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I
ОглавлениеEra no anno de 18*** N'um palacete proximo á Calçada de Santo André, vivia, em companhia de seu filho e de duas creadas, D. Marianna de Mendonça, filha bastarda de Manuel Pires de Athayde, que fôra em tempos de pouco saudosa memoria alcaide-mór da cidade de * * *
Poucos mezes antes de morrer, Manuel Pires de Athayde, entregára a sua filha dezeseis mil cruzados em dinheiro, afóra joias e outros objectos de valor, pedindo-lhe ao mesmo tempo que acceitasse por esposo a Alvaro de Mendonça seu primo co-irmão, moço serio e de bom porte, e, além d'isso, possuidor de riquezas quasi eguaes ás que o alcaide-mór lhe legava.
Recusando, a principio, o noivo que o pae lhe indicava, D. Marianna, por ultimo, não teve mais remedio senão acceder aos seus desejos.
Tres mezes depois, com grande alegria de todos os parentes, recebeu se com Alvaro de Mendonça na freguezia dos Anjos.
O pobre velho parecia apenas aguardar a realização d'este ultimo desejo para volver a alma ao Creador, entre as lagrimas da filha e dos amigos que o estremeciam. Ao cabo de oito dias de casada, D. Marianna ficava sem pae.
Manuel Pires de Athayde não se havia enganado na escolha; Alvaro de Mendonça era o exemplo dos maridos. A sua proverbial honestidade tornava-o estimado em todos os logares onde apparecia, acompanhado quasi sempre pela esposa, digna e respeitada como elle.
Ao fim d'um anno, a Providencia, prodiga em lhes proporcionar todas as venturas, concedeu-lhes a maior que póde dar aos que deveras se amam sobre a terra, e que medem o mundo todo, pelo curto espaço do seu domicilio: um filho.
Manuel—tal foi o nome do recemnascido—de dia para dia se tornava mais robusto. Era um gosto vel os á tarde por sobre os canteiros do seu pequeno jardim, correndo com o Manuelito, e disputando entre si, qual dos dois alegraria mais a creancinha.
Marianna, por esse tempo, teria uns dezoito a vinte annos, Alvaro trinta e quatro.
Amor, saude, mocidade, riquezas e um filho! Que lhes faltava para serem felizes?
Pelo espaço de doze annos, trabalhando mais do que as forças lh'o permittiam, afim de melhorar o futuro da creança, correu a vida de Alvaro de Mendonça, sem que uma só vez podesse D. Marianna deixar de levantar as mãos aos céus, para agradecer á Providencia o esposo que lhe havia concedido.
Uma circumstancia apenas lhes toldava de vez em quando o iris da sua felicidade; eram os continuos receios que um velho primo lhes infundia, sobre a precoce intelligencia do estremecido fructo dos seus amores patriarchaes.
«Não puchem pelo rapazola se o não querem ver no cemiterio, dizia-lhes elle muitas vezes. Um talento como este deve ser muito poupado. Se meu pae não me tem acudido a tempo, retirando-me do collegio, talvez lhes não estivesse agora dando este conselho. Eu fui o mesmo que o Manuelito; aprendi a grammatica portugueza de fio a pavio em menos de um mez. Não percebia bem o que dizia, é verdade, mas sabia tudo de cór, que era até um gosto ouvirem-me. Sabem o que fez meu pae? Annuiu aos desejos do mestre, que era um doidinho por mim, e retirou-me do collegio para que não estudasse mais. É certo que estou hoje sem saber coisa alguma, porquanto a grammatica esquece muito, mas pelo menos tenho vida e saude, que é o principal.»
A despeito d'estas e de outras judiciosas reflexões, Manuel continuou a frequentar a aula, onde era querido por todos os professores e condiscipulos. Estes, longe de lhes causar inveja o seu inquestionavel merecimento, todos á uma se ufanavam em lh'o proclamar.
Aos quinze annos já tinha feito os exames de philosophia e latinidade.
Quando mais venturosa sorria a existencia de Alvaro de Mendonça, coroada pelos louros de seu filho, a Providencia, como se já estivesse fatigada de lhe sorrir, fez com que o anjo da morte, descendo lentamente sobre o seu leito, lhe cerrasse para sempre os olhos.
D. Marianna de Mendonça, ainda que dotada de intelligencia clara e reflexiva, faltava-lhe comtudo aquella experiencia do mundo impossivel de conseguir a qualquer senhora que, como ella, tivesse vivido apenas entregue aos cuidados de sua casa.
Abatida pelo golpe que acabava de soffrer, muito fazia a infeliz viuva em administrar a sua casa de portas a dentro, e bem assim seguir a educação de Manuel, que de mez a mez fazia mais rapidos progressos, continuando a disfructar uma irreprehensivel saude, apezar de todos os prognosticos de seu primo, o ex-grammatico, que se não cançava de lembrar á viuva o absurdo da sua insistencia em que o pequeno continuasse no collegio.
Entre as pessoas que ordinariamente frequentavam a casa da viuva, distinguia-se o commendador Felix Justino de Araujo, homem probo e honesto para todos que tinham a honra de lhe merecer a sua confiança, o que elle prodigamente espalhava afim de conquistar as geraes sympathias.
Corriam varias edições ácerca da sua mysteriosa individualidade, chegando algumas pessoas a levar o seu arrojo a ponto de dizerem que o commendador não passava de um refinado velhaco, e que, mais dia menos dia, as suas gentilezas teriam de ser desmascaradas em praça publica; isto tudo, já se vê, proferido em voz baixa, depois de com elle terem gasto os joelhos das calças, nas respeitosas zumbaias que diariamente lhe dispensavam. É que já n'essa epocha, a raça de commendadores que hoje invade a capital começava a manifestar-se com toda a força do seu prejudicial desenvolvimento. Era muito de ver se como toda aquella gente o tractava no tocante a futeis banalidades. Riam-se uns dos outros, e todos em sua presença disputavam entre si, qual deveria ser o seu primeiro thuribulario.
Uns diziam que era viuvo, outros que era casado com uma mulher de baixa esphera, de quem tinha duas filhas, porém que se não atrevia a apresental-a na sociedade, em virtude das suas maneiras pouco distinctas.
A sua riqueza ninguem ao certo a poderia saber; porém o faustuoso luxo com que se tractava levava a suppôr que enormes rendimentos havia herdado da sua nobre ascendencia, cujos brazões nobiliarios fariam estremecer de inveja qualquer puritano.
Uma noite em que D. Marianna de Mendonça se queixava amargamente de um certo procurador, lembrou-lhe uma das suas amigas que talvez lhe fosse conveniente entregar a administração da casa ao commendador, se elle porventura a isso estivesse resolvido, e que ella mesma lhe falaria a tal respeito.
A viuva acceitou de bom grado o que a sua intima lhe propozera, e falando esta com o commendador, ao cabo de oito dias Felix Justino de Araujo tinha geral procuração para arrendar, subrogar, ou alienar qualquer propriedade, se por ventura assim o julgasse conveniente para o futuro do seu Manuel que, segundo o dizer do administrador, era tanto para elle como se fosse seu proprio filho.
Não tardou muito tempo que o magnate fizesse uso de uma das condições da procuração. Uma fazenda que Alvaro de Mendonça herdára por morte de uma tia, tres ou quatro annos depois de estar casado com a filha de Manuel Pires de Athayde, foi-lhe vendida em hasta publica. A venda fôra de um excellente resultado para a viuva, segundo o commendador affirmava, porquanto o seu principal rendimento eram arvores de fructa, e essas mais anno menos anno cairiam todas ao pezo d'uma epidemia que, segundo as suas observações agronomicas, teria de grassar d'alli a tempo, assaltando todas as fazendas sem exceptuar uma unica.
Em face d'esta cruel prophecia, quem se negaria a separar-se de qualquer terreno, por mais dolosa que fosse a venda?
O commendador empregou esse dinheiro n'uma industria cujo dividendo deveria exceder dez por cento.
Quasi todos deram os parabens á viuva pelo bom negocio que vinha de fazer, attendendo não só á grande differença do rendimento, como tambem a ter-se livrado d'esse terrivel cataclysmo, a que estava exposta conservando uma só arvore.
Assim decorreram dezoito mezes sem que D. Marianna tivesse a mais pequena razão de se arrepender da plena confiança que tinha depositado no seu administrador.
Por este tempo, Manuel, que havia saído do collegio, chegou se a sua mãe, dizendo-lhe que desejava partir para o Rio de Janeiro, afim de se dedicar á vida commercial, para que se sentia com decidida vocação.
Recordando lhe ao principio a loucura do seu projecto, a pobre mãe ponderou-lhe a pouca necessidade de buscar em terra estranha o que já possuia na sua patria: a riqueza.
Por essa epocha, os bens da casa montavam a uns trinta contos de réis, graças á herança que Alvaro de Mendonça havia recebido por morte de sua tia, e ás economias que a viuva fizera durante aquelle tempo.
—Com o dinheiro que possuimos, dizia-lhe sua mãe, poderás dedicar-te ao commercio, mas aqui em Lisboa. É verdade que não tens um unico parente que te proteja, mas, graças a Deus, temos meios. Partires, e deixares-me, filho, acho que será uma grande loucura, ajuntou ella, arrazando-se-lhe os olhos de lagrimas. Em todo o caso, farás o que te aprouver. Não quero que um dia me lances em rosto que o muito amor que te consagro foi a causa de cortar a tua carreira.
N'essa noite, quando appareceu o commendador, D. Marianna manifestou-lhe os desejos de Manuel.
—Que vá, respondeu elle rapidamente. Seu filho é activo, audaz, intelligente e emprehendedor. Póde um dia, se Deus o ajudar, vir a ser um grande homem. Não tenho filhos, acrescentou, porém se um dia os tiver, nunca os hei de contrariar nas suas resoluções, se ellas forem justas como as de Manuel.
—Mas que precisão tem elle de expôr a sua saude n'um clima tão perigoso? Trinta contos ou perto d'elles que possuimos não será o sufficiente para se viver em qualquer parte do mundo?
-Porém se seu filho é ambicioso, e capricha em adquirir um capital pelo seu trabalho, é justo que sua mãe lhe impeça a sua determinação? Faça o que quizer, mas tome o meu conselho, deixe-o partir. Deus ha de guial-o, porque Manuel é bom, honesto, moral e, sobre todas estas coisas, muito trabalhador.
—E que dinheiro se lhe deve entregar, sr. Felix? dez contos, quinze, vinte... que lhe parece?
—Vossa excellencia está louca! acudiu apressadamente o commendador. Entregar contos de réis a um rapaz da edade de seu filho! Lançar Manuel n'um paiz como o Rio de Janeiro, proporcionando-lhe os meios de se perder! Nem por sombras! Quaes contos de réis! Com seis moedas desembarquei eu em S. Paulo, e ao cabo de doze annos possuia uma fortuna para cima de dez mil libras! Contos de réis! Só essa me faria rir! A passagem paga, meia duzia de moedas, e as cartas de recommendação que para ahi lhe entregarei, são mais do que o sufficiente.
—Mas não me disse v. ex.ª que meu filho era um rapaz de juizo, honesto e moral? Que receio teremos em lhe entregar o que realmente lhe pertence? Não é elle o meu unico herdeiro?
—Fará vossa excellencia o que entender, e se lhe quer entregar tudo quanto possue, faça-o; está no seu direito, e lavo d'ahi as minhas mãos. Se quer que lhe preste as minhas contas, estou muito prompto a fazel-o. Sabe que o unico interesse que tenho em tudo isto é apenas o seu bem estar, e o futuro de Manuel. Se quer estragar tudo quanto tenho feito em seu proveito, é senhora das suas acções, póde fazel-o, que desde este momento me considero desligado de todos os meus encargos.
Esta linguagem, rude mas na apparencia sincera, produziu no animo debil de D. Marianna o resultado que o commendador desejava. Affeita a obedecer-lhe em tudo, havia-se deixado dominar completamente por aquelle homem que, segundo a opinião de todas as pessoas que frequentavam a sua casa, havia sido um anjo salvador.
Dois annos depois da sua administração, os vinte contos de réis, que rendiam á viuva cem mil réis por mez, haviam subido a um rendimento de um conto e seiscentos por anno, graças á applicação que elle dera a esses capitaes. Quanto ao producto da propriedade, era um segredo, que mais dia menos dia seria revelado como surpreza agradavel. Que razão teria ella para o arguir de mau administrador?
Estas e outras circumstancias faziam com que D. Marianna obedecesse cegamente a quanto elle lhe impunha.
No dia immediato, Manuel chegou-se a sua mãe, afim de saber o que se havia passado entre ella e o commendador.
—Sinto deveras que me queiras abandonar, porém se essa é a tua vontade, vae, e que as minhas orações, acompanhando-te sempre, te possam salvar de todos os perigos. Quanto a dinheiro ajuntou ella, esperançada em que o commendador se resolvesse a entregar-lhe maior quantia, dir me-has quanto necessitas.
—Nunca pedi contas nem a minha mãe nem ao sr. commendador, mas supponho que não farão grande differença nos capitaes que devemos possuir quatro ou cinco contos de réis para me estabelecer, mas ainda assim, se minha mãe suppõe que essa quantia é muito avultada, contentar me-hei com menos, ou por ultimo, com aquillo que julgarem conveniente. É tudo quanto tenho a dizer-lhe, accrescentou elle, pregando os olhos no olhar turvo e entristecido de D. Marianna.
No dia seguinte a viuva foi ao escriptorio do commendador e contou lhe o que passára com Manuel.
Felix de Araujo, depois de a ter escutado, insistiu serenamente em que seria uma grande loucura entregar a seu filho uma quantia superior a essa de que tinham falado na vespera, repetindo porém, que estava no seu direito de fazer o que lhe aprouvesse.
Todos os espiritos, por mais debeis que sejam, teem um momento na vida, em que uma circumstancia, ou um milagre providencial lhes dardeja um raio de valor.
A maneira, o gesto, o olhar, com que a viuva fitou o commendador, foram sufficientes para que elle comprehendesse que todos os esforços seriam inuteis. D. Marianna estava resolvida a entregar a seu filho a quantia que elle lhe havia, senão pedido, pelo menos indicado.
Não havia remedio! Era forçoso entregar esse dinheiro no momento em que lhe fosse exigido, para que se não realisassem certos boatos que lhe tinham chegado aos ouvidos, de que mais dia, menos dia, as suas gentilezas seriam desmascaradas!
—Seja o que vossa excellencia quizer, disse elle, depois de alguns instantes de reflexão. Que quantia quer?
—Quatro a cinco contos de réis. Como tudo o que possuo é em dinheiro, não haverá duvida em os receber por estes oito dias.
—Oito dias! replicou o commendador, simulando grande tranquillidade de animo, hoje mesmo se vossa excellencia quizer; não tenho mais trabalho do que tiral-o d'aquelle cofre, ajuntou elle, apontando para um grande armario de ferro.
—Posso portanto ficar tranquilla?
—Póde, mas lembre-se, minha senhora, que vae fazer a desgraça de seu filho. Conheço o Rio de Janeiro, e sei o que póde succeder a um rapaz da edade de Manuel, achando-se possuidor de similhante quantia.
—Será o que Deus quizer, respondeu a viuva despedindo se.
Quem, momentos depois, commettesse a indiscrição de o espreitar, no pequeno gabinete do escriptorio, conheceria immediatamente pela sua perturbação, que os trinta contos de réis em que consistia a fortuna d'aquella familia não estavam tão seguros quanto ella os julgava.
Oito dias depois, quando tudo estava preparado para a viagem de Manuel, sua mãe dirigiu-se a casa do commendador, afim de receber os cinco contos de réis, e encontrou-o sereno e bem disposto, mas insistindo ainda em que tão grande quantia seria prejudicial a um moço inexperiente como seu filho.
—Já disse ao sr. commendador o que tinha a dizer-lhe, respondeu D. Marianna, sentando-se tranquilamente a seu lado.
—Visto não haver meio algum de a convencer, queira vossa excellencia ter a bondade de me passar um recibo d'esse dinheiro. Levantando-se serena e fleugmaticamente, o commendador dirigiu se ao armario de ferro, tirou de dentro d'elle um pequeno cofre e collocou-o sobre a secretaria de que D. Marianna se tinha approximado para passar o recibo. O commendador, depois de contar os maços de notas de dez moedas, poz junto de D. Marianna os que prefaziam a quantia exigida.
N'este momento a viuva acabava de assignar o recibo.
—Se não fosse a profunda sympathia que vossa excellencia sempre tem sabido inspirar-me, creia que de hoje em deante, deixaria de lhe administrar os seus bens, e pedir-lhe-hia que mandasse buscar vinte e sete contos de réis que alli tenho n'aquelle cofre; digo que os mandasse buscar, porque grande parte d'esse dinheiro está em ouro e em prata, com que vossa excellencia não poderia. Não o faço, porque além de todas as outras circumstancias, affeiçoei-me ao Manuel, mais do que se elle fosse meu proprio filho, como já uma vez lh'o disse.
Se algumas desconfianças começassem a agitar o espirito da viuva, todas se desvaneceriam em presença d'esta scena. Havia uma dupla intenção nas palavras do commendador: a primeira inspirar á viuva profunda confiança no deposito dos seus capitaes; a segunda, evitar ainda a entrega dos cinco contos de réis. A primeira saiu-lhe bem, a segunda não foi tão favoravel.
—Então quando é a saida da galera? perguntou elle a D. Marianna.
—Ámanhã, ás duas horas da tarde.
—Não me comprometto a ir ao bota-fóra; ser-me-ia penoso acompanhal-o ao começo da estrada da sua infelicidade.
—Será o que Deus quizer, respondeu tristemente a pobre mãe, pegando nos maços de notas e mettendo-os dentro do seu sacco de veludo.
Cinco minutos depois, acompanhada pelo commendador, entrava D. Marianna para uma sege, e seguia caminho de casa.
No dia seguinte, ás duas horas da tarde, desprendendo se dos braços de sua mãe, entrava Manuel de Mendonça na galera Boa Ventura, e ao cair da tarde perdia de vista o que ha de mais caro na vida: mãe e patria.
«Acautele-se do commendador» foram as ultimas palavras que Manuel dissera a sua mãe.
Ao cabo de tres mezes, a viuva recebeu uma carta de seu filho, em que lhe participava que tinha chegado depois de uma feliz viagem, e que esperava em pouco tempo estabelecer-se vantajosamente com uma casa commercial.
Assim passaram mais oito mezes.
As mezadas que D. Marianna recebia de Felix de Araujo continuavam a ser-lhe entregues com a mesma religiosa pontualidade, o que fazia com que todas as pessoas que chegaram a duvidar da honestidade do commendador começassem a proclamal-o homem de evidente credito.
Durou isto perto de um anno. As cartas que Manuel escrevia a sua mãe eram cada vez mais consoladoras. N'algumas, mandava-lhe dizer que os seus maiores desejos seriam tel-a a seu lado.
Um dia, finalmente, escreveu lhe seu filho, mandando-lhe pedir encarecidamente que retirasse quanto antes os capitaes que tinha na mão do commendador, porque lhe tinham dado as peiores informações a seu respeito, sendo a primeira não se chamar Felix Justino de Araujo, mas simplesmente Domingos de Andrade.
Afflicta com esta carta, a infeliz senhora procurou um advogado, que fôra muito amigo de seu defunto marido, e communicou-lhe os seus receios.
N'esse mesmo dia, o doutor acompanhou-a a casa do commendador. Este, ao vel-a, comprehendeu immediatamente do que se tractava.
—Tencionando retirar-me para o Rio de Janeiro, venho prevenir vossa excellencia de que desejo levantar da sua mão os capitaes que honestamente me tem administrado. Se não fosse o desejo de ir ver meu filho, continuaria a aproveitar me da zelosa e desinteressada administração do sr. commendador.
—E sabe vossa excellencia se n'este momento lhe poderei entregar esse dinheiro? Não m'o confiou para negociar, afim de que tivesse maiores lucros do que estando na sua mão? Na vespera de seu filho partir para o Brazil, quando dei a vossa excellencia os cinco contos de réis, que me exigiu, não me promptifiquei a entregar lhe quanto aqui tivesse? Vossa excellencia não comprehende a possibilidade de que esse dinheiro esteja empregado em qualquer negocio, e de que n'esse caso me seja difficil devolver-lh'o de um momento para o outro? Felizmente não succede assim, pelo que dou graças a Deus! Quanto o estimo! Vossa excellencia, por qualquer circumstancia, deseja retirar das minhas mãos os seus capitaes, e não tem o sufficiente valor de m'o dizer de cara a cara! Pois, minha senhora, continuou elle, simulando um gesto de profundo resentimento, e levantando um pouco a voz, eu, que tenho a coragem das minhas acções, escudado pelo meu nome e pela minha honestidade, declaro aqui, alto e bom som, que sou eu que exijo, que vossa excellencia retire d'aqui os seus fundos, e quanto antes.
Havia tanta dignidade nas palavras do commendador, a sua voz era tão firme, tão altivo e tão seguro o seu olhar, que D. Marianna chegou a convencer-se de que era uma ingratidão o que vinha de fazer.
—Ha perto de quatro annos, continuou o commendador dirigindo se ao advogado, que eu administro os bens d'esta senhora. O seu rendimento, que não chegava a um conto e duzentos por anno, subiu a um conto e seiscentos. Uma propriedade que lhe valia o muito quatro contos de réis, vendi-lh'a e appliquei o producto d'ella n'um negocio, que rende para cima de doze por cento. Que necessidade tenho eu d'isto tudo? Tenho empregado trabalho e tempo; e preciso eu por ventura de capitaes alheios para fazer as minhas transacções? Escusado será dizer que não. Para que o fiz? Para o seu bem! Boa paga, não haja duvida. Que esta lição me sirva! Pois, minha senhora, ajuntou elle, voltando-se para D. Marianna, rogo a vossa excellencia que ámanhã, sem falta, até ás onze horas da manhã, encarregue alguem de me tomar contas, e queira vossa excellencia vir tambem, afim de me passar recibo do dinheiro que tenho na minha mão. Hoje mesmo, se lhe fosse possivel, apezar de ser tarde, muito prazer me daria.
—Ámanhã aqui estarei, visto assim o exigir, respondeu D. Marianna, olhando ao mesmo tempo para o advogado, como que esperando a sua opinião.
—Sendo onze horas aqui viremos, disse o jurisconsulto, despedindo se do commendador.
—Que lhe pareceu? perguntou a viuva ao chegarem á porta da rua.
—Um homem honesto, ferido pela ingratidão que acaba de receber, respondeu fleugmaticamente o doutor. Em todo o caso, accrescentou elle, faça vossa excellencia o que quizer; sendo dez horas estarei em sua casa.
No dia immediato, conforme haviam combinado, apresentou se o advogado em casa de D. Marianna de Mendonça.
Ás onze horas metteram-se n'uma traquitana, e dirigiram-se ao escriptorio do commendador.
Contra todos os usos da casa ainda estava fechado.
—Que lhe parece isto? perguntou D. Marianna ao advogado, com mais receio do que na vespera ao perguntar-lhe como lhe havia parecido.
—Que é um homem ferido pela ingratidão, e que anda a tratar de levantar dinheiro para a embolsar d'essa quantia, respondeu elle ingenuamente.
Momentos depois começaram a apparecer varios individuos. O physionomista que de perto os observasse, veria em todos elles a mesma sombra de receio que se revelava no rosto pallido e transtornado de D. Marianna de Mendonça.
D'alli a duas horas ainda Felix de Araujo não tinha apparecido.
—Que lhe parece isto tudo doutor? dizia a viuva ás cinco horas da tarde, olhando para o advogado, que a contemplava com uma physionomia alvar.
Que é um refinado ladrão que nos deixa a todos desgraçados! accudiu um individuo que ouvira a pergunta feita pela viuva.
O commendador Felix Justino de Araujo havia fechado o escriptorio. Domingos de Andrade fugira, roubando dinheiro a todos aquelles que, como D. Marianna de Mendonça, o haviam depositado nas suas mãos.
Cinco dias depois D. Marianna, com a razão perdida, entrava para a casa dos doidos no hospital de S. José.