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II

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Pelos fins do anno de 1858, vivia n'uma pequena casa da Rua do Meio, freguezia de Nossa Senhora da Lapa, Jeronymo de Almeida, honrado mestre de obras, em companhia de sua mulher e de uma filha de dezeseis annos, chamada Martha. A excentricidade de caracter do operario, fazia com que todos os visinhos o detestassem. Para elle, não havia domingos nem dias santificados que o obrigassem a distrair-se do seu trabalho. A sua janella encontrava-se sempre fechada.

O cultivo do microscopico jardim era a unica distracção que n'esses dias se permittia. Alli entre sua mulher e sua filha, Jeronymo mondava o pequeno canteiro de hortaliça, que duas horas depois tinha de fazer as delicias da refeição domingueira. No armario da cozinha, esperava desde a vespera a garrafa do Cartaxo que figurava á sua meza, sobria sempre, porém honradamente disfructada com o suor do rosto.

Emquanto Jeronymo trabalhava no pequeno horto, Balbina, a esposa, assentada na cadeira de costura, largava apenas a agulha para agradecer a Deus o marido que a Providencia lhe havia destinado.

Martha, a preguiçosa Martha como Jeronymo n'esses dias lhe chamava, escondia os ferros de engommar, para seguir seu pae, sorrindo-se e gracejando a cada passo que elle dava pelo jardim.

Toda a visinhança da rua do Meio se mordia de despeito ao contemplar a beatifica tranquillidade d'aquella pobre mas venturosa familia; até uma sobrinha do sr. regedor, que se finava de inveja ao contemplar os olhos verdes de Martha, chegou a dizer ao sr. padre prior que era impossivel que toda aquella gente não tivesse grande peccado na consciencia, attendendo á constante reclusão em que vivia. O sacerdote, que conhecia o invejoso caracter da menina Gertrudes, passou de leve sobre o caso, e contentou-se apenas em responder-lhe que era tal a confiança que depositava na virtude d'aquella familia, que não teria duvida alguma, embora se sacrificasse a pôr fóra de casa a velha ama, a admittir Martha a viver em sua companhia, entregando-lhe nas mãos as chaves da dispensa, e tudo quanto possuia de mais valor. Gertrudes desanimou na lucta, contentando se apenas em desacredital-a em voz baixa, quando por ventura alguma das amigas lhe falava a seu respeito.

Defronte da casa de Jeronymo morava uma pobre velhinha, que se tornava um mysterio para toda a visinhança, passando apenas despercebida da familia do operario, pouco affeita a importar-se com as vidas alheias. A apparencia de sua casa, o seu trajar emfim, tudo revelava summa pobresa, porém nunca a sua mão se estendeu a pedir o obulo da caridade.

A velha costumava sair todas as manhãs a fazer as compras. Um dia a porta conservou-se fechada, e a tia Marianna, segundo lhe chamavam, não apparecia. Ou por curiosidade, ou por interesse, não faltou quem lhe batesse ao postigo. Em resposta ouviram-se apenas uns gemidos. O regedor chamou dois cabos de policia e mandou immediatamente arrombar a porta. Encontraram-n'a exanime sobre o leito. A infeliz havia adoecido com a febre amarella; foi esse um dos primeiros casos que se dera na freguezia da Lapa. Atterrados, não houve quem quizesse approximar se da enferma. Não tardou muito que o facto transpirasse por toda a visinhança. No momento em que o regedor, dois metros affastado da porta, dava as suas ordens para que fossem buscar a maca afim de conduzirem a velha ao hospital da rua do Sol, Martha, a loira Martha, saiu de casa e atravessou a rua, dirigindo-se ao logar do sinistro.

—Onde vae a menina? perguntou o sr. Venancio da Conceição.

—Levar esta gotta de caldo á visinha, respondeu Martha ao previdente regedor.

—Não consinto similhante loucura! disse elle; a velha foi atacada pela febre amarella, e vae immediatamente para o hospital.

—O que vocemecê não me póde impedir, é que eu pratique uma obra de caridade; e demais, veja se está no seu direito de mandar para o hospital uma pessoa que se póde curar em sua casa.

—Essa mulher não se póde tratar em sua casa, não tem familia.

—E quem lhe disse ao sr. que não tem quem a trate? acudiu Martha, afastando o regedor e dirigindo se para o interior da casa da tia Marianna. Ora essa! ajuntou ella, e se eu a quizer tratar, ha de alguem oppôr-se?! Creio que não. Com sua licença, sr. regedor; e entrando animosamente, dirigiu-se a uma alcova, onde a desgraçada, extorcendo-se em dolorosas agonias, cravava os olhos n'um pequeno crucifixo, collocado sobre uma commoda.

Os cabos, regedor, e todos quantos alli se encontravam, olhavam-se mutuamente sem proferir uma só palavra.

—Assim o quer, assim o tenha, disse a auctoridade, depois de alguns instantes de reflexão. Se ella fosse minha filha ou coisa que me pertencesse, por certo que não havia de lá entrar. Eu cá é que não tomo nada, acrescentou elle olhando com receio para dentro da casa.

Instantes depois, saía Martha de casa da velha.

—Mandem chamar immediatamente um medico, disse ella voltando-se para o regedor. Póde ser que ainda lhe possamos acudir. Pelo facto de ser uma pobre mulher, bem vê que não a devemos deixar morrer ao desamparo. E dizendo estas palavras, tornou a entrar para dentro da casa da tia Marianna.

—Vá á botica pedir soccorros, disse o regedor, voltando se para o cabo geral, e que venham immediatamente; porquanto, esta mulher pelo facto de ser pobre, não devemos deixar morrer ao desamparo, ajuntou elle, secundando as palavras de Martha, e repetindo-as como se fossem suas proprias.

O cabo geral, sem mais hesitar, voltou as costas aos circumstantes, e resmungando subiu a rua do Meio, dirigindo-se aonde a auctoridade o havia mandado.

Não tardou muito que á porta da tia Marianna se ajuntasse um circulo de curiosos. As visinhas a quem o terror da cruel epidemia havia infiltrado nos animos o mais terrivel desalento, debalde vociferavam contra a estulta caridade de Martha, e a pueril condescendencia do regedor, em annuir aos desejos da filha do mestre de obras. Revestindo-se emfim de todo o seu poder, o sr. Venancio da Conceição convenceu o auditorio, repetindo-lhe pela segunda vez, que, pelo facto da tia Marianna ser uma pobre, não a deviam deixar morrer ao desamparo.

N'este comenos, appareceu o mestre Jeronymo.

—A sua filha está doida de todo! diziam uns.

-Já tres vezes que vamos avisar a sr.ª Balbina para que a retire d'aquella casa e ainda não houve meios, acudiu uma ajuntadeira de calçado, que nem por isso gozava de muitos bons creditos na visinhança.

—Que loucura! que loucura! dizia a capellista.

—Parece que está a zombar da cholera do Senhor! acudiu respeitosamente a tia Monica, beata que vivia de resas por conta das fidalgas de Buenos Ayres, quando os seus affazeres não lhe permitiam conversar com o Todo Poderoso por conta propria.

—Se Deus a arrasta ao leito da moribunda, elle mesma a salvará, respondeu fleugmaticamente mestre Jeronymo, lendo-se-lhe, apezar de tudo, um certo receio pela vida da criança que estremecia.

—Muito estimo que assim penses, acudiu Balbina, que saira n'este momento de casa. O mesmo pensei eu quando Martha me foi pedir uma gotta de caldo; entregando-lh'o, entreguei a a Deus.

—Pois olhe, sr.ª Balbina, disse a capellista, fosse ella minha filha, não lh'o consentia.

—Cada qual tem o seu modo de pensar, sr.ª Margarida, e Deus fez-me assim; mas deixemo nos de mais dize tu, direi eu, e vamos a ver o que se poderá fazer por aquella infeliz. E sem mais reflexionar, entrou n'esse recinto mortuario, por onde momentos antes sua filha havia desapparecido.

Avé Maria, cheia de graça, o senhor é comvosco, benta sois vós, dizia a beata. Forte impostora! accrescentou ella; aquillo não é senão para se fazer valer na visinhança.

O Conde de S. Luiz

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