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Capítulo 6 — A Bilha Quebrada

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Depois de ter corrido à desfilada durante algum tempo, sem saber por onde, batendo com a cabeça em muita esquina de rua, saltando muitas valetas, atravessando muitas vielas, muitos becos, muitas travessas, procurando fuga e passagem através de todos os meandros das velhas ruas dos Halles, o nosso poeta parou de repente, de cansaço primeiro, depois de algum modo filado por um dilema que acabava de lhe surgir no espírito.

— Parece-me, mestre Pierre Gringoire — disse ele a si próprio, apoiando o dedo na testa — que andais a correr como um doido. Os velhacos dos rapazes tiveram tanto medo de vós como vós deles. Parece-me, digo-vos, que ouvistes o ruído dos seus tamancos que fugiam para o sul, enquanto vós fugíeis para o norte. Ora, de duas coisas, uma: ou eles fugiram, e então a enxerga, que eles deveram esquecer no seu terror, é precisamente o leito hospitaleiro atrás do qual vós correis desde pela manhã e que a Virgem vos envia milagrosamente para vos recompensar de terdes feito em sua honra um mistério acompanhado de triunfos e momices; ou os rapazes não fugiram, e nesse caso puseram fogo à enxerga, e aí está justamente o excelente fogo de que tendes necessidade para vos regozijar, secar e aquecer. Nos dois casos, bom fogo ou boa cama, a enxerga é um presente do céu. A bendita Virgem Maria, que está à esquina da rua Mauconseil, não fez morrer Eustáquio Moubon senão para isso; e sois doido em assim fugir, deitando as tripas pela boca fora, como um picardo diante de um francês, deixando atrás de vós o que procurais adiante; sois um doido!

Voltou então sobre os seus passos e, orientando-se e farejando, com o nariz ao vento e as orelhas à espreita, esforçou-se por encontrar a bem-aventurada enxerga, mas debalde. Eram só interseções de casas, becos, pés de pato, no meio dos quais, a cada instante, hesitava e duvidava, mais embaraçado e mais enviscado nesse enredado de vielas escuras, do que o ficaria no labirinto do palácio das Tournelles. Perdeu a paciência, e bradou solenemente:

— Malditas sejam as encruzilhadas! Foi o Diabo que as fez, à semelhança do seu forcado!

Esta exclamação aliviou-o um pouco e uma espécie de reflexo avermelhado que descobriu ao cabo de uma estreita e comprida viela, acabou de reanimar o seu ânimo abatido.

— Deus! — disse ele. — É acolá em baixo! É a minha enxerga a arder.

Mal dera alguns passos na comprida viela por onde se metera, viela em declive, não calçada e de mais a mais lamacenta e inclinada, logo notou qualquer coisa bastante singular. Não reinava nela a solidão; aqui e ali, em todo o seu cumprimento, rojavam-se não sei que massas vagas e informes, dirigindo-se todas para o clarão que tremia no fim da rua, como esses pesados insetos que se arrastam de noite, de erva em erva, em direção à fogueira que o pastor acende.

Predispõe a aventuras a leveza de algibeiras. Gringoire continuou, pois, a avançar, e em breve alcançou uma dessas larvas que se arrastava mais preguiçosamente no encalço das outras. Abeirando-se dela, viu que era apenas um miserável estropiado que caminhava servindo-se das mãos, como um caranguejo ao qual deixassem apenas duas pernas. Na ocasião em que passava junto dessa espécie de aranha com rosto de homem, disse-lhe ela em voz lamuriosa:

La buona mancia, signor! La buona mancia!

— Que os diabos te levem! — disse Gringoire. — E eu contigo, se sei o que tu queres dizer!

E passou além.

Encontrou uma outra dessas massas ambulantes e examinou-a. Era um inválido, coxo e maneta, e tão coxo e tão maneta que o sistema complicado de muletas e pernas de pau que o sustentava lhe dava o aspeto de um andaime a caminhar. Esse andaime vivo saudou-o quando ele passava, mas levando o chapéu à altura do queixo de Gringoire, como uma bacia de barba e gritando-lhe aos ouvidos:

Señor caballero, para comprar un pedazo de pan!

— Parece-me — disse Gringoire —, que este também fala; mas, se ele se entende é mais feliz do que eu.

Depois, batendo na testa onde subitamente surgira uma ideia: — A propósito, que diabo queriam eles dizer esta manhã com a sua Esmeralda?

Quis estugar o passo, mas pela terceira vez qualquer coisa lhe tolheu o caminho. Esta qualquer coisa, era um cego, baixo, com cara de judeu, muito barbudo, que remando no espaço com um cajado e rebocado por um cão lhe disse em voz fanhosa e com acento húngaro: Facitote caritatem!

— Ora, ainda bem! — exclamou Pierre Gringoire. — Até que encontro um que fala língua de cristão. Devo ter cara de um sujeito muito esmoler para que me peçam esmola no estado de magreza em que tenho a bolsa. Meu amigo (e voltou-se para o cego) vendi na semana passada a última camisa.

E dizendo isto, voltou as costas ao cego e prosseguiu o seu caminho. Mas o cego alongou o passo medindo-o pelo dele e surgiram também o inválido e o estropiado, todos desembaraçados, com grande ruído de escudelas e muletas batendo no chão. Depois os três, largando atrás do pobre Gringoire recomeçaram a ladainha:

Caritatem!— cantava o cego.

La buona mancia! — cantava o estropiado.

E o coxo continuava no mesmo tom repetindo:

Un pedazo de pan!

Gringoire tapou os ouvidos.

— Oh, que torre de Babel! — bradou ele.

E largou a correr. E o cego, e o coxo, e o estropiado largaram também atrás.

Depois à medida que avançava pela rua, estropiados, cegos, coxos, pulularam em volta dele, e manetas e tortos, e leprosos, uns a sair das casas, outros dos becos, estes dos respiradouros das adegas, ululando, mugindo, ganindo, todos coxeando, aos encontrões, precipitando-se para a fogueira, espojando-se na lama como lesmas depois da chuva.

Gringoire, sempre acompanhado dos seus três perseguidores, e não sabendo o que ia ser feito dele, caminhava espavorido pelo meio dos outros, desviando-se dos coxos, saltando por cima dos estropiados, tropeçando nesse formigueiro de disformidades, como aquele capitão inglês que caiu num viveiro de caranguejos.

Veio-lhe à ideia voltar para trás. Mas já era tarde. Toda aquela legião se condensara e os seus três mendigos não o largavam. Continuou, pois, impelido a um tempo por aquela vaga terrível, pelo medo e pela vertigem que lhe fazia de tudo aquilo uma espécie de sonho terrível.

Afinal chegou à extremidade da rua. Desembocava numa praça imensa, onde mil luzes dispersas cintilavam no vago nevoeiro da noite. Gringoire fugiu para lá na esperança de escapar pela ligeireza das pernas, dos três espectros enfermos que se tinham agarrado a ele.

Adonde vas, hombre? — gritou o paralítico atirando fora as muletas e correndo atrás com as melhores pernas que em Paris poderiam aparecer para o passo geométrico. E o estropiado, de pé e todo direito, enfiou na cabeça de Gringoire a sua pesada tigela chapeada de ferro e o cego olhou-o de frente com olhos coruscantes.

— Onde estou eu? — perguntou o poeta aterrado.

— No pátio dos Milagres — respondeu um quarto espectro que se tinha acercado.

— Pela salvação da minha alma — replicou Gringoire. — Bem vejo os cegos com vista e os coxos com pernas, mas onde está o Salvador?

Responderam-lhe com uma gargalhada sinistra.

O pobre poeta lançou os olhos em redor. Estava efetivamente nesse terrível Pátio dos Milagres onde nunca um homem de bem entrava a semelhante hora; círculo mágico onde os oficiais de Châtelet e os aguazis do prebostado que se arriscavam a transpô-lo, desapareciam em migalhas; cidade dos ladrões, hedionda verruga no rosto de Paris; esgoto de onde saía todas as manhãs, e onde se recolhia todas as noites, esse rio de vícios, de mendicidade e de vagabundagem sempre transbordando nas ruas das capitais; colmeia monstruosa onde todos os zangãos da ordem social vinham depor a sua colheita; asilo monstruoso onde o boémio, o frade que abandonou o hábito, o estudante que abandonou as aulas, os birbantes de todas as nações, espanhóis, italianos; de todas as religiões, judeus, cristãos, maometanos, idólatras, cobertos de chagas fingidas, mendigando de dia, transformando-se de noite em bandidos; imenso guarda-roupa, numa palavra, onde se vestiam e despiam naquela época os atores dessa comédia eterna que o roubo, a prostituição e o assassínio representam no palco de Paris.

Era uma praça vasta, irregular e mal calçada como todas as praças de Paris desse tempo. Aqui e ali brilhavam fogueiras à roda das quais formigavam grupos extravagantes. Tudo isso se movia, se agitava, gritava. Ouviam-se gargalhadas agudas, vagidos de crianças, vozes de mulheres. As mãos, as cabeças dessa multidão, negras sobre um fundo luminoso, denunciavam mil gestos bizarros.

Por momentos, no chão, onde a claridade das fogueiras tremia, de mistura com grandes sombras indefinidas, podia ver-se passar um cão que se assemelhava a um homem, um homem que se assemelhava a um cão. Os limites das raças e das espécies pareciam desaparecer neste recinto como num pandemonium. Homens, mulheres, animais, idade, sexo, saúde, doenças, tudo parecia existir em comum nesse povo; tudo se misturava, se ajuntava, se confundia, se sobrepunha; todos participavam de tudo.

Gringoire, cada vez mais transido de medo, agarrado pelos três mendigos como por três tenazes, ensurdecido por um sem-número de outras caras que se encarneiravam e latiam em volta dele, o desventurado Gringoire diligenciava recuperar a sua presença de espírito, lembrar-se se aquele dia era sábado. Mas eram baldados os seus esforços; partira-se o fio da sua memória e do seu pensamento; e duvidando de tudo, flutuando entre o que via e o que sentia, formulava a si próprio esta insolúvel questão:

— Se existo, isto é verdade? Se isto é verdade, existo?

Neste momento elevou-se um brado que dominou a tumultuosa gritaria que o cercava:

— Levemo-lo ao rei! Levemo-lo ao rei!

— Virgem Santa! — murmurou Gringoire. — O rei desta gente deve ser algum bode.

— Ao rei! Ao rei! — repetiram todas as vozes.

E arrastavam-no. Todos queriam pousar sobre ele as garras. Mas os três mendigos não largavam a presa e arrancavam-no aos outros, bramindo:

— É nosso!

O gibão já doente, do poeta, rendeu nesta luta o último suspiro.

Ao atravessar a horrível praça dissipou-se-lhe a vertigem. Ao cabo de alguns passos, voltara-lhe o sentimento da realidade. Começava a acostumar-se à atmosfera do lugar. O Pátio dos Milagres não era mais do que uma taberna, mas uma taberna de bandidos, tão vermelha de sangue como de vinho.

O espetáculo que se lhe ofereceu aos olhos, quando a andrajosa escolta chegou ao termo da sua carreira, não era próprio para inspirar poesia, mesmo que essa poesia fosse a do inferno. Era mais do que nunca a prosaica e brutal realidade da taberna.

À volta de uma grande fogueira a arder sobre uma larga pedra redonda e cujas chamas penetravam por entre as hastes avermelhadas de uma trempe, na ocasião devoluta, algumas mesas carunchosas estavam postadas ao acaso. Sobre essas mesas, nalguns copos escorria o vinho e a cerveja e à volta desses copos agrupavam-se um sem-número de caras báquias, purpureadas pelo fogo e pelo vinho. Um soldado fingido, um intrujão, como se diz em calão, desfazia, assobiando, as ligaduras de uma ferida simulada e punha à vontade o joelho são e vigoroso, comprimido desde pela manhã por aquele aparelho. Um pustulento, ao inverso, preparava com caledónia e com sangue de boi a sua perna de Lázaro para o dia seguinte. Duas mesas mais longe, um conchudo com o seu trajo completo de peregrino, soletrava a Salve-rainha, sem se esquecer da salmodia e do tom fanhoso. Mais além, um novato tomava lições de epilepsia com um epilético fingido que lhe ensinava a arte de fazer espuma mascando um pedaço de sabão. Ao lado dele, um hidrópico desinchava e fazia tapar o nariz a quatro ou cinco ladras que disputavam entre si, assentadas à mesma mesa, uma criança que tinham roubado.

Apenas se ouviam gargalhadas e canções obscenas.

Cada um tratava de si, resmungando e praguejando, sem fazer caso do vizinho. Os copos tocavam-se, as questões nasciam do toque dos copos e os copos rachados faziam despedaçar os andrajos.

Perto da fogueira havia um tonel. Sobre esse tonel um mendigo. Era o rei no seu trono.

Os três que seguravam Gringoire conduziram-no para esse tonel e em toda aquela bacanal fez-se um momento de silêncio.

Gringoire não ousava respirar nem levantar os olhos.

Hombre, quita tu sombrero! — disse um dos três patifes que dele tinham tomado conta; e antes que o pobre tivesse compreendido o que isso queria dizer, já o outro lhe tinha tirado o chapéu. Miserável chapéu, é verdade, mas que ainda assim servia para um dia de sol ou de chuva; Gringoire suspirou.

O rei, do alto da sua pipa, dirigiu-lhe a palavra.

— Quem é o maroto?

Gringoire estremeceu. Aquela voz, apesar do seu tom de ameaça, lembrou-lhe uma outra que na manhã daquele dia dera a primeira punhalada no seu mistério, dizendo em voz fanhosa, no meio do auditório: Uma esmola, por amor de Deus! O pobre poeta levantou a cabeça. Era efetivamente Clopin Trouillefou.

Clopin Trouillefou, revestido das suas insígnias reais, não tinha um farrapo de mais nem de menos. A chaga do braço desaparecera. Empunhava um desses chicotes, de tiras de couro branco, de que nesse tempo se serviam os aguazis para conter em respeito a multidão. Tinha na cabeça uma espécie de touca guarnecida de arcos e fechada no alto; mas era difícil distinguir se era uma coifa de criança se uma coroa de rei, tanto as duas coisas se assemelham.

No entanto Gringoire, sem saber porquê, criara alguma esperança ao reconhecer no rei do Pátio dos Milagres o seu maldito mendigo da sala grande.

— Mestre — balbuciou ele. — Monsenhor... Sire... Como vos devo chamar? — disse ele por fim, chegado ao ponto culminante do seu crescendo e não sabendo já como subir ou descer.

— Monsenhor, Majestade, ou camarada, chama-me como quiseres. Despacha-te. Que tens a dizer em tua defesa?

Em tua defesa? — pensou Gringoire. — Não gosto disso. — respondeu pois gaguejando: — Eu sou aquele que esta manhã...

— Pelos cornos do Diabo! — interrompeu Clopin. — O teu nome, maroto, e mais nada. Ouve, tu estás perante três poderosos soberanos; eu, Clopin Trouillefou, rei de Tunes, sucessor do grande Coèsre, supremo suserano do rei do calão; Matias Hungadi Spicali, duque do Egito e da Boémia, aquele figo seco que tu acolá vês com uma rodilha à volta da cabeça; Guilherme Rousteau, imperador da Galileia, aquele gordo. Somos os teus juízes. Entraste no reino do calão sem a ele pertenceres; violaste os privilégios dos nossos domínios. Deves ser castigado, a menos que não sejas ladrão, mendigo ou vagabundo. És alguma destas coisas? Justifica-te, pois; diz lá as tuas qualidades.

— Infelizmente — retorquiu Gringoire —, não tenho nenhuma dessas honras. Sou aquele autor...

— Basta — atalhou Troillefou, sem o deixar acabar. — Vais ser enforcado. Uma coisa simplicíssima, meu amigo. Anda lá, reparte alegremente os teus farrapos com essas meninas. Mando enforcar-te para divertir os amigos a quem vais dar a tua bolsa para beberem uma pinga. Se tens alguma momice a fazer, há lá em baixo, num púlpito, um excelente Deus Padre, de pedra, roubado em S. Pierre de Bois. Tens quatro minutos para lhe atirares com a alma à cabeça.

Era formidável, aquela arenga.

— Bem dito, pela minha salvação! Clopin Trouillefou prega como um padre santo! — bradou o imperador da Galileia, quebrando a caneca para calçar a mesa.

— Senhores imperadores e reis! — disse, com sangue-frio, Gringoire (porque não sei como lhe veio o ânimo que o fazia falar resolutamente). — Não pensem nisso; eu chamo-me Pierre Gringoire e sou aquele poeta de quem esta manhã se apresentou um mistério na grande sala do Palácio.

— Ah! És tu, mestre! — disse Clopin. — Eu também estava. E então, camarada, porque nos fizeste aborrecer de manhã é motivo para não seres enforcado à noite?

«há de custar a livrar-me desta», pensou Gringoire.

Tentou, por isso, mais um esforço.

— Eu não sei por que razão — disse ele — é que os poetas não são classificados como vagabundos. Vagabundo foi Esopo; mendigo foi Homero; ladrão, era Mercúrio...

Clopin interrompeu-o:

— Parece que queres intrujar-nos com esse teu palavreado. Deixa-te enforcar e não gastes feitios.

— Perdão, senhor rei de Tunes! — replicou Gringoire, disputando o terreno palmo a palmo. — A coisa vale a pena... Um momento só... Ouvi-me... Não me condeneis sem me ouvir... a sua desgraçada voz, efetivamente, era coberta pela berraria que à roda dele se fazia.

No entanto, Clopin Trouillefou pareceu conferenciar um momento com o duque do Egito e com o imperador da Galileia, que estava completamente bêbedo. Depois gritou, de mau humor:

— Silêncio!

Fez um sinal, e logo o duque, o imperador, os mendigos e os leprosos, vieram postar-se à volta dele, em forma de ferradura, da qual Gringoire, sempre brutalmente agarrado, ocupava o centro. Era um semicírculo de farrapos, de andrajos, de lantejoulas, de forcados, de machados, de pernas cambaleantes, de gordos braços nus, de caras sórdidas, sem expressão, idiotas. No meio desta távola redonda de velhacos, Clopin Trouillefou, como doge deste senado, como rei desta câmara de pares, como papa deste conclave, exercia o seu império, primeiro, de toda a altura do seu tonel, depois, com não sei que ar altivo, feroz, temível, que lhe animava a pupila e que corrigia no seu perfil selvagem o tipo bestial da raça vagabunda. Dir-se-ia uma cabeça desgrenhada entre trombas de javalis.

— Ouve lá — disse ele a Gringoire, acariciando o queixo disforme com a mão calosa. — Não vejo razão para que não sejas enforcado. É verdade que parece que tens nisso repugnância, o que se explica facilmente. Afinal de contas, não te queremos mal e vamos propor-te um meio de saíres presentemente destas talas. Queres ser dos nossos?

Pode julgar-se o efeito que tal proposta fez em Gringoire, que via a vida a fugir-lhe e que começava a desesperar. Agarrou-se a ela com unhas e dentes.

— Pois decerto que quero — disse ele.

— Estás disposto — continuou Clopin — a alistar-te?

— Sem hesitar — respondeu Gringoire.

— Reconheces-te vassalo do reino do calão?

— Sim.

— Vagabundo?

— Sim.

— De alma e coração?

— De alma e coração.

— Tenho a observar-te — continuou o rei — que nem por isso deixarás de ser enforcado.

— Diabo! — disse o poeta.

— A diferença está unicamente — continuou Clopin no mesmo tom — em que serás enforcado mais tarde, à custa desta boa cidade de Paris, numa bela forca de pedra e por gente honrada. É uma consolação.

— Assim é — confirmou Gringoire.

— Ainda há outras vantagens. Na tua qualidade nova, não tens a pagar nem custas, nem pobres, nem lanternas, a que estão sujeitos os burgueses de Paris.

— Estimo — disse o poeta. — Estou por tudo. Fico sendo vagabundo, ladrão, tudo o que quiserdes; e depois eu já era tudo isso, senhor rei de Tunes, porque sou filósofo, como sabeis.

— Por quem me tomas tu, ó meu amigo? Eu já nem mesmo roubo, estou acima disso, mato. Corta-gasganetes, sim; corta-bolsas, não.

Gringoire procurou meter uma desculpa boa entre aquelas breves palavras que a cólera mais e mais precipitava.

— Peço-vos perdão, monsenhor.

— O que eu te digo — continuou Clopin com violência —, é que não sou judeu, e que te mandarei enforcar, sinagogo do inferno! Junto com esse traste que está ao pé de ti e que espero ver ainda um dia pregado num balcão como moeda falsa que é.

E ao dizer isto, designava com o dedo o judeu húngaro, baixo e barbudo que se acercava de Gringoire com o seu Facitote caritatem, e que não compreendendo outra língua, via com surpresa o mau humor do rei de Tunes despejar-se sobre ele. Afinal monsenhor Clopin sossegou.

— Patife — disse ele ao nosso poeta — queres ser então dos nossos?

— Quero — respondeu o pobre Gringoire.

— Querer não é tudo — observou o desabrido Clopin — boa vontade não aduba panela e só serve para ganhar o paraíso: ora, paraíso e calão são duas coisas diferentes. Para entrares para o calão, é preciso provares que serves para alguma coisa e por isso tens de trabalhar com o manequim.

— Trabalharei — disse Gringoire — com tudo que for do vosso agrado.

Clopin fez um sinal. Alguns do calão saíram do círculo e voltaram passado um momento. Trouxeram dois postes terminados na extremidade inferior por duas espátulas que os faziam facilmente suster-se ao alto; à extremidade superior dos dois postes adaptaram uma viga transversal e o todo constituiu uma bela forca portátil, que Gringoire teve a satisfação de ver levantar diante dele num abrir e fechar de olhos. Nada faltava, nem mesmo a corda que se balouçava graciosamente por baixo da travessa.

— Onde quererão eles chegar? — perguntou Gringoire aos seus botões, não sem alguma inquietação. Um ruído estranho que ouviu naquele momento pôs cobro à sua ansiedade; era um manequim que aqueles bandidos tratavam de pendurar pelo pescoço na corda, espécie de espantalho de pássaros, vestido de vermelho e de tal modo carregado de guizos e campainhas que com eles se poderiam arrear trinta mulas castelhanas. Essas mil campainhas vibraram durante algum tempo com as oscilações da corda, depois essas vibrações foram-se extinguindo a pouco e pouco até cessarem quando o manequim ficou reduzido à imobilidade pela lei do pêndulo que destronou a clepsidra e o relógio de areia.

Então, Clopin, mostrando a Gringoire um velho escabelo a cambalear, colocado por baixo do manequim:

— Sobe ali acima.

— Oh! com os diabos! — objetou Gringoire — Vou quebrar a cabeça. O vosso escabelo coxeia como um dístico de marcial: tem um pé hexâmetro e um pé pentâmetro.

— Sobe — repetiu Clopin.

Gringoire subiu ao escabelo e conseguiu, não sem algumas oscilações da cabeça e dos braços, encontrar nele o seu cento de gravidade.

— Agora — continuou o rei de Tunes — traça o teu pé direito à roda de tua perna esquerda e levanta-te sobre a ponta do pé esquerdo.

— Monsenhor — disse Gringoire — tendes decidido empenho em que eu parta algum membro?

Clopin maneou a cabeça.

— Olha, meu amigo, tu falas demais. Eis em duas palavras do que se trata: tu vais pôr-te na ponta do pé, como te disse; desse modo poderás chegar ao bolso do manequim; mexerás aí; tirarás uma bolsa que lá está; se tu fazes tudo isso sem que se ouça o barulho de uma campainha, está bem; serás dos nossos. Só temos a encher-te de pancadas durante oito dias.

— Safa! Eu me acautelarei — disse Gringoire — E se eu faço cantar as campainhas?

— Em tal caso serás enforcado. Compreendes?

— Absolutamente nada — respondeu Gringoire.

— Ouve-me mais uma vez. Vais apalpar o manequim e tirar-lhe a bolsa; se uma só campainha tocar durante esta operação, serás enforcado. Compreendes agora?

— Compreendo — disse Gringoire — E depois?

— Se tu consegues tirar a bolsa sem que se ouçam os guizos, entras para a confraria e serás espancado durante oito dias consecutivos. Compreendes decerto, agora.

— Não, monsenhor; não compreendo. Que vantagem tenho eu? Num caso enforcado, noutro espancado?

— E ser bandido — atalhou Clopin — ser bandido não é nada? É para teu bem que nós te bateremos, para te acostumar às pancadas.

— Muito obrigado — respondeu o poeta.

— Vamos, despacha-te — disse o rei batendo com o pé no tonel que produziu o som cavo de um tambor. — Apalpa o manequim, e acabemos com isto. Advirto-te, pela última vez, que se eu ouvir um guizo só que seja, tomas tu o lugar do manequim.

A quadrilha do calão aplaudiu as palavras de Clopin e postou-se em círculo em roda da forca, com um rir de tal modo impiedoso que Gringoire percebeu que os divertia muito para não ter tudo a recear deles.

Não lhe restava pois esperança alguma a não ser a felicidade bem pouco provável na operação que lhe era imposta; decidiu-se a correr-lhe o risco, mas não sem primeiro dirigir fervorosa prece ao manequim que ia roubar e que era mais fácil de enternecer do que aqueles bandidos. Aquela miríade de campainhas com as suas linguazinhas de cobre pareciam-lhe outras tantas goelas de víbora, prontas a morder e a sibilar.

— Oh! — murmurava — é possível que a minha vida dependa da mais pequena vibração do mais pequeno destes guizos? Oh! — acrescentava com as mãos postas — Campainhas, não toqueis! Guizos, não vos mexeis!

Tentou ainda apelar mais uma vez para Trouillefou.

— E se vem um pé de vento? — perguntou-lhe.

— És enforcado — respondeu o outro sem hesitar.

Vendo que não havia reflexão, nem réplica, nem evasiva possível, dispôs-se resolutamente: traçou o pé direito à volta do pé esquerdo, levantou-se sobre o pé esquerdo, e estendeu o braço... mas na ocasião em que ia chegar ao manequim o seu corpo, que apenas tinha um pé, cambaleou sobre o escabelo, que só tinha três; quis maquinalmente agarrar-se ao manequim, perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente por terra, completamente aturdido pela fatal vibração das mil campainhas do manequim, que, cedendo ao impulso da sua mão, descreveu uma rotação sobre si mesmo, depois balançou-se majestosamente sobre os dois postes.

— Maldição! — gritou ao cair, e ficou como morto, o rosto voltado contra o chão.

Contudo ouvia o terrível carrilhão por cima da cabeça e as risadas diabólicas dos bandidos e a voz de Trouillefou que dizia:

— Levantem-me este patife e enforquem-no quanto antes.

Gringoire ergueu-se. Já tinham desprendido o manequim para lhe darem lugar.

Os do calão fizeram-no subir ao escabelo. Clopin acercou-se dele, passou-lhe a corda à volta do pescoço e batendo-lhe no ombro, disse-lhe: — Adeus, amigo! Agora não te podes tu safar nem com a ajuda do papa.

A palavra perdão veio expiar nos lábios de Gringoire. Passeou os olhos em redor; mas nenhuma esperança; todos riam.

— Bellevigne da Estrela — disse o rei de Tunes a um enorme bandido que saiu do seu posto — trepa à travessa.

Bellevigne da Estrela subiu ligeiro à trave transversal e num instante Gringoire, ao levantar os olhos, viu-o empoleirado sobre a sua cabeça.

— Agora — continuou Clopin Trouillefou — quando eu bater as palmas, tu, Andry Vermelho atirarás fora o escabelo com um pontapé; tu, Francisco Chante-Prune, pendurar-te-ás nos pés deste maroto; e tu, Bellevigne, cavalgar-lhe-ás sobre os ombros; e todos três a um tempo, entendem?

Gringoire estremeceu.

— Estais prontos? — disse Clopin Trouillefou aos três do calão prontos a precipitarem-se sobre o desventurado. O pobre paciente teve um momento de espera terrível enquanto Clopin atirava tranquilamente com a ponta do pé para a fogueira alguns cavacos que as chamas tinham poupado. — Estais pronto? — repetiu, e abriu as mãos para dar as palmadas. Um segundo mais, tudo estava terminado.

Mas deteve-se como salteado por uma ideia repentina.

— Um instante — disse ele — já me esquecia!... É da praxe que não enforquemos um homem sem perguntar se há alguma mulher que o queira. Camarada, é o teu último recurso. Ou casar com uma das nossas ou a corda.

Esta lei dos ciganos, por extravagante que possa parecer ao leitor, está ainda hoje escrita com todas as letras na velha legislação inglesa.

Gringoire respirou. Era a segunda vez que voltava à vida no espaço de meia hora. Por isso mesmo não confiava muito no inesperado recurso.

— Olá! — bradou Clopin subindo para a pipa — Olá! mulheres, fêmeas, há alguma entre vós, desde a feiticeira até à gata, que queira este patife? Olá, Colette la Charonne! Elisabeth Trouvain! Simone Jodouyne! Marie Piédebou! Thonne a Comprida! Bérarde Fanouel! Micaela Genaille! Cláudia da Orelha roída! Maturina Girorou! Olá! Isabeau la Thierrye! Chegai-vos e olhai! Um homem de graça! Quem quer?

Gringoire, no seu miserável estado, era inquestionavelmente pouco de apetecer. Às mulheres do bando emocionou-as mediocremente a proposta. O desgraçado ouviu-as responder: — Não! não! enforcai-o, todas nós antes queremos isso!

No entanto, três saíram da turba e vieram farejá-lo. A primeira era uma moça gorda, de cara quadrada. Examinou atenciosamente o triste gibão do filósofo. Todo o fato estava velho e com mais buracos do que uma assadeira de castanhas. A moça torceu-lhe o nariz. — Fraco estandarte! — resmoneou e dirigindo-se a Gringoire: — O teu chapéu? — Tiraram-mo. — Os teus sapatos? — Começam a não ter já solas. — A tua bolsa? — A minha bolsa! — balbuciou Gringoire — Não tenho sequer dinheiro parisis. — Deixa-te enforcar, e diz obrigado! — replicou a megera voltando-lhe as costas.

A segunda, velha, negra, enrugada, medonha, de uma fealdade que se tornava notável no Pátio dos Milagres, deu umas voltas em torno de Gringoire, que chegou a tremer com receio de que ela o quisesse, mas a megera disse por entre os dentes: — É magro demais — E retirou-se.

A terceira era uma mulher ainda nova, bastante fresca e não muito feia.

— Salvai-me — disse em voz baixa o pobre diabo, ela fitou-o um momento com ar de compaixão, baixou os olhos, começou a fazer pregas na saia e ficou indecisa. Ele seguia com os olhos todos os movimentos; era a sua última esperança. — Nada — disse por fim a moça — Nada! Guilherme, o Cara Comprida bater-me-ia — E foi juntar-se às outras.

— Camarada — disse Clopin — estás infeliz.

Depois pondo-se de pé sobre o tonel:

— Ninguém o quer? Uma, duas três! — E voltando-se para a forca com um meneio de cabeça: — Entregue!

Bellevigne da Estrela, Andry o Vermelho e Francisco Chante-Prune acercaram-se de Gringoire.

Nesta ocasião gritou-se entre os do calão:Esmeralda, Esmeralda!

Gringoire estremeceu e voltou-se para o lado de onde saíam os brados. A turba abriu-se e deu passagem a um delicado e deslumbrante vulto.

Era a cigana.

— Esmeralda! — exclamou Gringoire, estupefacto, no meio das suas comoções, pela maneira inesperada com que esta palavra mágica ligava todas as reminiscências daquele dia.

Aquela criatura original parecia exercer até no Pátio dos Milagres o seu império de encanto e de beleza. Todos, sem exceção, lhe davam amavelmente passagem e aquelas caras brutais expandiam-se só em fitá-la.

Abeirou-se do paciente com passo ligeiro. Seguia-a a sua linda Djali. Gringoire estava mais morto que vivo. A cigana mirou-o um momento silenciosa.

— Ides enforcar esse homem? — perguntou com gravidade a Clopin.

— Vou, irmã — respondeu o rei de Tunes — a menos que tu o tomes por marido.

Esmeralda fez o lindo trejeito com o beiço inferior que nós já lhe conhecemos.

— Pois tomo — disse ela.

Neste ponto Gringoire acreditou piamente que só sonhara desde pela manhã e que aquilo era continuação desse sonho.

A peripécia, efetivamente, apesar de graciosa, era violenta.

Desfizeram o nó corredio e mandaram descer o poeta do escabelo. Foi obrigado a assentar-se, tão violenta era a comoção.

O duque do Egito, sem pronunciar uma palavra, foi buscar uma bilha de barro. A cigana apresentou-a a Gringoire.

— Atirai-a ao chão — disse-lhe ela.

A bilha quebrou-se em quatro pedaços.

— Irmão! — disse o duque do Egito impondo-lhes as mãos sobre a fronte — é tua mulher; irmã, é teu marido. Por quatro anos. Ide.

Victor Hugo: O corcunda de Notre Dame

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