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X — O bispo em presença de uma luz desconhecida
ОглавлениеEm época pouco posterior à data transcrita nas páginas precedentes, o prelado fez uma coisa mais arriscada ainda, na opinião de toda a gente da cidade, do que a jornada pela montanha infestada de salteadores. Havia nos arrabaldes de Digne um homem que vivia inteiramente isolado da sociedade. Esse homem, de nome G..., pronunciemos sem a menor hesitação a palavra terrível, era um antigo membro da Convenção Nacional.
Entre o povo de Digne, falava-se no convencional G... com uma espécie de terror. Um convencional! Alguém faz ideia exata do que é essa coisa que existia no tempo em que todos se tratavam por tu e se chamavam uns aos outros cidadãos?
Esse homem era quase um monstro. Não votara a morte do rei, mas pouco menos. Era um meio-regicida, que fora herói do terror. Como fora possível que no estabelecimento dos príncipes legítimos, semelhante homem escapasse ao justo castigo dos seus crimes? Não queriam manchar as mãos no sangue dele? Muito bem. Mas deviam tê-lo expulso, desterrado para toda a vida, dando assim um exemplo, finalmente, etc., etc. Grasnar de gansos acerca do abutre.
E seria realmente um abutre o convencional G...? Decerto, a julgá-lo pela feroz solidão em que vivia. Não compreendido nos decretos de desterro, por não ter votado a morte do rei, fora-lhe concedido residir em França.
Ali habitava, pois, a três quartos de légua da cidade, fora do povoado, longe da estrada, no meio de um vale agreste, onde possuía, segundo diziam, um esconderijo. Não tinha vizinhos e ninguém passava por ali. O carreiro que, em tempo, conduzia ao vale, desaparecera coberto pela erva, depois que ele para ali fora residir. Falava-se daquele sítio como da mansão do carrasco. Todavia, o bispo lembrava-se dele, e de tempos a tempos, olhando para o horizonte, na direção em que uma moita indicava o vale do antigo convencional, dizia para consigo: «Há ali uma alma que vive isolada». E, no fundo do seu pensamento, acrescentava: «O meu dever é ir visitá-la».
Todavia, cumpre confessá-lo, tal ideia, à primeira vista muito natural, após um momento de reflexão, apresentava-se-lhe como estranha, impossível e quase repulsiva, pois no seu íntimo participava da impressão geral, inspirando-lhe o homem, sem ele mesmo ter perfeita consciência disso, esse sentimento que defronta com o ódio, tão bem expresso pela palavra repulsão.
Contudo, deve o pastor fugir da ovelha sarnenta? Não. Mas que ovelha era aquela!
O bondoso bispo sentia-se perplexo. Algumas vezes foi até meio do caminho e voltou sempre para trás.
Um dia, espalhou-se na cidade a notícia de que um rapazinho que estava como criado do convencional viera à cidade em busca de um médico para ir ver o celerado ao seu covil, o qual acometido por um ataque apoplético, estava moribundo, a tal ponto que se receava não passasse daquela noite
— Graças a Deus! — exclamaram alguns.
O bispo pegou na bengala, cobriu-se com o capote, não só por causa do mau estado da batina, como também pela aragem fresca da noite, que não tardaria a levantar-se e saiu.
Declinava o sol, quase a ponto de esconder-se, quando o bispo chegou ao lugar excomungado. Ao ver-se próximo do covil, o coração bateu-lhe em sobressalto. Saltou um valado, transpôs uma sebe, deu alguns passos resolutamente e, de repente, descobriu o esconderijo oculto por um matagal, no fundo do baldio.
Era uma pequena cabana, de aspeto pobre, mas aprazível e asseada, com toda a parte da frente coberta por uma ramada.
A entrada da porta, numa velha cadeira de rodas, estava sentado um homem de cabelos brancos e que parecia sorrir-se para os últimos raios de sol.
Junto do velho sentado, encontrava-se de pé um rapazito, tipo de pastor, apresentando-lhe uma tigela de leite.
Estava ainda o bispo a contemplar este quadro, quando ouviu a voz do velho que dizia:
— Obrigado, já não preciso de nada!
E desfitou os olhos do sol para os fixar, sorrindo, no rapazinho.
O bispo adiantou-se. Ao ruído dos seus passos, o velho voltou a cabeça, exprimindo na fisionomia a surpresa que se pode experimentar depois de tão prolongada existência.
— Desde que aqui estou é esta a primeira vez que alguém vem a minha casa — disse ele. — Quem é o senhor?
— Chamo-me Bemvindo Myriel — respondeu o bispo.
— Bemvindo Myriel... Já ouvi esse nome. Não é ao senhor que o povo chama Monsenhor Bemvindo?
— Exatamente.
O velho prosseguiu com ligeiro sorriso:
— Visto isso, é o meu bispo.
— Creio que sim
— Tenha a bondade de entrar.
O convencional estendeu a mão ao prelado, mas este fingiu não perceber e limitou-se a dizer:
— Vejo com prazer que me enganaram, visto realmente não parecer muito doente.
— Espero dentro em pouco ficar restabelecido — respondeu o velho. E, após uma curta pausa, acrescentou: — Não viverei mais de três horas.
O bispo fitou-o, admirado, e ele continuou:
— Tenho alguns conhecimentos de medicina, por isso conheço os sintomas da morte. Ontem tinha apenas os pés frios; hoje tenho também os joelhos e sinto que o frio me vai subindo para o meio do corpo; quando chegar ao coração, deixarei o mundo. A vista do sol é um belo espetáculo, não acha? Pedi que me trouxessem cá para fora porque queria vê-lo pela última vez. O senhor pode conversar, não me incomoda. Fez muito bem em vir assistir à morte de um homem. É bom que esse momento tenha testemunhas. Cada qual tem a sua mania, desejava viver até ao romper da aurora, mas sei que só me restam três horas para viver. Morrerei de noite, mas, no fim, que importa isso? Acabar é uma coisa simples. Não se necessita de dia para morrer. Paciência, morrerei à luz das estrelas. — E, voltando-se para o rapazinho, disse-lhe: — Vai descansar. Passaste a noite em claro, deves estar fatigado.
O rapazinho retirou-se e o velho, seguindo-o com a vista, acrescentou, como falando consigo mesmo:
— Quando eu morrer, estará ele a dormir. São dois sonos que não se estorvarão.
O bispo não estava comovido, como parece que deveria estar. Não julgava pressentir a presença de Deus naquele modo de morrer; digamos tudo porque as pequenas contradições das grandes almas devem ser apontadas como tudo o mais, ele que, sempre que se oferecia ocasião, ria jovialmente quando lhe davam o tratamento de Vossa Grandeza, sentiu-se um tanto ressentido de não ser tratado por Monsenhor, e esteve quase tentado a replicar: cidadão! Acometera-o uma veleidade de caprichosa familiaridade, muito vulgar nos médicos e nos padres, mas que nele não era natural. Pela primeira vez na sua vida, talvez, o bispo sentiu-se com severa disposição de espírito contra aquele homem que, apesar de convencional, de representante do povo, tinha sido um poderoso na terra.
Ao mesmo tempo que o convencional o contemplava com ar de modesta cordialidade, a que talvez não era de todo estranha a humildade própria do homem que sente aproximar-se o fim.
O bispo, posto que fosse habitualmente pouco curioso, porque, no seu entender, a curiosidade vive paredes meias com a ofensa, não se podia coibir de o examinar atentamente porque, por não provir de um sentimento de simpatia, a sua consciência lhe haveria decerto exprobrado, se tivesse lugar para com outro qualquer homem. No seu entender, porém, um convencional estava fora de todas as leis, mesmo da lei da caridade.
G..., com o seu aspeto sereno e firme, a voz vibrante e grave, era um octogenário dos que causam admiração ao fisiologista. A revolução foi fértil nesses homens proporcionados à época. Conhecia-se naquele velho o homem de ação, que tão próximo da morte, conservava ainda todos os movimentos de saúde. Na sua vista segura, na voz firme, no robusto movimento dos ombros, parecia haver ainda energia de sobejo para repelir a morte. Azrael, o anjo maometano do sepulcro, teria retrocedido, julgando-se enganado na porta.
Aquele homem parecia morrer voluntariamente. A sua agonia parecia um ato espontâneo. Só as pernas tinham perdido o movimento, como se fosse por elas que a morte o tivesse agarrado. Os pés jaziam-lhe mortos e frios, mas a cabeça respirava-lhe toda a seiva da vida e parecia em perfeita lucidez. Naquele grave momento, G... assemelhava-se ao rei do conto oriental, cuja parte superior do corpo era de carne e a inferior de mármore. O bispo sentou-se numa pedra que viu próxima de si e principiou. O seu exórdio foi um ex-abrupto.
— Felicito-o — disse ele em tom de exprobração. — Creio que nem sempre votou a morte do rei.
O convencional pareceu não reparar no sentido oculto da palavra sempre e respondeu com a maior seriedade:
— Não me felicite, porque o que eu votei foi o fim do tirano.
Era a voz austera em presença da severidade.
— Não percebo o que quer dizer — tornou o bispo.
— Quero dizer que o tirano do homem é a ignorância, e que foi a sua morte o que eu votei. Foi esse tirano o autor da realeza, que é a autoridade tomada de ideias falsas, enquanto a ciência é a autoridade tomada da verdade das coisas. O homem só pela ciência deve ser governado.
— E pela consciência — acrescentou o bispo.
— É a mesma coisa. A consciência não é mais do que a quantidade de ciência inata que possuímos.
O bispo escutava, tomado de admiração, aquela linguagem inteiramente nova para ele.
O convencional prosseguiu:
— Quanto a Luís XVI, votei contra a morte dele. Não me julgo com direito de matar um homem, mas tenho o dever de exterminar o mal. Por isso votei o fim do tirano, isto é, o fim da prostituição para a mulher, o da escravidão para o homem, o das trevas para a criança. Votei isto, votando a república. Votei a fraternidade, a concórdia, a aurora. Trabalhei na queda dos erros e dos preconceitos, de cujo desmoronamento resulta sempre a luz. Fizemos cair a sociedade velha, vaso de misérias, que, ao derramar-se sobre o género humano, se converteu em uma de felicidade!
— Felicidade amarga! — retorquiu o bispo.
— Pode dizer felicidade perturbada; e hoje, depois desse fatal restabelecimento do passado chamado 1814, felicidade desaparecida. Desgraçadamente, reconheço, a obra ficou incompleta; demolimos o antigo regime nos factos, mas não pudemos exterminá-lo inteiramente nas ideias. Não basta destruir os abusos, é necessário modificar os costumes. Destruiu-se o moinho, mas ainda ficou o vento.
— Demolir pode ser que seja útil, mas desconfio sempre de demolições em que entra a cólera.
— O direito tem também a sua cólera, senhor bispo, e a cólera do direito é um elemento do progresso. Assim, digam o que disserem, a revolução francesa foi o maior passo que a humanidade tem dado depois do aparecimento de Cristo. Incompleta, concordo, mas sublime. Resolveu todas as incógnitas sociais, suavizou os espíritos, acalmou, pacificou, esclareceu; inundou a terra das ondas da civilização Foi portanto boa! A revolução francesa foi a santificação da humanidade.
O bispo não pôde conter-se e retorquiu:
— Sim? E 93?
O convencional endireitou-se na cadeira com solenidade quase lúgubre e exclamou com toda a energia possível a um moribundo:
— Aí vem com 93! Já estava à espera disso! Há mil e quinhentos anos principiou a formar-se uma nuvem que, ao cabo de quinze séculos, rebentou. E o senhor vem acusar o raio!
Apesar de tentar encobri-lo a si próprio, o bispo sentiu-se ferido, porém, respondeu, aparentando indiferença:
— O juiz fala em nome da justiça e o sacerdote em nome da religião, que é uma justiça mais elevada. O raio não deve enganar-se. — E olhando fixamente para o convencional, acrescentou: — E Luís XVII?
— Luís XVII? Ora vejamos. Quem é que o senhor lastima? É a criança inocente? Nesse caso, estamos de acordo, porque choro com o senhor. É a criança real? Peço que me deixe refletir. Para mim, o irmão de Cartouche, menino inocente, atado à força por baixo dos braços e suspenso até o fazerem morrer, só pelo crime de ser irmão de Cartouche, não é facto menos doloroso do que o martírio porque passou o neto de Luís XV na torre do Templo, só pelo facto de ser neto de Luís XV.
— Eu é que não posso aceitar a aproximação de semelhantes nomes — disse o bispo.
— Mas por qual dos dois reclama? Por Cartouche ou por Luís XVII?
Seguiu-se um momento de silêncio. O bispo quase se arrependia de ter ido ali, porque se sentia estranhamente impressionado.
O convencional prosseguiu:
— Vejo que não gosta do rigor da verdade, senhor padre! Gostava Cristo, que pegava numa vara e varria o templo. O seu azorrague cheio de relâmpagos dizia bem rudes verdades. Quando exclamava: Sinite parvulos, não fazia distinção entre as crianças. Não teria escrúpulo de juntar o filho de Barrabás com o filho de Herodes. O tratamento de Alteza não serve de nada à inocência, porque tão augusta é coberta de andrajos como quando adornada de arminhos!
— É exato — disse o bispo em voz baixa.
— Insisto, pois, na minha opinião — continuou o convencional. — Falou-se em Luís XVII, entendamo-nos, portanto. Devemos chorar sobre todos os inocentes, sobre todos os mártires, sobre todas as crianças, sejam filhos do povo, sejam filhos do rei? De acordo. Mas então, repito, é necessário retroceder muito além de 93, porque é antes de Luís XVII que as lágrimas devem começar a ser derramadas. Estou pronto a chorar com o senhor os filhos dos reis, contando que o senhor chore comigo, os filhos do povo!
— Eu choro por todos — disse o bispo.
— Igualmente! — exclamou G... — Mas se a balança deve inclinar para alguma parte, que seja antes para o lado dos filhos do povo, porque há mais tempo que sofrem!
Seguiu-se nova pausa, a qual foi interrompida pelo convencional. Firmou-se num dos cotovelos, apertou entre o polegar e o índice dobrado a pele da cara, com o gesto maquinal de quem interroga ou reflete, e fitou no bispo um olhar perscrutador, que respirava toda a energia da agonia. Foi quase uma explosão.
— Sim, senhor bispo, há muito que o povo sofre! Mas faça o favor de dizer-me: o que pretendia ao vir interrogar-me e falar-me sobre Luís XVII, o senhor a quem eu nem sequer conheço? Desde que resido nesta terra, tenho vivido sempre aqui encerrado, sem companhia, sem ver ninguém, além desse rapazinho que me tem servido. O seu nome é verdade que o ouvi por duas ou três vezes e, devo dizê-lo, pronunciado com respeito, mas isso nada quer dizer; os homens astuciosos sabem perfeitamente como se lança poeira nos olhos do povo. É verdade, eu não ouvi o ruído da sua carruagem; deixou-a decerto oculta no arvoredo, à entrada do caminho que conduz aqui? Repito-lhe, não o conheço, disse-me que era o bispo, mas isso nada me adianta no conhecimento das suas qualidades morais. Em suma, o senhor é um bispo, quer dizer, um príncipe da Igreja, um desses homens que se cobrem de ouro e arminhos, vivem no fausto e nos regalos, cobram boas rendas, disfrutam bispados: por exemplo, o de Digne que tem de renda fixa quinze mil francos e dez mil de emolumentos, soma vinte e cinco mil francos: é um desses homens que têm lacaios, mesa lauta, onde à sexta-feira se serve o melhor peixe; que rodeados de criados se pavoneiam em coches de gala e habitam palácios, tudo em nome de Jesus Cristo, que andava descalço! O senhor é um prelado, quer dizer, um homem com rendimentos, palácios, cavalos, lacaios, boa mesa, todas as sensualidades da vida, enfim, que possui como os outros e das quais como qualquer outro goza. Está muito bem, mas isso diz mais ou menos que o suficiente; não me esclarece sobre o seu valor intrínseco, essencial para quem, como o senhor, talvez, vem aqui com o intuito de me dar sabedoria e luz? Com quem estou a falar? Quem é o senhor?
O bispo inclinou a cabeça e respondeu:
— Vermis sum.
— Um verme de carruagem! — murmurou o convencional.
Chegara a sua vez de se mostrar altivo e o bispo humilde.
— Pois seja assim! — replicou o bispo suavemente. — Mas explique-me de que modo prova a minha carruagem, que deixei oculta entre o arvoredo, a minha boa mesa, o peixe que nela se serve à sexta-feira, o meu rendimento de vinte e cinco mil francos, o meu palácio e os meus lacaios, como é que tudo isto prova não ser a piedade uma virtude, a clemência um dever e que 93 não foi inexorável?
O convencional passou a mão pela fronte como que para afastar um pensamento e em seguida disse:
— Antes de lhe responder, peço-lhe que me perdoe a falta que cometi. O senhor está em minha casa, é meu hóspede, devo tratá-lo com cortesia. Discute as minhas ideias, devo limitar-me a combater os seus raciocínios. As suas riquezas, os seus gozos são outras tantas vantagens que eu tenho a meu favor no debate, mas de que parece mal servir-me Prometo, portanto, não o tornar a fazer.
— Agradeço-lhe a intenção — disse o bispo.
G... continuou:
— Voltemos à explicação que me pediu. Em que ponto estávamos? Dizia-me, se bem me lembro, que 93 foi inexorável.
— Inexorável, isso mesmo! — repetiu o bispo. — Que ideia faz de Marat batendo as palmas em frente da guilhotina?
— Que ideia faz de Bossuet entoando um Te-Deum, depois das dragonadas?
A resposta era cruel, mas foi direita ao alvo com a rigidez de uma ponta de aço. O bispo estremeceu e emudeceu, mas sentiu-se ofendido ao ouvir citar Bossuet de semelhante modo. Os espíritos mais esclarecidos têm os seus ídolos e às vezes como que se agastam com os desacatos da lógica.
O convencional principiava a respirar com dificuldade, a asma da agonia entrecortava-lhe já a voz; todavia, notava-se-lhe ainda nos olhos perfeita lucidez da alma e prosseguiu:
— Digamos ainda algumas palavras sobre o assunto, que desejo imenso. Tirando a revolução, que, tomada em geral, foi uma grande afirmativa humana, 93 é uma réplica. O senhor acha-a inexorável, mas que tem sido a monarquia? Carrier é um facínora, mas que nome dá a Montrevel? Fouquier-Finville é um miserável, mas que conceito forma de Lamoignon-Bâville? Maillard é uma criatura repugnante, mas que diz de Saulx Tavannes? O padre Duchesne é um homem feroz, mas que epíteto acha o senhor que merece o padre Letellier? Jourdan-Coup-Tête é um monstro, mas muito menos hediondo do que o marquês de Louvois. Lamento Maria Antonieta, arquiduquesa e rainha, mas lamento também aquela pobre mulher huguenote, que em 1685, no reinado de Luís o Grande, foi atada a um poste, nua até à cintura, com o filhinho que amamentava abandonado a alguma distância; o seio transbordava-lhe de leite e o coração de angústia; a infeliz criancinha, esfomeada e pálida, agonizava e gritava, sem poder colar os lábios naquele seio, e o algoz dizia à infeliz mãe: «Abjura!», dando-lhe a escolher entre a morte do filho e a da consciência. Que lhe parece este suplício de Tântalo acomodado a uma pobre mãe? Creia, senhor bispo, a revolução francesa teve as suas razões. A sua ira há de encontrar absolvição no futuro. O resultado dela será um mundo melhor. Os seus golpes mais terríveis escondem um afago ao género humano. Mas não posso mais... fiz o meu... dever... a morte avizinha-se.
E, desfitando os olhos do bispo, concluiu o seu pensamento nestas poucas palavras:
— As brutalidades do progresso chamam-se revoluções! Depois delas terminadas todos reconhecem que o género humano foi severamente maltratado, mas que deu alguns passos em frente!
Mal suspeitava o convencional que, uns após outros, acabava de derrubar todos os redutos do espírito do bispo. Todavia, ainda um ficava de pé, e dele, supremo recurso da resistência de Monsenhor Bemvindo, saíram estas palavras, que deixava de novo transparecer toda a severidade de há pouco:
— O progresso deve crer em Deus. O bem não pode ter por servidora a impiedade. Mal vai ao género humano, se o ateísmo é seu guia!
O antigo representante do povo não respondeu. Sentiu um estremecimento, fitou os olhos no céu e duas lágrimas lhe deslizaram pelas faces lívidas. Depois, lentamente, em voz baixa, como que falando consigo mesmo, murmurou:
— Só tu, ó ideal, só tu existes!
O bispo sentiu uma inexplicável comoção.
Depois de alguns instantes de silêncio, o convencional ergueu um dedo para o céu, dizendo:
— O infinito existe, está bem! Se o infinito não tivesse um eu, o eu seria o seu limite e, portanto, não seria infinito, ou, por outras palavras, não existiria. Ora ele existe. Logo tem um eu. O eu do infinito é Deus!
Estas palavras foram proferidas em voz alta pelo moribundo, com o estremecimento do êxtase, como se estivesse vendo alguma coisa extraordinária. Apenas acabou de falar, fechou os olhos. O esforço que fizera extenuara-o. Era evidente que aquele homem acabava de viver num minuto as poucas horas que lhe restavam de vida. Chegara, enfim, o momento supremo.
O bispo compreendeu-o, compreendeu toda a urgência da ocasião e que fora ali como sacerdote. Passando então gradualmente do extremo da frieza à extrema comoção, contemplou aqueles olhos fechados, pegou na mão inerte e gelada do moribundo, dizendo-lhe:
— Esta hora pertence a Deus! Não acha que seria para lamentar que o nosso encontro não tivesse resultado?
A estas palavras, o convencional reabriu os olhos com aspeto de sombria gravidade.
— Senhor bispo — disse ele com lentidão, procedida talvez mais da dignidade de alma do que da falta de forças — tenho passado a minha vida na meditação, no estudo e na contemplação. Tinha sessenta anos quando fui chamado pelo meu país, para tomar parte na direção dos seus negócios. Obedeci. Combati os abusos que nele se davam; havia tiranias, destruí-as; havia direitos e princípios, proclamei-os e professei-os. O território estava invadido, defendi-o; a França estava ameaçada, ofereci-lhe o meu sangue. Não era rico e fiquei pobre. Fui um dos senhores do Estado; os subterrâneos do Banco encontravam-se atulhados de dinheiro, a ponto de ser preciso escorar as paredes para não abaterem com o peso do ouro e da prata, e eu ia comer todos os dias a uma hospedaria da rua de l’Abre-Sec, onde se jantava por vinte e dois sous. Socorri os oprimidos, protegi os que sofriam. Rasguei as toalhas dos altares, é verdade, mas foi para ligar as feridas da pátria. Sustentei sempre o progresso da humanidade para a luz e opus-me algumas vezes ao progresso inexorável. Protegi sempre que me foi possível os meus próprios adversários; haja em vista o convento de urbanistas chamado de Santa Clara, situado no lugar de Petegben, na Flandres, exatamente onde os reis merovíngios possuíam o seu palácio de verão, que eu salvei em 1793. Cumpri com o meu dever até onde pude e fiz o bem que me foi possível. No fim de tudo isto, fui expulso, perseguido, escarnecido, conspurcado, amaldiçoado, proscrito. Passados já tantos anos e apesar dos meus cabelos brancos, muita gente se julga ainda com direito de me desprezar; para a multidão ignorante tenho rosto de condenado e eu resigno-me sem ódio ao isolamento do ódio. Agora, com oitenta e seis anos, vou morrer. Que pretende o senhor de mim?
— A sua bênção — disse o bispo, ajoelhando.
Quando o prelado ergueu a cabeça, sentiu-se impressionado pela augusta expressão do convencional. Aquele homem sublime havia expirado.
O bispo regressou a casa profundamente absorto nos seus pensamentos. Aquela noite passou-a a orar. No dia seguinte, alguns curiosos tentaram falar-lhe no convencional G...; o bispo, por única resposta, limitou-se a apontar-lhes para o céu. De então em diante, o prelado redobrou de afeto e comiseração para com os pequenos e os desvalidos.
A menor alusão ao «velho celerado G...» fazia-o cair em profunda meditação. Ninguém podia negar que a passagem daquele espírito pela frente do seu e que o reflexo daquela grande consciência sobre a sua, tinham contribuído para o aproximar da perfeição.
Como era de esperar, a «visita pastoral» ao antigo membro da Convenção deu que falar durante algum tempo aos ociosos da terra.
— É porventura à cabeceira de tal moribundo o lugar de um bispo? Era evidente não haver ali a esperança de conversão; todos os revolucionários são relapsos. Para que foi lá o bispo? Que tinha a fazer em semelhante lugar? Sempre era preciso estar com muita vontade de ver como o diabo levava uma alma!
Certa ocasião, uma senhora já idosa, pertencente à classe que se julga espirituosa, disse-lhe:
— Andam todos ansiosos por saber quando recebe Vossa Grandeza o barrete vermelho.
— É uma cor muito viva — respondeu o bispo. — Felizmente, os que a desprezam nos barretes, veneram-na nos chapéus.