

O relógio mostrava que faltavam quinze minutos para a uma da manhã. Os bares estariam abertos, e uma boa taça enorme de algo feito com rum iria relaxá-la o bastante para que dormisse. Não estava desejando rum só porque ainda sentia o gosto da bebida na língua depois de ter beijado Christophe. Era só que gostava de rum, e aquele era um cruzeiro pelo Caribe, afinal de contas.

Serena pegou a chave, abriu a porta e foi para o corredor. Não havia ninguém lá. Só para garantir, seguiu pelo lado oposto do que Christophe tinha ido e seguiu para o bar da piscina. Ainda tinha vários drinques de crédito na conta do cruzeiro e planejava fazer um estrago antes de ir para a cama. Sozinha.


Seu companheiro uniformizado não falou muito, mas Christophe achou bom. Sem saber qual era a patente do homem, observou a parte de trás da cabeça dele. O cabelo escuro era curto, e o uniforme muito branco contrastava com o tom mais escuro da pele. O uniforme era bem diferente de qualquer um que ele já tinha visto, e, em vez de botas, ele usava um calçado mais simples, e branco. Nenhuma arma estava a vista, mas uma estranha caixa preta estava presa na camisa dele.

O homem irradiava autoridade, no entanto, e foi isso o que deteve Christophe. Tinha certeza de que não estava em um navio que pertencesse às colônias ou à Inglaterra, pois nada parecia familiar. Mas até descobrir onde estava e onde pretendiam aportar, não presumiria nada. Não depois do que aconteceu com a rapariga mais cedo. Suas circunstâncias viriam à luz em algum momento.

Era o que esperava.

Uma porta se abriu e a cabeça de uma mulher mais velha com a pele escura e cabelo grisalho apareceu.

– Josiah Baker, eu não disse que estava te esperando para… – a voz dela foi se apagando e ela estudou Christophe da cabeça aos pés. – Quem é esse? – Ela devia ser a mãe de Josiah. Era difícil saber se eles eram parecidos, já que a idade tinha mascarado as feições dela.

O homem colocou a mão no ombro da senhora enquanto ela se atrapalhava no corredor segurando a bengala com força na mão esquerda, um anel de diamante no dedo anelar. Com certeza não era um navio das colônias. Ele suspirou aliviado por causa da evidência da relação deles. Suspeitava que o trabalho de Josiah no navio era pago, como qualquer trabalho deveria ser. Aqueles que trabalhavam como criados mereciam salário e também o privilégio de poder dizer que a vida era deles. Durante o breve tempo que passou nas colônias, aquele não tinha sido o caso, suspeitava que o que acabou o colocando em um navio pirata sob servidão forçada foram os discursos que fez contra a escravidão em mais de uma ocasião.

– Mãe, não posso sentar e conversar contigo antes de o meu turno acabar. Ainda faltam vinte minutos. – Josiah não tinha o sotaque forte como o da mãe, mas eles tinham uma leve semelhança em seus traços. Com base nos ossos malares, a mãe dele deve ter sido muito bonita quando jovem.

Christophe fez uma mesura.

– Christophe Jones, senhora. É um prazer. – Ele deu uma piscadinha para ela enquanto se punha ereto, e Josiah fez ainda mais careta. A Sra. Baker semicerrou os olhos e se aproximou. Ela levou as duas mãos ao rosto dele e moveu, gentilmente, o queixo dele para lá e para cá. Ela arfou e deu um passo para trás.

– Mãe! – Josiah passou um braço em volta dos ombros dela. – A senhora está bem?

Mas ela não deu atenção ao filho. Ela olhava para Christophe e o assombro impregnava a sua voz.

– Sua aura está errada. Assim como nas histórias, mas… eu nunca acreditei muito nelas. Esse não é o seu tempo, é?

Ele riu, mas os outros dois olharam para ele como se ele tivesse interrompido o funeral de alguém.

– A senhora está falando sério? – Sobre ler auras e não ser a época dele? Loucura. Embora… ele tinha mesmo sido arrastado para uma nova terra, mas só que ele estava no mar, e viagens no tempo não eram uma possibilidade. – Isso é absurdo. – Seu sotaque adaptado desapareceu. Ele era da Inglaterra, originalmente, mas usava um pouco de entonação caribenha para que pudesse se encaixar melhor a bordo do Calypso. Continuou usando-o naquele navio estranho, maior do que qualquer coisa que já tinha visto ou sabido que existia, porque tinha se acostumado com ele depois de um tempo. De alguma forma, não achava que precisava escondê-lo por mais tempo. Não tinha certeza do porquê.

A mulher mais velha deu um sorriso cálido.

– Alguma coisa aqui faz sentido para você? A eletricidade, por exemplo?

– O que é… eletricidade? – A palavra estrangeira soou estranha em seus lábios.

Josiah abriu a boca e a mãe bateu no joelho dele com a bengala.

– Cale-se. Você não vê que esse homem não faz ideia de onde ou quando ele está? – Ela apontou para as luzes sem chama. Christophe tinha parado de prestar atenção nelas, pois elas o deixavam muito confuso, assim como a estrutura do navio, e as roupas, e o palavreado, e todo o resto. – Eletricidade é uma fonte de energia que usamos para criar luz, ou para cozinhar, ou aquecer a água do banho. Entre outras coisas.

– A senhora está falando como se fosse doida – disse Josiah entredentes, inclinando-se para esfregar o joelho.

Christophe queria concordar com ele. Tudo aquilo soava totalmente insano. Seu primeiro impulso foi rebater o que ela quis dizer. Poderia o vapor criar o efeito da iluminação sem uma chama? Ainda assim, quanto mais pensava nas luzes, mais temia que aquela fosse uma substância misteriosa que ele não entendia. Um cordão de luzinhas não muito maiores que vagalumes decoravam o convés superior e ele tinha ficado impressionado por elas não piscarem ou voarem como os insetos. Assim que a bela mulher o distraíra, ele foi capaz de se concentrar nela e não no pânico causado pelos arredores. Agora, sem ela, conseguia se concentrar e tudo voltou a ser real demais.

A eletricidade, como a Sra. Baker tinha chamado, estava lá na frente dele, por todo o navio. Um navio que era grande demais e feito de materiais com os quais navios não eram feitos. Onde estava a madeira? Alguma coisa era de aço, como a amurada, e não tinha um mastro ou velas no convés. Era como se eles estivessem em uma armadura da Idade das Trevas, mas com certeza aquilo afundaria. Armaduras não flutuavam. Temia estar preso em um sonho estranho, mas só que o tapa que a rapariga tinha dado no seu rosto doeu o bastante para assegurar a sua consciência. Ele poderia mesmo estar na época errada como a Sra. Baker tinha sugerido?

Não era possível… ainda assim, ele se ouviu fazendo a pergunta que pensou que seria recebida com bufos e escárnio.

– Que ano é este?

A Sra. Baker bateu na mão do filho quando ele abriu a boca para responder e ela disse:

– Estamos em 2015. – A voz gentil disse aquilo de forma tão suave que ele quase não ouviu. Com certeza ele tinha ouvido errado.

Christophe recuou vários passos e sacudiu a cabeça. Isso é…

– Impossível – sussurrou. Essa mulher estava brincando com os seus temores? Ela achava que ele era tão fácil de enganar?

Qualquer outra explicação faria sentido?

Josiah sorriu depreciativamente, esfregou os olhos com o polegar o indicador.

– Que dia você acha que é? – Então, baixinho, ele adicionou – Isso vai ser interessante.

– Dezoito de junho. – Christophe odiou o tremor na própria voz. Não podia aceitar que aquilo era verdade, mas ele olhou para Josiah quando adicionou – Do ano de nosso Senhor de 1715. – O homem não gostava dele, e o curvar dos lábios e o balanço desdenhoso de cabeça o comprovou. Eu tinha sido sugado pelo oceano e pousei em outra era?

A Sra. Baker se limitou a assentir.

– Três séculos. Exatamente como nas histórias. Sempre em três. – Ela olhou para ele, os olhos castanhos brilhando. – Pobrezinho. Você deve estar tão confuso, tão perdido. – Segurando a bengala com força, ela adicionou – Quero que me conte tudo.

Josiah ergueu a mão para pôr um fim àquela conversa, e então um barulho estranho veio da caixa preta presa à camisa dele. Vozes abafadas se seguiram antes do estouro bizarro de sons entrecortados. Christophe olhou para aquilo boquiaberto.

Definitivamente incomum. Em 1715… Deus, estava pensando mesmo naquilo. Esfregou a testa, verificando se estava febril, mas a pele continuava fresca ao toque. Talvez estivesse tudo acontecendo em sua cabeça.

– Vá fechar o seu turno – disse a Sra. Baker para Josiah quando ele xingou baixinho. – Quero conversar com o nosso amigo.

– Ele está armado – disse Josiah, sério. Apontando para ele como se ele fosse sair matando todo mundo. Christophe não o culpava por querer discutir, e sorriu enquanto eles se debicavam sobre se ele iria ou não matá-la a sangue frio antes de roubar o navio e condenar a todos. Só de eles pensarem que ele, sozinho, seria capaz de roubar um navio desse tamanho, o deixou de ânimo elevado, que voltou a diminuir por causa da confusão do navio em si e sua… eletricidade.

– Ele não vai atirar em mim – disse a Sra. Baker. Ela era algum tipo de bruxa? Cabelo grisalho, encurvada, e a bengala… ela se encaixava no papel, mas havia menos gargalhadas e cânticos do que ele imaginava. – Eu tenho as respostas que ele precisará. – Aquilo era verdade, e ele não atirava em pessoas aleatórias. Normalmente, elas mereciam, ou era questão de vida ou morte.

Josiah puxou a mãe para longe para falar com ela em particular, mas Christophe ainda podia ouvir o que ele dizia.

– Mãe, os contos dos nossos ancestrais foram criados para nos dar lições sobre moral. Para tratarmos todos com respeito, assim como gostaríamos de ser tratados. Que a gente pode ser recompensado de formar inimagináveis, se nossa alma não for contaminada pelo mal. – Josiah se inclinou para que eles se olhassem olho no olho. – Aquele homem não tem a alma pura. Viagem do tempo não existe. Ele está brincando com a senhora. Está tirando vantagem da sua bondade. Olhe para ele, pelo amor de Deus!

Ela examinou Christophe e então meneou a cabeça.

– Como você sabe se a alma dele não é pura? Isso me parece uma suposição, se quiser saber. Ele com certeza parece um pirata de 1715, se alguma vez eu tivesse visto um. Eu aposto uma boa quantia com você de que a arma e a espada são autênticas. Quer apostar? – Ela arqueou a sobrancelha, e Christophe escondeu uma risada por trás de uma tosse fingida. A idade não tinha apagado o fogo dela, nenhum pouco.

– Virou historiadora agora? – Josiah sacudiu a cabeça. – Além do mais, a senhora se lembra do que os nossos ancestrais estavam fazendo em 1715? Se ele estiver falando a verdade, o que não está, por que a senhora iria querer ficar sozinha com ele?

Christophe cruzou as mãos atrás das costas e encontrou o olhar atravessado de Josiah com a cabeça erguida.

– Eu nunca comprei ou possuí um escravo, se é isso o que está sugerindo. – Lá na Inglaterra, a prática não era comum. No máximo, servos podiam ser contratados para pagar um débito ou uma viagem pelo mar, mas era só quando chegaram às colônias que a prática cruel foi apresentada à sua família. Embora o pai tenha conseguido o cargo de governador, o que os fez mudar da Inglaterra, ele não tinha sido capaz de dissuadir os outros da prática bárbara, e a Coroa estava preocupada demais para ouvir qualquer coisa que o pai tinha a falar sobre o problema. Resumindo, o rei Jorge não se importava, contanto que as colônias continuassem leais e pegando os impostos devidamente. A situação não foi tão tranquila quanto ele desejava.

– Isso não existe mais – disse a Sra. Baker, séria, a boca formando uma linha fina. – Tenho certeza de que isso não será um problema.

Sem hesitar, ele respondeu com um sincero “não, senhora”. Nunca gostou da escravidão, e ficou feliz por ela ter acabado. Talvez a senhora até fosse lhe contar o desenrolar dos fatos, mas, ao perguntar, teria que aceitar que ele tinha, mesmo, viajado trezentos anos para o futuro.

– Bom. O respeito ainda é difícil de conseguir, mesmo depois de tanto tempo. Os horrores que os homens podem impor aos outros são aterrorizantes. – Ela alisou uma ruga na longa saia preta, modesta comparada com o que as mulheres mais novas a bordo daquele navio vestiam, mas muito diferente dos vestidos que tinha crescido vendo as mulheres usarem. – Eu sei que você é um homem decente, está na sua aura, e você não olhou nenhuma vez para mim ou para Josiah como se estivéssemos passando de qualquer tipo de limite. Mas notei um momento de incerteza quando você olhou para isso aqui. – Ela ergueu a mão com o anel de diamante.

– Ele deve ter pensado que a senhora o roubou. – Josiah passou um braço protetor em volta da mãe. – Homens daquele tempo teriam pensado.

Revirando os olhos, Christophe apontou para o anel.

– Se uma pessoa de uma classe inferior tivesse roubado algo assim, ela não teria a coragem de usá-lo à vista de todo mundo. Pensei que fosse um símbolo de status, confirmando em minha mente que eu não estava no navio de alguém que comete as atrocidades das quais você pensa que sou capaz. – Ele olhou para a Sra. Baker. – Entenderei, no entanto, se a senhora quiser seguir seu rumo e se me considerar culpado por associação.

A Sra. Baker meneou a cabeça e deu um tapinha no rosto de Josiah.

– Meu filho está sendo superprotetor, já que meu marido ficou em casa. Estou viajando para Nassau para visitar uns parentes, é bom ter um filho que trabalha em uma companhia de cruzeiro e que pode conseguir descontos para a mãe. – Ela estreitou os olhos para ele e então adicionou – As mulheres também têm direitos iguais agora. Você acha que pode lidar com uma mulher dizendo o que deve fazer, talvez até mesmo uma mulher de cor como eu, sem que seu orgulho seja ferido? – O fogo voltou para o espírito dela. Christophe gostou daquela mulher.

Soltando uma risada, ele disse:

– Eu tinha uma mãe, uma preceptora e duas irmãs. Cresci com mulheres me dizendo o que fazer. – Embora ele entendesse por que ela tinha trazido aquele assunto à tona. Os homens do seu tempo estavam acostumados a terem todo o controle. Tudo começava a soar mais real a cada vez que pensava por aquele ângulo.

Josiah abriu a boca como se quisesse continuar argumentando com a mãe quanto a associação com ele, mas a caixa preta soltou mais alguns ruídos, e a Sra. Baker abriu a porta. Xingando baixinho, Josiah atirou:

– Vou voltar daqui a pouco. Desrespeite a minha mãe e nós teremos um problema sério. – Com aquilo, ele deu meia-volta e saiu pisando duro pelo corredor.

Ele fez sinal para ela entrar antes dele. Christophe pode ter se adaptado à vida de pirata, mas não tinha esquecido de como ser um cavalheiro. Na maioria das vezes. Ele se encolheu, lembrando-se do ultraje no rosto da mulher quando ele se ofereceu para pagar pelos serviços dela. Cristo, ele tinha sido um idiota pretensioso.

Assim que entrou, Christophe olhou ao redor da pequena cabine para um. Parecia mais com um quarto de pousada do que com uma cabine de barco. Uma pousada muito elegante que não existia em 1715. A mobília estava pregada. O puro luxo dos lençóis, das pinturas e da mobília foi chocante, tudo parecia tão limpo e intrincado! A janela de um dos lados ia do chão ao teto, e o guarda-corpo do outro lado dava a entender que ela se abria como uma porta para que se pudesse desfrutar da vista do oceano. Tão diferente de quaisquer alojamentos ou porões de navio em que ele já viajou. Precisou manter as mãos cruzadas para se impedir de sair olhando e tocando todas as superfícies.

– Há quanto tempo você tem estado… navegando? – Ela escolheu as palavras com cuidado.

– Não muito. – Por alguma razão, ele achou que fosse importante justificar a sua aparência. Nada de uniforme militar, mas armado. Muito parecido com um pirata da sua época. – Eu fui forçado à pirataria há mais ou menos um ano. Ganhei o respeito dos meus homens e fui subindo de posição. E escapei no momento em que o nosso navio foi atacado.

Ela fez que sim e se sentou no banco construído na parede ao lado da janela.

– Ouvi falar dessa época. Eles foram terríveis, e você fez o que tinha que fazer. – Ela começou a brincar com a barra da blusa azul brilhante, mas não deixou de olhar para ele, sentando-se ereta, como se tentasse decifrar o tipo de pessoa que ele era. Como se a alma dele fosse tão digna quanto as histórias sugeriam.

A Sra. Baker se acomodou mais no assento e tirou os chinelos. As unhas dos pés estavam pintadas de vermelho. Ela mexeu os dedos quando o viu olhando. Embora ela fosse velha, a mulher tinha um sorriso lindo.

– Uma pena eu não ser uns quarenta anos mais jovem. – A alegria coloria a voz dela. – Sempre sonhei em viajar no tempo ou conhecer alguém que tenha viajado. Eu teria arrasado com o seu mundo, jovem. Você não ia saber o que te atingiu.

Ele não era de corar fácil, mas ouvir uma senhora dizendo aquilo para ele quase levou o rubor às suas bochechas. Como respondia a uma coisa assim?

A senhora riu.

– Ah, bem. A maior parte da minha família se mudou de Nassau para o Mississippi há umas duas gerações e trouxe com eles histórias de outras pessoas que diziam ter visto viajantes do tempo. As histórias eram passadas de mãe para filha, histórias de acontecimentos misteriosos que aconteciam no Triângulo do Diabo.

Christophe tremeu e olhou para a enorme janela. Nunca tinha acreditado nas superstições que rodeavam aquela misteriosa parte do Atlântico. Veleiros inteiros nunca mais foram vistos, nem histórias eram contadas sobre eles, e a julgar pelo o que aconteceu com o Calypso, ele imaginou que teriam sido vítimas de pirataria ou dos perigos da intempérie. Uma tempestade de arrasar com um navio nem sempre chegava à terra, e muitas vezes os detritos do naufrágio eram levados para longe ou os piratas atacavam antes de sequer serem vistos.

– Diz a lenda – prosseguiu a Sra. Baker, e ela olhou por cima do ombro dele. – Que todo mundo tem uma alma-gêmea, e a cada trezentos anos essas almas têm a chance de se encontrar. Às vezes, as almas se prendem ao futuro, ou vice-versa. – Ela ergueu as palmas na frente dela para demonstrar. – Mas elas precisam estar passando sobre um vórtice no mesmo lugar, no mesmo dia. – Então ela juntou as mãos.

– O redemoinho – saiu em um sussurro. O vívido espiral de água azul-esverdeada que sugou o bote para as profundezas. Ele não ter morrido foi um milagre. Outro arrepio percorreu o seu corpo enquanto ele ficava de costas para a janela. A luz do quarto deixava o vidro muito escuro para ver bem o que estava lá fora, mas o movimento familiar do oceano ainda era o mesmo. Ele poderia muito bem ter se afogado em vez de terminar aqui.

– O vórtice apareceu para você na forma de um redemoinho? Imagino que tenha sido muito assustador.

Ele tossiu uma risada.

– Foi… não agradável.

A Sra. Baker sorriu.

– E você, por acaso, se encontrou com alguém por quem sentiu uma atração instantânea? – Ela estalou os dedos. – Uma compulsão para estar com ela, mesmo sabendo que deveria estar imaginando como sobreviverá nessa nova época?

Uma imagem da rapariga de mais cedo veio à sua mente e ele suspirou. Ela o enfeitiçara através do redemoinho e então o expulsou no momento em que ele demonstrou desejo? Claro, ele a tinha insultado, mas ela estava assustadiça. Ele queria ver as defesas dela ruírem enquanto se entregava a ele. Ver a apreensão dar lugar à paixão. Por alguma razão insondável, ansiava ganhar a confiança dela, como se fosse o maior tesouro de toda a terra e mares.

– Ah – a Sra. Baker levou as mãos às bochechas. – Encontrou. – Então, como se o que quer que ela tivesse visto na sua expressão tivesse resolvido o problema que apontara, a senhora usou a bengala para voltar a ficar de pé. – Josiah vai voltar logo, e nós não temos tempo a perder. Teremos dois dias nas Bermudas antes de voltarmos para terra e sua alma-gêmea ir embora para longe de você. Vamos limpá-lo, alimentá-lo e ver o que podemos fazer quanto a sua documentação, para que, assim, você possa encantá-la.

Documentação? Se ele tivesse chegado a uma nova época, todos os traços da sua identidade teriam se perdido. Talvez o afogamento tivesse sido uma melhor opção.

Se não fosse por ela. Sua beleza de cabelos escuros.

Como se pegando a deixa, uma batida na porta sinalizou a chegada de Josiah antes de ele abrir a porta e verificar que Christophe não tinha feito nada vil com a mãe.

– Foi lhe dada uma oportunidade que muitos de nós jamais teremos – disse a Sra. Baker, como se eles não tivessem sido interrompidos. – Então não a deixe escapar, Christophe Jones. Como meu filho disse, os contos normalmente tratam de recompensas para aqueles que são bons e honestos. Parece que você estava no meio do Triângulo das Bermudas, na hora certa para receber essa chance.

No Olho Do Furacão

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