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CAPÍTULO 5
ОглавлениеNo dia seguinte, levantei bem cedo e comecei a arrumar meu escritório. Por volta das sete e meia, percebi que o Distrito estava começando a ganhar vida. As salas se enchiam, alguém tomava um café na máquina, outros brincavam e trocavam piadas antes de se dedicarem ao trabalho. Era uma atmosfera que me lembrava meus anos de serviço na Sede da Polícia em Ancona. Comecei a andar pelos corredores e cumprimentar a cada um que encontrava. Todos eram muito afáveis e retribuíam minha saudação com um sorriso ou um aperto de mão amigável. Bem, meu novo local de trabalho não era ruim! Reconheci o superintendente com quem havia falado na manhã anterior em Triora.
‒ Bom dia, superintendente…?
‒ D’Aloia, Doutora, meu nome é Walter D’Aloia, às suas ordens!
‒ Bem, D’Aloia, você poderia me arranjar um daqueles quadros brancos e alguns marcadores grandes de várias cores? Preciso fazer um balanço da investigação e desenhar um esquema me ajuda a não perder nada de vista.
‒ Em alguns minutos consigo tudo o que pediu.
‒ Obrigada. Espero todos vocês às oito em ponto para as apresentações necessárias.
Na hora marcada, cerca de vinte pessoas, incluindo quatro mulheres, foram alinhadas à minha frente, enquanto Mauro ficou ao meu lado e as apresentou a mim, listando os nomes, os cargos e as aptidões de cada uma.
‒ Uma excelente equipe! ‒ comentei. ‒ O inspetor Giampieri e eu estaremos bastante ocupados investigando o homicídio de Triora, portanto, no que diz respeito às atividades normais, elas serão coordenadas pelo inspetor Gramaglia, que é o mais graduado entre vocês. Por outro lado, a superintendente Laura Gigli, que é especialista em TI, nos auxiliará. Não creio que o inspetor Giampieri e eu conseguiríamos concluir sozinhos uma investigação que parece tão complexa. Na medida do possível e quando chegar a hora, ainda contarei com a colaboração de todos vocês, portanto, estejam preparados. Agora voltem às suas atividades. Mauro, Laura! Vocês não, permaneçam aqui comigo.
Quando fiquei sozinha com os dois, peguei um marcador e comecei a transformar meu raciocínio em diagramas, que fui escrevendo aos poucos no quadro branco.
‒ Desde ontem temos uma vítima, mas acho que deveríamos partir de vinte anos atrás e tentar entender como e por que algumas pessoas desapareceram em Triora, enquanto outras apareceram. Temos Aurora, de sessenta anos, que, se estivesse viva agora, teria oitenta. Ela partiu para o Nepal com uma garota romena, Larìs Dracu, no final da década de 1980, e todos os vestígios das duas mulheres foram perdidos. Partindo do Aeroporto Internacional de Fiumicino em junho de 1989, não há registros de seu retorno à Itália. Depois de alguns meses, no entanto, apareceu uma garota de vinte anos com o mesmo nome, a Aurora Della Rosa que conhecemos ontem, que se fez passar por suposta neta da bruxa e foi morar na sua casa. A diferença de idade entre as duas poderia nos levar a crer que ela é filha e não neta da velha Aurora, mas alguns no vilarejo chegam a afirmar que a velha e a jovem são a mesma pessoa, porque, na viagem ao Nepal, a bruxa teria encontrado uma maneira de rejuvenescer. A primeira tarefa para você, Laura, é verificar os arquivos de registro de Triora. E chegamos a Larìs Dracu. Desapareceu do nada no Nepal? Retornou à Romênia ou está aqui em Triora? Quem é a morena com sotaque estrangeiro que às vezes acompanha Aurora ao restaurante Da Luigi? Quero uma pesquisa no banco de dados de pessoas desaparecidas, Laura, quero saber tudo o que há para saber sobre Larìs.
Em um canto do grande quadro branco, escrevi em letras maiúsculas “AURORA” e “LARÌS” e fechei os dois nomes em um círculo.
‒ A segunda pessoa desaparecida é Mariella, A Ruiva. Em 1997, ela deixou Abruzzo e veio para Triora, visitou alguns lugares importantes para nossas bruxas, a Fonte das Nozes, a Fonte de Campomavùe, a Rua Atrás da Igreja e o Lago Degnu, entrou na floresta, em uma noite de lua cheia, e desapareceu no ar. Excluindo, a priori, que Satanás a tenha sequestrado, o que aconteceu com ela? Será que ficou escondida por anos na floresta de Triora? Ou foi assassinada e seu corpo escondido em algum lugar? E que relação há com o caminhão incendiado, na mesma noite, por supostos arruaceiros? Se hoje temos uma mulher morta queimada, o mesmo fim pode ter sido reservado, na época, para Mariella, A Ruiva. O assassino, na ocasião, talvez tenha tido tempo e maneira de fazer o cadáver desaparecer! Portanto, outra busca se concentrará nessa Mariella e no caminhão que pegou fogo há doze anos.
Escrevi “MARIELLA” e “CAMINHÃO” em outro canto do quadro e circulei.
‒ No ano 2000, três jornalistas desapareceram no ar, dois homens e uma mulher: Stefano Carrega, Dario Vuoli e Giovanna Borelli. Temos muitos elementos sobre eles e sua história, a julgar pelo conteúdo dessa caixa…
‒ Um momento ‒ Laura me interrompeu. ‒ Sou natural desses lugares, moro em Molini di Triora e conheço bem a história das bruxas que passaram pela Inquisição em 1587. Dois dos sobrenomes que você acabou de mencionar são recorrentes na história das bruxas de Triora. De fato, Stefano Carrega é homônimo do Podestà de Triora na época do julgamento, enquanto Teresa Borelli era uma das cinco bruxas de Ca Botina, as principais sob investigação. Borelli era a bruxa chamada pelos habitantes locais de “Teresa, O Moleque”.
‒ Mais homônimos! Bem, a essa altura, acho que preciso me informar melhor sobre esse julgamento das bruxas. Quem sabe, talvez o hipotético assassino se inspire nessa história!
Escrevi em um terceiro canto do quadro “CARREGA”, “BORELLI” e “VUOLI” dentro de outro círculo.
‒ Há uma versão oficial do julgamento e uma versão transmitida oralmente pelos idosos de Triora, que é bem diferente, mas é muito difícil de interpretar porque é contada apenas no idioma occitano ‒ interveio Laura. ‒ Vou tentar obter as duas versões.
‒ Muito bem, Laura! E chegamos a ontem, o dia em que foi encontrado o cadáver carbonizado de uma mulher, cuja identidade não conhecemos. Teremos que aguardar os resultados da autópsia e as conclusões forenses para começar a pensar sobre isso. Ainda temos poucos elementos.
No último canto do quadro escrevi “VÍTIMA”, circulei também essa última palavra e, depois, no centro do quadro, em letras grandes, incluí o nome da seita, “OAMOLAS ED SOVRES”. Por fim, conectei com setas cada um dos quatro círculos desenhados antes ao nome escrito no centro.
‒ Tudo parece girar em torno desta seita. Precisamos entender o significado desse nome estranho, a quais atividades os adeptos se dedicam e quem está no comando. Em outras palavras, precisamos saber quem é o homem santo, ou guru, dessa seita. Em minha opinião, Aurora Della Rosa está envolvida nisso, e não é pouco. E ela não conta tudo o que sabe, é muito hábil em desviar a conversa e criar álibis confiáveis. Mauro, você acha que o Coruja-de-Igreja pode autorizar uma busca na casa da bruxa?
‒ Ah, você quer dizer o Dr. Leone? Mas, como você o chamou? O Coruja-de-Igreja? Fantástico! Ele é um Magistrado muito exigente e, sem elementos suficientes, nunca autorizará uma busca. Ele é alguém que não gosta de ter problemas.
‒ Bom, então teremos que agir com astúcia, e já tenho algo em mente. E agora vamos ao trabalho. Você, Laura, dedique-se à pesquisa que lhe pedi, e você, Mauro, prepare o carro, vamos voltar a Triora!
‒ Lá se vai minha disciplina militar! ‒ exclamou Mauro. ‒ Lembro-lhe que não iremos a lugar algum antes de passarmos pela Sede da Polícia. Nossas cabeças dependem disso.
‒ Muito bem, vamos torcer para que o Delegado Geral não nos reserve horas na espera. Aguarde por mim lá embaixo no carro, descerei em alguns minutos.
Certamente Mauro pensou que eu iria retocar minha maquiagem, conforme o padrão de vaidade das mulheres, mas não foi o caso. Eu fui me trocar, colocando roupas esportivas confortáveis e tênis. Na verdade, não adiantava voltar para o meio da floresta e caminhar por trilhas nas montanhas e estradas de terra com tailleur e sapatos brilhantes. Depois de cinco minutos, eu estava no carro ao lado de Mauro, que me olhou com espanto.
‒ Você é inacreditável, Caterina! Você quer se apresentar ao Delegado Geral vestida assim?
‒ A roupa não é em função do Delegado Geral, mas da investigação. Você vai ficar me olhando ou vai ligar o maldito carro?
Ele partiu cantando pneus e, graças a costuradas no trânsito, insanos tráfegos na contramão, invasões de faixas preferenciais reservadas a ônibus e táxis, sem nunca ficar abaixo de noventa quilômetros por hora, em quatro minutos e vinte e cinco segundos chegamos à Piazza del Duomo. Com uma inacreditável guinada, obtida com a ajuda do freio de mão, ele escorregou milimetricamente entre outras duas viaturas da Polícia Estadual, em uma das vagas reservadas à Sede da Polícia.
‒ Se não for necessário, peço que evite todas essas cenas! ‒ disse a ele, saindo do carro e tentando me recompor. Minha cabeça girava um pouco, parecia que eu ia cair, mas mantive a calma, apesar de sentir que minhas forças estavam prestes a me abandonar.
Sempre com Mauro como guia, seguimos até a entrada do prédio e pegamos um elevador para o terceiro andar. Depois de caminhar por um longo corredor com piso muito polido, finalmente chegamos ao gabinete do Delegado Geral. O Dr. Perugini nos recebeu imediatamente, e isso me deixou agradavelmente surpresa. Ele era um homem baixo, ligeiramente rechonchudo, com rosto redondo e cabelo bagunçado, quase lembrando o ator americano Denny De Vito. Ele se levantou de sua mesa e apertou minha mão vigorosamente. Em pé diante de mim, notei ainda mais sua baixa estatura. Sua cabeça alcançava mais ou menos a altura do meu ombro, enquanto Mauro, comparado a ele, parecia um gigante. No entanto, ele inspirava simpatia, e mais tarde eu viria a descobrir nele uma inteligência notável e uma excelente capacidade de gestão dos seus funcionários.
Depois de concluir o preâmbulo habitual, ele retornou ao seu lugar atrás da mesa.
‒ Tenho muita confiança em você, Dra. Ruggeri, e sei que não me decepcionará. Colocarei à sua disposição todos os meios que desejar para chegar a uma conclusão dessa investigação. Eu recomendo prioridade máxima. E se você tiver problemas com o Magistrado, não tenha medo de recorrer a mim. Vá agora e me mantenha informado.
De volta ao carro, aconselhei Mauro a dirigir em um ritmo moderado e a parar assim que visse uma loja de ferragens. Tendo identificado o local pretendido, entrei para comprar uma grande tesoura de jardinagem. De fato, minha intenção era chegar a todo custo ao caminhão queimado e vê-lo de perto.
‒ Hoje eu gostaria de examinar minuciosamente a cena do crime, sem pessoas por perto, e depois chegar à carcaça do caminhão de lenha. Será útil dar uma olhada lá dentro, embora, depois de tanto tempo, eu duvide que encontremos algo interessante. Gostaria de visitar também os outros lugares, a outra fonte e o lago, e também voltar à casa de Aurora. Quando estivermos na casa da bruxa, tentarei distraí-la o máximo possível, para que você possa dar uma espiada e, se possível, coletar algumas pistas, não sei, algumas impressões digitais, algum elemento que possa nos ajudar a incriminá-la ou exonerá-la.
‒ Você quer que eu plante algumas escutas?
‒ Não, não neste momento. Para estas interceptações, teríamos que obter a autorização do Magistrado!
Quando chegamos ao local, estacionamos no mesmo lugar do dia anterior e continuamos a pé. Eu queria dar uma boa olhada na grade à qual a vítima havia sido amarrada. As barras foram oxidadas pelas chamas, mas ficou evidente que a partir dali não havia possibilidade de acesso à caverna, que devia ter servido como depósito de lenha. A grade de metal estava fincada no chão e nas paredes de rocha e, dentro da caverna, só se viam detritos incinerados umedecidos pela água utilizada pelos bombeiros.
‒ Nenhum dos nossos tentou entrar aqui! ‒ refleti em voz alta, fazendo Mauro participar do meu raciocínio.
‒ Talvez eles tenham pensado que não havia nada de interessante. Além disso, não há possibilidade de acesso, a não ser serrando essas grossas barras ‒ foi a resposta do meu assistente.
‒ Se isto é uma caverna usada como depósito de lenha, para utilização da residência vizinha, de que adianta não poder entrar lá para pegar lenha? Um primeiro raciocínio poderia sugerir que a caverna não é um fim em si mesma, mas que, de alguma forma, ela se comunica com a casa através de um túnel, por exemplo, uma espécie de passagem secreta. Ou poderia haver outra entrada, talvez escondida entre a vegetação. Você tem uma lanterna, Mauro? Vamos tentar lançar alguma luz lá dentro!
‒ Não é uma lanterna, mas podemos usar a tela do palmtop! Não, não é possível ver o fundo, há muitos detritos.
‒ Droga, mas eu voltarei aqui com o meu cão e tenho certeza de que descobrirei algo interessante. Vamos para o caminhão agora!
Depois de passarmos pela Fonte das Nozes, tomamos a direção que levava à carcaça do veículo e, com a tesoura, começamos a abrir caminho por entre a vegetação. Algumas plantas espinhosas, como amoreiras, rosas silvestres e espinheiros, ainda conseguiram causar arranhões superficiais em meus braços e mãos. De vez em quando, Mauro e eu trocávamos de mãos a pesada ferramenta e, finalmente, depois de uma boa meia hora, chegamos às proximidades do veículo. Era um daqueles pequenos caminhões basculantes usados na década de 1960. No capô, ainda se podia ler a marca, OM, e o modelo, Lupetto, que era identificado por uma inscrição metálica em itálico, fixada obliquamente na parte frontal da carroceria. Tudo o que restou do caminhão foram as partes metálicas oxidadas, em sua maioria cobertas por vegetação trepadeira que se originava do solo abaixo. Tentei abrir a porta do lado do motorista, mas estava trancada. Como o vidro da janela estava completamente ausente, resolvi subir para dar uma olhada no interior. No núcleo metálico do volante, pude notar alguns pedaços de arame.
‒ Dê-me um empurrão, Mauro, quero entrar na cabine.
Senti que estava sendo levantada tão facilmente como um galho e me vi dentro da carcaça. Na verdade, os pedaços de arame presos ao volante poderiam ter sido utilizados na época para imobilizar uma possível vítima dentro do veículo. Notei algo na parte inferior, perto dos pedais, como uma massa de plástico derretido, que tentei desprender com a ajuda de uma pequena faca. Saí da carcaça com as roupas imundas, mas com um troféu nas mãos.
‒ O que é? ‒ perguntou Mauro.
‒ Ainda não sei. Acho que é um material derretido, mas certamente não pertence a um tapete de borracha. Coloque-o em um saco e pediremos à perícia para identificar sua natureza. A ideia de que um crime foi cometido aqui é cada vez mais evidente. A vítima, talvez inconsciente, é amarrada ao volante com arame e, então, o veículo é incendiado. Em seguida, o assassino, ou assassinos, conseguem remover o cadáver e escondê-lo em algum lugar, deixando para trás apenas a carcaça de um velho caminhão devorado pelas chamas.
‒ Portanto, outra execução pelo fogo!
‒ Sim, provavelmente Mariella, A Ruiva, teve uma morte horrível dentro do caminhão, mas quem conduziu a investigação na época foi superficial e não vinculou, ou não quis vincular, o incêndio do caminhão ao desaparecimento da mulher. Vamos voltar à Fonte das Nozes. Quero tentar entender os desenhos ainda visíveis no chão.
Quando chegamos à fonte, matamos a sede e depois tentei interpretar os símbolos desenhados no chão. Pelo que me lembrava das pesquisas que fiz para minha monografia, um pentáculo, desenhado próximo a uma fonte sagrada para os seguidores das seitas, com uma faca ou um instrumento pontiagudo consagrado, sempre indica um local dedicado a um ritual. Dependendo dos desenhos e inscrições utilizados, os ritos podem ser de natureza diversa. Se forem gravados no chão os quatro nomes poderosos pelos quais Deus era chamado na antiguidade, o sacerdote invocará os espíritos e os chamará para pedir ajuda. Às vezes, para agradar aos espíritos e garantir seu favor, pode-se recorrer a sacrifícios, de animais, por exemplo, ou outras vezes, mas mais raramente, de seres humanos. Com o sangue da vítima, escreve-se o pedido aos espíritos invocados, geralmente na forma de metáforas, incompreensíveis para quem não faz parte da seita. No nosso caso, ainda era possível visualizar, no chão, uma das cinco pontas do pentáculo e, ao lado dela, um sinal indicando o símbolo da terra.
‒ O pentagrama é a representação do microcosmo e do macrocosmo. Ou seja, ele combina, em um único símbolo, todo o misticismo da criação, todos os processos em que se baseia o cosmos. As cinco pontas do pentagrama simbolizam os cinco elementos metafísicos: água, ar, fogo, terra e espírito. Há uma abertura entre dois mundos, o mundo dos feiticeiros e o das pessoas comuns. Há um lugar onde os dois mundos se encontram. A abertura está lá, ela abre e fecha como uma porta ao vento ‒ declamei, recitando de memória o que havia lido em um texto de esoterismo.
Mauro me olhou surpreso.
‒ E você acredita nessas coisas?
‒ Claro que não. Isso é o que o xamã, o guru, o homem santo da seita, quer que seus adeptos creiam, para poder tê-los em suas mãos, para poder convencer seus submissos de que, mesmo que se peça um sacrifício, as eventuais vítimas sacrificiais devem simplesmente ficar contentes por ir de encontro à morte.
‒ Então, na sua opinião, foi realizado aqui um ritual no qual foi exigido um sacrifício humano? A vítima foi capturada, levada um pouco mais longe, amarrada à grade e sacrificada com fogo?
‒ Sim, e talvez, sob a influência das drogas que devem ter lhe dado, ela também estava feliz por ser queimada viva.
‒ Em sua opinião, Caterina, poderia Aurora ser a mulher sagrada da seita, a artífice de tudo isso?
‒ Não sei, ainda não temos elementos suficientes. Mas, como a hora do almoço já passou há muito tempo e ainda não comemos nada, vamos tentar fazer com que a bruxa nos convide para almoçar? Ou você prefere voltar para o Luigi?
‒ Eu não gostaria de ser vítima de alguma iguaria envenenada preparada por Aurora para a ocasião. Melhor trofie ao pesto!
No restaurante, perguntei a Luigi qual era a maneira mais fácil de chegar a Lago Degnu.
‒ O Lago Digno é um lugar excepcional, mas é preciso estar bem equipado para chegar até lá. Há duas maneiras. Uma trilha parte de Molini e sobe o Riacho Argentina até o lago. Você vai precisar de botas, pois terá de caminhar por alguns trechos dentro do leito do córrego, onde ele fica encravado em um estreito desfiladeiro. O lago é formado pelo Rio Grugnardo, que deságua no Riacho Argentina com uma queda de quinze metros. Portanto, quando chegar lá, poderá admirar uma esplêndida cascata que cai no lago abaixo. Este, apesar de ser um pequeno corpo d’água, é bastante profundo em alguns pontos. A outra rota é uma trilha que desce de Triora, mas para percorrê-la é necessário estar equipado com cordas, arreios e mosquetões. Há alguns trechos em que a trilha se perde e é preciso descer paredes rochosas. Até a cachoeira, há algumas paredes equipadas com via ferrata, mas é aconselhável não confiar demais e se proteger com uma corda de qualquer maneira. E então, se você quiser descer da cachoeira até o lago, ainda terá que fazer rapel com equipamento de escalada, caso contrário, só verá o lago de cima.
‒ Você o chamou de Lago Digno. Por que é que em Triora o chamam de Lago Degnu? ‒ perguntei a Luigi.
‒ Ah, é a expressão do dialeto. Embora essas terras tenham sido parte do Reino da Sardenha no passado, o fato de as expressões dialetais usarem muito a letra “u” não deriva do sardo. As expressões da Ligúria também são ricas nesta vogal. Por isso, nesta região, o liguriano se mistura ao occitano e quem não é local corre o risco de não entender nada ao nos ouvir falar.
Eu sorri para ele, pensando que até mesmo no dialeto do interior de Marche a mesma vogal era encontrada com frequência. Paguei a conta e saímos.
‒ Bem, eu diria que, neste momento, deveríamos retornar à nossa cara Aurora. Vou tentar distraí-la, fazê-la falar, talvez mantendo a conversa vaga, sem entrar no assunto do crime. Você, discretamente, tente coletar algo útil. Precisamos levar algumas pistas, Mauro, para convencer o Dr. Leone da necessidade de revistar a casa da bruxa de cima a baixo!
Estacionamos o carro ao lado do Porsche Carrera e caminhamos em direção à entrada da casa Della Rosa. Não havia campainha elétrica, apenas uma corda amarrada a um sininho. Não cheguei a tempo de puxar a corda, porque a porta se abriu e a loira Aurora apareceu com roupas minúsculas, uma regata rosa e uma saia jeans muito curta.
‒ Eu senti sua chegada ‒ disse ela. ‒ Entrem, hoje está um dia lindo e claro, e se vocês me seguirem até o terraço, poderão admirar a maravilhosa vista panorâmica do Vale Argentina e das montanhas que marcam a fronteira com a França.
‒ Excelente! ‒ eu disse, dando uma piscadela para Mauro. ‒ Sou uma entusiasta das montanhas e adoro belas paisagens!
Ela nos levou até o terraço, de onde havia de fato uma vista esplêndida.
‒ Posso oferecer-lhes um dos meus chás de ervas relaxantes? Eu realmente acho que vocês precisam!
‒ Aceitamos o chá, desde que não seja relaxante demais ‒ respondi. ‒ Podemos voltar ao salão para saborear a bebida, Sra. Della Rosa?
‒ Claro, acomodem-se. Voltarei em alguns instantes.
Ela desapareceu na cozinha. Não poderia haver oportunidade melhor, mas teríamos que ser rápidos para não sermos surpreendidos. Enquanto eu dava uma olhada nos livros e na porcelana nas estantes, Mauro se ocupava com maçanetas e objetos, como cinzeiros e bibelôs, para tirar algumas impressões digitais. Minha atenção recaiu sobre um antigo vaso de porcelana azul e branca com uma inscrição em letras góticas que dizia “Red Shepenn”. Levantei a tampa e vi que continha algum tipo de tabaco. Peguei uma pitada e coloquei em um saco plástico transparente.
‒ Pode ser droga ‒ sussurrei para Mauro. ‒ Por esse nome, no Oriente, nos tempos antigos, era chamada a papoula do ópio.
Quando Aurora voltou com três xícaras de chá de ervas fumegante com um forte cheiro de menta, tanto Mauro quanto eu observávamos com curiosidade o conteúdo das estantes. O chá de ervas era muito suave e tinha realmente um efeito relaxante. Depois de terminar de beber sua xícara, a bruxa decidiu acender um de seus cigarros. É estranho dizer, mas o aroma da fumaça do cigarro não me incomodou, na verdade, me atraiu.
‒ Você vai ver, Dra. Ruggeri, que um dia desses vai fumar um comigo.
‒ Acho que não, nunca fumei em minha vida e não acho que vou começar aos quase quarenta anos. Em vez disso, gostaria de lhe perguntar sobre o significado do pentáculo desenhado nesse piso fabuloso. Estudei simbolismo e símbolos esotéricos, mas aqui vejo alguns com os quais não estou familiarizada. Reconheço o símbolo do espírito, no centro, e as oito linhas que se originam de um ponto e irradiam em direção aos pontos cardeais, os mesmos indicados pela rosa dos ventos.
‒ Muito bem, Doutora. Sei que você é bem versada no assunto. Veja, ainda deve pairar por ali o espírito de minha ancestral Artemisia, queimada na fogueira em um certo dia de 1589. O poste ao qual ela estava amarrada parece ter sido cravado no chão naquele exato local. Os outros símbolos indicam o que aconteceu do ponto de vista astral naquele dia. Era o equinócio da primavera, 21 de março, noite de lua cheia e, naquela noite, houve um eclipse total da lua.
‒ Sim, começo a interpretar os símbolos. Entretanto, pelo que aprendi, as bruxas de Triora não foram queimadas. Elas foram presas, torturadas, julgadas, condenadas, mas a execução nunca ocorreu, pois o Doge de Gênova se opôs.
‒ E esta é a versão oficial, segundo a qual minha ancestral e suas quatro devotadas seguidoras morreram na prisão em Gênova. Mas talvez não tenha sido bem assim. Você é habilidosa e descobrirá a verdade. Não serei eu quem vai lhe contar.
Ela aproximou o rosto e os olhos do meu rosto e soprou a fumaça na minha face. Baixei o olhar, para não olhá-la diretamente nos olhos, e me vi admirando suas pernas perfeitas, esbeltas, alongadas, sem sombra de celulite. Naquele momento, para minha surpresa, senti um forte desejo sexual por ela. Observei seus lábios se aproximarem dos meus e tive vontade de me unir a ela em um beijo apaixonado. Tentei banir os pensamentos que estavam me perturbando e dei um passo para trás para me afastar dela.
Bruxa sedutora, pensei comigo mesma. Mas como ela tem esses poderes?
Nos despedimos dela e voltamos para o carro. O dia estava chegando ao fim da tarde e era hora de voltar para a sede.
‒ Tenho a impressão de que perdi alguma coisa. Olhando para o relógio, vejo que passou um pouco mais de tempo do que eu tive percepção! ‒ eu disse a Mauro assim que saímos.
‒ Só um pouco? Aquela bruxa encantou você novamente. Ela falou com você em um idioma incompreensível, enquanto você a admirava da cabeça aos pés. A certa altura pensei que vocês iriam se beijar. Mas aproveitei a situação para coletar mais alguns itens, que mostrarei a você mais tarde. A bruxa estava tão concentrada em você e nas palavras que recitava que não prestou atenção em mim. Eu poderia ter desabotoado aquela insípida saia jeans, deixando-a só de calcinha, e ela nem teria notado. Agora você dirige, quero começar imediatamente uma pequena pesquisa no computador de bordo.
Assim que soltei a embreagem e pisei no pedal do acelerador, o Lamborghini saltou para a frente como um cavalo empinado, preso pelas rédeas por um cavaleiro inexperiente. Mauro, focado na tela do computador, parecia não fazer caso do meu estilo de dirigir, que, depois de alguns instantes, adaptei às características do carro. Percebi que precisava adotar um ritmo moderado, mantendo o pé direito apenas levemente apoiado no pedal do acelerador, para não causar um aumento brusco de velocidade. Depois de alguns minutos de silêncio, em que Mauro estava concentrado no computador e eu nas curvas da maldita estrada, meu colega soltou uma exclamação.
‒ Bingo! Encontramos algo. A maioria das impressões digitais que recolhi pertencem à anfitriã da casa. Para fins de comparação, obtive sua impressão digital da xícara em que bebi o chá de ervas. Nas bases de dados não há correspondência entre as impressões digitais de Aurora e as de criminosos registrados. E até aqui, eu diria, nada de novo. No entanto, tenho uma impressão digital no vaso de porcelana que contém tabaco e outra na maçaneta da porta da frente que correspondem a indivíduos registrados. E adivinhe só! A primeira é de Larìs Dracu, a mulher romena cujo rastro foi perdido há vinte anos. Na época, a polícia romena havia prendido a jovem como suspeita de sedição e a fichou. Após a queda do regime comunista, os bancos de dados da polícia secreta também se tornaram acessíveis e, portanto, tive acesso a eles. De qualquer forma, o arquivo foi atualizado mais tarde, pois foi relatado que essa mulher havia fugido do país, descrita como uma criminosa perigosa, até mesmo uma assassina em potencial, e fotos dela foram enviadas a todos os postos de controle de fronteira na Europa. As últimas notícias sobre ela remontam ao verão de 1989, quando conseguiu passar debaixo do nariz de um funcionário da alfândega italiana, no aeroporto internacional de Fiumicino, sob o nome falso de Clarissa Draghi. Com um passaporte italiano falso, ela embarcou em um voo para Katmandu. Depois de alguns dias, o funcionário da alfândega, olhando para a foto fixada à sua frente, notou a forte semelhança com a jovem de vinte anos que havia passado por ali e alertou a polícia nepalesa, que iniciou uma busca. No Nepal, foram localizados os sherpas que guiaram ela e sua companheira de viagem até a fronteira chinesa, nos limites da região do Tibete. Os sherpas disseram que esperaram em vão por três dias pelo seu retorno. Portanto, se as duas mulheres não fossem presas pela polícia de fronteira chinesa, elas teriam se perdido nas montanhas, encontrando a morte quase certa.
Distraindo-me um pouco da direção, mas sem permitir que o Lamborghini tomasse as rédeas, soltei uma exclamação.
‒ E, no entanto, morta ela não está, se temos suas impressões digitais aqui depois de vinte anos!
‒ Sim. Mas vamos à outra impressão, que corresponde a um certo Stefano Carrega, o jornalista genovês que desapareceu em 2000 aqui em Triora junto com dois de seus colegas. Nascido em 1949, na década de 1970 ele se matriculou na Faculdade de Letras e Filosofia de Bolonha. Foi preso durante uma manifestação estudantil. Acusado de agressão, violência contra uma colega de universidade, resistência a oficiais e posse ilegal de armas, naquela ocasião ele foi autuado. Ele não tem outros precedentes.
‒ Bem, esses foram os chamados anos de chumbo. Portanto, ele também está na região e mantém contato próximo com a Sra. Della Rosa! Mas temos certeza de que são impressões recentes? E você acha que esses elementos são suficientes para convencer o Dr. Leone a autorizar uma busca na casa de Aurora?
‒ Certamente as impressões não datam de vinte anos atrás, pois já não seriam detectáveis. Duvido que essas pistas sejam suficientes para autorizar uma busca, mas estamos seguindo por um caminho que deve nos levar a algum lugar. Além disso, com meu palmtop, tirei uma foto de uma das estantes, onde há algo que me deixou intrigado. Agora, vou baixar a foto para o meu computador via Bluetooth e a ampliar para observar os detalhes. Há ali uma fresta que sugere algum tipo de porta oculta, talvez uma passagem secreta. Tentei puxar ou empurrar a estante, mas nada aconteceu.
‒ Deve haver um mecanismo que somente Aurora conhece! Imagine se pudesse ser assim tão simples!
‒ Sim, talvez, ou talvez não haja nada e seja apenas minha impressão. A última coisa que notei, enquanto você estava em transe na frente dela, foi um notebook ligado. Tive que me segurar para não colocar um pen drive USB nele para baixar os dados. Não realizei minha intenção apenas por medo de que, a qualquer momento, Aurora se virasse e me surpreendesse. Mas consegui descobrir que o computador está conectado à rede por meio de uma linha ADSL da Telecom e consegui memorizar tanto o endereço IP quanto a ID do computador, então não deve ser difícil acessar os dados através de um computador remoto.
‒ Antes de avançar sobre Aurora, o que pode ser prematuro, quero concluir meu exame de todos os elementos que temos à nossa disposição, mas, acima de tudo, quero visitar os três outros lugares que ainda não tivemos a chance de observar: o Lago Digno, a Fonte de Campomavùe e a Rua Atrás da Igreja. Tenho certeza de que poderemos encontrar algumas surpresas.
Continuei dirigindo com cautela o bólido, que, nas mãos de Mauro, por outro lado, disparava como um raio, até chegar ao distrito. Quando vi a van da Polícia Canina de Ancona estacionada em frente, meu coração deu um pulo. Estacionei e saí correndo do carro, procurei o motorista do veículo e finalmente encontrei seu rosto sorridente.
‒ Agente Bernardini! Você me trouxe o Fúria? Finalmente! Onde está? Ainda dentro da van?
‒ Boa noite, Doutora, e parabéns, embora eu veja que você está ainda pior do que quando trabalhava com nossos cães. Mas de onde está vindo, de uma jornada de guerra, de um teste de sobrevivência? Não, o seu Fúria não está na van, eu o coloquei na baia no pátio, já o alimentei e deixei água disponível. Você o encontrará em perfeita forma! Agora, se você não se importa, vou descansar um pouco antes de pegar a estrada de volta.
‒ Eu lhe agradeço, oficial, e mande lembranças a todos em Ancona.
‒ Claro! Sentimos muito sua falta, Doutora. Até logo!
Eu me lembrava bem do dia em que o inspetor Santinelli, que também era caçador, trouxe consigo um filhote de springer spaniel, filho de uma de suas cadelas.
‒ Eu testei esse cão, ele tem um faro excepcional, mas tem um grande defeito: tem medo de tiros, portanto não é adequado para a caça. Você, Caterina, não tem seu próprio cachorro. Ele tem seis meses, é um macho, está em perfeito estado de saúde e regularmente vacinado. Eu o chamei de Fúria, porque ele está sempre ativo, nunca se acalma, enfim, é um verdadeiro terremoto. Fique com ele, tenho certeza de que, com suas habilidades, você transformará esse cão em um verdadeiro fenômeno!
Aceitei o desafio e coloquei Fúria na única baia vazia. Eu sabia que trabalhar com um cão assim não seria fácil, mas, depois de alguns meses, consegui domar sua exuberância. Eu o ensinei a obedecer a comandos simples, que ele aprendeu sem dificuldade, e depois me dediquei a trabalhar em seu olfato.
Também levei Fúria para ser examinado por Stefano, que confirmou que ele era um cão perfeitamente saudável, resistente ao esforço físico e com um faro excepcional.
‒ Você verá que ele lhe dará enorme satisfação! Esse deve ser o seu cão, não o confie a mais ninguém e você verá como ele se tornará um campeão!
E, de fato, Fúria me daria grande satisfação e eu jamais me separaria dele por qualquer motivo. Foi por isso que, antes da partida, como eu não tinha intenção de fazê-lo viajar dentro do porão de um avião, eu tinha organizado uma viagem separada para ele, com a cumplicidade de um dos meus colaboradores de confiança da unidade canina.
Naquele momento, não pude deixar de correr direto para o pátio e sofrer as comemorações e lambidas afetuosas de Fúria. Eu me joguei no chão e deixei que ele subisse em cima de mim, abraçando-o e rolando com ele na brincadeira, o que me deixou ainda mais suja do que já estava.
Ao subir as escadas, ao longo dos corredores, recebi vários olhares, espantados com a minha aparência. Laura me veio ao encontro, com um maço de papéis na mão, que continha o resultado de sua pesquisa. Mauro, por outro lado, me informou que os primeiros resultados da autópsia já estavam prontos, que a legista precisava falar comigo sobre isso e que também estavam disponíveis os resultados dos exames forenses.
‒ Deem-me um momento para me arrumar. Vejo vocês em dez minutos no meu escritório.
Eu me refresquei rapidamente, troquei as roupas imundas e entrei no meu quarto ainda com a intenção de terminar a maquiagem, observando meu rosto no espelho do estojo de blush. Em um determinado momento, notei, refletida no espelho, a escrita que eu havia traçado no grande quadro branco naquela manhã.
‒ É claro, como eu não pensei nisso antes? ‒ foi minha reflexão. ‒ OAMOLAS ED SOVRES, lido da direita para a esquerda, torna-se SERVOS DE SALOMÃO. Portanto, a seita se refere ao Rei Salomão, um dos pilares da religião judaica.
A bruxa havia deixado escapar algo sobre Salomão durante a primeira de nossas conversas, mas eu não aprofundei o assunto, porque achei que ela estava me enganando. Talvez eu devesse ter deixado ela falar. Lembro-me bem de que um dos textos mais importantes citados pelas seitas esotéricas é “A Chave de Salomão”. Naquele momento, o telefone tocou. Era a Dra. Banzi, a médica legista, que estava procurando por mim.
‒ Desculpe-me, Comissária, mas devido ao adiantado da hora e ao fato de que, apesar das minhas mensagens, você não me ligou de volta, pensei em tentar novamente antes de ir para casa. Eu lhe enviei um relatório inicial da autópsia, mas queria falar diretamente com você.
‒ Então me diga. O que você descobriu interessante?
‒ A vítima era uma mulher entre trinta e cinco e quarenta anos e morreu em decorrência do fogo. A fuligem em seus pulmões prova que ela estava viva quando seu corpo foi incendiado.
‒ Resumindo, ela foi queimada viva. Que fim horrível!
‒ Não foram encontrados outros ferimentos no corpo, então presumi que ela foi atordoada com sedativos ou drogas, e saberemos isso nos próximos dias, se conseguirmos detectar algum resíduo no exame dos rins e do fígado. O fato de o cadáver estar carbonizado torna tudo mais difícil. Mas temos um elemento, talvez o único, que pode nos levar à identidade da vítima. Embora a pele tenha sido muito alterada pelo fogo, na perna direita, na parte interna da panturrilha, logo acima do tornozelo, é possível notar a presença de uma tatuagem. Liguei para seus colegas forenses para ver se era possível, com seus métodos, visualizar o desenho original. Eles tiraram algumas fotos e me disseram que iriam trabalhar nisso. Então eles vão avisar você. Isso é algo que você não vai encontrar em meu relatório, mas eu queria lhe contar. Até breve, Doutora, e boa noite!
‒ Obrigada por tudo e tenha um bom descanso.
Um depois do outro, Mauro e Laura entraram em meu escritório.
‒ Mauro, já conheço os resultados da autópsia e falei com a legista. Alguma coisa interessante sobre as descobertas forenses?
‒ Diria que sim. O líquido inflamável com que o incêndio foi iniciado é óleo de lamparina, uma substância incomum, não muito utilizada. Para estas lamparinas, antigamente se usava azeite como combustível, hoje se utiliza um derivado do petróleo de baixa densidade, que produz menos fumaça. São poucas as empresas que o produzem e será fácil verificar se alguma delas vendeu uma certa quantidade aqui na região. O outro elemento interessante é a tatuagem. Usando a espectrografia computadorizada, a equipe forense conseguiu visualizar uma tatuagem na perna direita da vítima. Ela retrata três livros dispostos lado a lado, envoltos em chamas. Uma peculiaridade? Sabemos que Mariella, A Ruiva, a garota que desapareceu em 1997, tinha uma tatuagem idêntica na mesma área de sua perna direita!
‒ Portanto, como eu imaginava, há uma conexão entre as duas. E você, Laura, o que tem a relatar?
‒ Trabalhei muito e encontrei algo interessante. Fui a Triora, primeiro ao cartório e depois ao Museu das Bruxas. Infelizmente, não consegui obter muitas informações no cartório, pois ele só foi informatizado há alguns anos e os antigos arquivos em papel foram destruídos mais de uma vez por incêndios ou outros desastres, naturais ou não. Sabe-se que a velha Aurora Della Rosa nasceu em 21 de março de 1929. Os arquivos daquele ano foram destruídos por esquadrões fascistas que atacaram o oficial de registro da época, pois este se declarou antifascista e se recusou a aderir ao partido de Mussolini. O expurgo para ele foi inevitável, e até mesmo seu escritório foi destruído. O que não está escrito, mas que todos em Triora sabem, é que Aurora tinha o mesmo nome e sobrenome de sua ancestral, a filha de Artemisia De La Rose, bruxa que foi julgada no final do século XVI junto com suas companheiras de Ca Botina. De geração em geração, as primogênitas da família receberam o nome da avó e, assim, o nome Artemisia se alternou com o de Aurora. Mas o mais incrível é que essas mulheres, ao longo do tempo, sempre mantiveram o sobrenome da mãe, porque nunca houve um pai que as reconhecesse. Teoricamente, em 1949 deveria ter nascido uma Artemisia Della Rosa, da qual nada se sabe. Naquele ano, coincidentemente, eclodiu um incêndio na floresta ao redor de Triora, destruindo algumas casas da vila e, mais uma vez, o arquivo municipal também foi perdido. Em 1969, ou por volta disso, de acordo com meus cálculos, deve ter nascido a Aurora Della Rosa que conhecemos. Os arquivos de registro civil de 1969, 1970 e 1971 desapareceram e o atual oficial do registro civil explica que 1971 foi um ano particularmente chuvoso, algumas salas do município foram inundadas e muitos documentos não puderam ser recuperados de forma alguma. Os idosos do vilarejo se lembram de Aurora com uma barriga de gravidez entre o final de 1948 e o início de 1949. Havia rumores de que a bruxa havia tido relações com o demônio durante um dos Sabbaths noturnos. O fato é que, no final da gravidez, ela se retirou para uma caverna na floresta. Ela só reapareceu na aldeia depois de alguns meses e sem nenhum filho consigo, tanto que se dizia que ela havia tido um filho homem e, conforme a tradição familiar exigia, havia sacrificado o menino ao seu deus antes que ele atingisse o sexto mês de vida. Em 1989, aos sessenta anos, Aurora desapareceu e, algum tempo depois, apareceu sua neta homônima. A incrível semelhança com a avó fez com que os mais imaginativos pensassem que Aurora havia encontrado uma maneira, por meio de alguma magia, de rejuvenescer, e que a pessoa que se apresentava como sua neta era, na verdade, ela mesma. Outros aventaram a hipótese de que, quarenta anos antes, a bruxa não havia matado o fruto de seu ventre, mas o mantivera escondido ou o mandara para viver longe de Triora, até porque o cadáver da criança nunca foi encontrado. O hipotético filho, ou filha, de Aurora teria então gerado a Aurora que apareceu em 1989. O fato de uma garota de vinte anos ter chegado da Romênia na mesma época, e depois ter partido com a Aurora de sessenta anos, fez alguém pensar em uma hipótese muito bizarra, que não foi confirmada por nenhuma evidência. Alguns dizem que a filha da velha Aurora, se respeitarmos a tradição e dissermos que ela era uma menina e talvez se chamasse Artemisia, de alguma forma, com a ajuda de alguém, chegou à Romênia e se estabeleceu na Transilvânia. Aos vinte anos, ela deu à luz gêmeas, Aurora e Larìs, que no final da década de 1980 decidiram retornar à Itália, livrando-se de sua velha avó. Primeiro veio Larìs, que a velha bruxa não poderia reconhecer como sua própria neta, pois ela tinha cabelos escuros e características físicas muito diferentes dos membros de sua família. A garota convenceu a idosa a fazer a peregrinação ao Tibete, onde ela perdeu a vida. Assim, a jovem Aurora teria recebido luz verde para tomar posse da casa da família. Depois de muito tempo, evitando regressar à Itália de avião e enfrentando uma longa viagem por terra, Larìs também retornou discretamente a Triora e se reuniu com sua irmã gêmea. O fato é que a loira Aurora já foi vista diversas vezes na companhia de sua atraente colega morena. Mas, repito, esses são rumores, contados na aldeia por alguns aldeões imaginativos.
‒ Bem, Laura. Essa história das gêmeas, na verdade, não é muito crível em minha opinião. E o que você pode me dizer sobre os julgamentos das bruxas?
Eu havia lido resumidamente a versão oficial do julgamento, conforme relatado nos quadros expostos ao público dentro do Museu das Bruxas de Triora. Na prática, o julgamento terminou com a condenação das cinco bruxas, Artemisia e as outras quatro, que haviam sido salvas pelo Doge de Gênova, mas que morreram de fome durante o seu encarceramento nas prisões genovesas. Mas eu estava mais interessada na versão não oficial, contada pela minha inteligente colaboradora.