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Capítulo 7 — Uma Noite de Núpcias

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Ao cabo de alguns instantes, o nosso poeta viu-se num pequeno quarto com abóbada em ogiva, bem fechado, bem quente, sentado a uma mesa que parecia só desejar fazer empréstimo a um armário que lhe ficava muito perto, tendo uma boa cama em perspetiva e a sós com uma moça bonita. A aventura tinha encantamento. Gringoire começava a tomar-se seriamente por uma personagem de conto de fadas; de tempos a tempos, lançava os olhos em redor como para ver se o carro de fogo atrelado a duas quimeras aladas, pois que só nele poderia ser transportado tão rapidamente do Tártaro ao Paraíso, ainda não tinha desaparecido. Por momentos também fixava pertinazmente os buracos do seu gibão, para se agarrar à realidade e não se perder completamente. A sua razão, atirada para os espaços imaginários, só se prendia a esse fio.

A cigana parecia não atentar sequer nele; ia, vinha, mudava de lugar um escabelo qualquer, conversava com a cabra, fazia de vez em quando o seu acostumado trejeito. Afinal veio sentar-se perto da mesa e então Gringoire pôde contemplá-la à vontade.

Cada vez mais imerso no seu cogitar dizia consigo: «Aqui está o que é a Esmeralda! Uma criatura celeste! Uma bailarina das ruas! Tanto e tão pouco! A que deu esta manhã o golpe de misericórdia no meu mistério e a que me salva esta noite a vida. O meu génio mau! O meu anjo bom! Uma linda mulher, palavra de honra! E que deve amar-me doidamente, para assim me ter pretendido. A propósito», pensou ele levantando-se repentinamente com esse sentimento do verdadeiro que constituía o fundo do seu caráter e da sua filosofia, «não sei como isso foi, mas sou seu marido!»

Com esta ideia na cabeça e nos olhos, acercou-se da moça de uma maneira tão militar e tão galante que esta recuou.

— Que me quereis? — perguntou ela.

— Podeis perguntar-mo, adorável Esmeralda? — respondeu Gringoire com um tom tão apaixonado que até ele próprio se admirava, ouvindo-se falar.

A cigana abriu os seus grandes olhos.

— Não sei o que quereis dizer.

— Como! — continuou Gringoire, aquecendo cada vez mais e pensando que afinal de contas só se tratava de uma virtude do Pátio dos Milagres.

— Não te pertenço eu, minha amiga, e não és tu minha?

E, muito ingenuamente, agarrou-a pela cintura.

O corpo da cigana escapou-se-lhe das mãos como se fora uma enguia. Deu um salto de uma extremidade do quarto à outra, abaixou-se, e levantou-se com um punhal na mão, antes que Gringoire tivesse sequer tempo de ver de onde esse punhal tinha saído, irritada e altiva, os lábios trémulos, as narinas dilatadas, as faces vermelhas como uma maçã, as pupilas a fuzilarem. Ao mesmo tempo a cabrinha branca colocou-se diante dela, e apresentou a Gringoire uma frente de batalha, guarnecida de duas lindas pontas douradas e muito aguçadas. Tudo isso se passou num abrir e fechar de olhos.

O lindo inseto fizera-se vespa e só pretendia cravar o ferrão.

O nosso filósofo ficou atónito, fitando alternativamente a cabra e a moça com olhos idiotas.

— Virgem santa! — disse ele, quando a surpresa lhe permitiu falar. — Que duas!

A cigana foi a primeira a quebrar o silêncio.

— Deves ser muito atrevido!

— Perdão, menina! — disse Gringoire, sorrindo-se. — Mas para que me tomou então para marido?

— Devia deixar-te enforcar?

— Visto isso — replicou o poeta, um tanto desapontado nas suas esperanças amorosas —, não teve outro pensamento ao desposar-me senão livrar-me da forca?

— E que outro pensamento querias que tivesse?

Gringoire mordeu os lábios.

— Vamos — disse ele —, os meus triunfos em amor são bem mais insignificantes do que eu pensava. Mas, nesse caso de que serviu quebrar essa pobre bilha?

O punhal de Esmeralda e as pontas da cabra continuavam na defensiva.

— Menina Esmeralda — disse o poeta —, capitulemos. Não sou oficial de diligências do Châtelet, nem a autuarei por assim trazer uma adaga em Paris, nas barbas das ordenações e proibições do senhor preboste. No entanto não deve ignorar que Noel Lescrivain foi condenado há oito dias em dez soldos parisis por usar um chifarote. Nada tenho com isso e vamos ao que importa. Juro-lhe pela minha salvação de não me abeirar sem sua licença e permissão; mas dê-me de cear.

No fundo, Gringoire, não era dessa raça cavalheiresca de mosqueteiros que tomam as moças de assalto. Em matéria de amor como em outra qualquer matéria, era, sempre de boa vontade, pelas temporizações e pelos meios termos; e uma boa ceia, em convivência amável, parecia-lhe sobretudo quando tinha fome, um entreato excelente entre o prólogo e o desenlace de uma aventura de amor.

A cigana não respondeu. Fez o seu trejeitozinho de desdém, ergueu a cabeça como um pássaro, depois largou a rir e o delicado punhal desapareceu como aparecera, sem que Gringoire pudesse ver onde a abelha escondia o ferrão.

Um momento depois, havia sobre a mesa um pão de centeio, um traço de toucinho, algumas batatas e um canjirão de cerveja. Gringoire pôs-se a comer com sofreguidão. Quem ouvisse o tilintar furioso do garfo sobre o prato de barro, diria logo que todo o seu amor se volvera em apetite.

A cigana sentara-se diante dele, olhando-o silenciosa, visivelmente preocupada por outro pensamento a que de tempos a tempos sorria, enquanto com a sua meiga mão afagava a cabeça inteligente da cabra que apertava brandamente entre os joelhos.

Uma vela de cera amarela iluminava esta cena de vivacidade e de reflexão.

Quando os primeiros clamores do estômago foram atendidos, Gringoire sentiu uma espécie de vergonha ao ver que apenas lhe restava uma batata.

— Então não come, menina Esmeralda?

Ela respondeu com um sinal negativo de cabeça, e o seu olhar pensativo foi fixar-se na abóbada do quarto.

— Que diabo a preocupará — pensou Gringoire; e olhando para o que ela olhava: — É impossível que seja a carranca daquele anão esculpido na chave da abóbada o que assim absorve a sua atenção. Que diabo! Posso sustentar a comparação!

O poeta alçou a voz:

— Menina!

Ela pareceu não o ouvir.

Ele repetiu mais alto:

— Menina Esmeralda!

Trabalho baldado. O espírito da cigana estava noutra parte, e a voz de Gringoire não tinha o poder de a chamar. Por felicidade, a cabra encarregou-se disso! Começou a despertar a dona puxando-lhe levemente pela manga.

— Que queres, Djali? — disse vivamente Esmeralda como despertada em sobressalto.

— Tem talvez fome — disse Gringoire, contente por encetar a conversa.

A cigana pôs-se a esmigalhar pão que oferecia graciosamente a Djali no côncavo da mão.

Gringoire, porém, não lhe deu tempo de retomar as suas cogitações e arriscou a seguinte delicada pergunta:

— Não me quer então para marido?

A cigana fitou-o friamente, e respondeu-lhe:

— Não!

— Para amante? — continuou Gringoire.

Ela fez o costumado trejeito e repetiu:

— Não!

— Para amigo? — insistiu Gringoire.

Ela olhou para ele ainda mais friamente e disse depois de refletir um momento:

— Talvez.

Esse talvez, tão querido dos filósofos, alentou Gringoire.

— Sabe o que é a amizade? — perguntou-lhe ele.

— Sei — respondeu a cigana. — É ser irmão e irmã: duas almas que se tocam sem se confundirem, dois dedos da mão.

— E o amor? — prosseguiu Gringoire.

— Oh! O amor! — disse ela, e a voz tremia-lhe e os olhos faiscavam-lhe. — É ser dois e ser um só. Um homem e uma mulher que se fundem num anjo. É o céu.

A bailarina das ruas tinha, ao falar assim, uma beleza que impressionava singularmente Gringoire e que lhe parecia em perfeita harmonia com a exaltação quase oriental das suas palavras. Os lábios róseos e puros entreabriram-se-lhe num sorriso; a fronte cândida e serena turvava-se-lhe por momentos como um espelho que o hábito embacia; e das suas longas pestanas semicerradas escapava-se uma espécie de luz inefável que dava ao seu perfil a ideal suavidade que Rafael veio depois encontrar no ponto de interseção mística da virgindade, da maternidade e da divindade.

Gringoire não se deu por vencido.

— Como é pois preciso ser para lhe agradar?

— É preciso ser homem.

— E eu — disse ele —, que sou então?

— Um homem tem um capacete na cabeça, uma espada na mão e esporas de ouro nos calcanhares.

— Bem — disse Gringoire —, sem o cavalo não há homem. Ama alguém?

— Com amor?

— Sim.

Esmeralda ficou um momento pensativa e depois disse com uma expressão particular:

— Sabê-lo-ás depois.

— E por que não há de ser esta noite? — retrucou ternamente o poeta. — Por que não hei de ser eu?

Ela olhou-o com severidade.

— Só poderei amar um homem que possa proteger-me.

Gringoire corou e percebeu. Era evidente que a cigana fazia alusão ao pouco auxílio que lhe prestara nas críticas circunstâncias em que ela se tinha encontrado havia duas horas. Esta recordação, desvanecida pelas suas outras aventuras da noite, tinham-lhe sobrevindo agora, o que o fez bater na testa.

— A propósito, menina, era por ali que eu devia ter começado. Perdoe-me estas loucas distrações. Como é que fez para escapar às garras de Quasímodo?

— Oh! Que horrível corcunda! — disse ela escondendo o rosto nas mãos.

E sentia a sensação de um grande frio.

— Horrível, efetivamente — disse Gringoire, que não abandonava a sua ideia. — Mas como é que lhe pôde escapar.

A Esmeralda sorriu-se, suspirou e guardou silêncio.

— Sabe por que é que ele a seguia? — Continuou Gringoire, procurando voltar à questão por um desvio.

— Não sei — disse ela. E acrescentou com vivacidade: — E tu, que me seguias também, por que é que o fazias?

— Palavra de honra — respondeu Gringoire — que também o não sei.

Fez-se um silêncio. Gringoire golpeava a mesa com a faca. Esmeralda sorria e parecia olhar para alguma coisa através do muro. De repente pôs-se a cantar com voz mal articulada:

Cuando las pintadas aves

Mudas estan, y la tierra...

mas calou-se imediatamente e afagou Djali.

— É um lindo animalzinho — disse Gringoire.

— É minha irmã — respondeu ela.

— Por que é que te chamam Esmeralda? — perguntou o poeta.

— Não sei.

— Como?

A cigana tirou do seio uma espécie de escapulário oblongo que trazia suspenso ao pescoço por uma cadeia de contas de adrézarache: esse escapulário exalava um cheiro a cânfora. Era coberto de seda verde e no centro tinha uma grande conta verde, imitando a esmeralda.

— É talvez por causa disto — disse ela.

Gringoire quis pegar no escapulário, mas ela não consentiu.

— Não lhe toques! É um amuleto. Farias mal ao feitiço ou o feitiço to faria a ti.

Cada vez mais aumentava a curiosidade do poeta.

— Quem lho deu?

A cigana pôs um dedo na boca e escondeu o amuleto no seio. Gringoire adiantou outras perguntas a que ela apenas respondia.

— Que quer dizer esta palavra: Esmeralda?

— Não sei — disse ela.

— A que língua pertence?

— É egípcio, creio.

— Assim o suspeitava — disse Gringoire. — Não nasceste em França?

— Não sei.

— Tens parentes?

Em resposta a cigana pôs-se a cantar com música de uma velha canção:

Mon

père

est oiseau,

Ma mère est oiselle,

Je passe l

eau sans nacelle,

Je passe l

eau sans bateau.

Ma mère est oiselle

Mon père est oiseau.

— Está bem — disse Gringoire. — De que idade vieste para a França?

— Muito criança ainda.

— Para Paris?

— O ano passado quando entrávamos pela porta papal, vi cortar os ares a toutinegra dos canaviais; era no fim de agosto; disse comigo: o inverno vai ser rigoroso.

— E foi — disse Gringoire, exultando por este começo de conversa. — Passei-o a soprar nos dedos. Tens então o dom da profecia?

— A cigana recaiu no seu laconismo.

— Não.

— Aquele homem a quem chamais o duque do Egito, é o chefe da vossa tribo?

— É.

— Foi por isso que ele nos casou — observou timidamente o poeta.

Esmeralda fez o seu gesto habitual.

— Eu nem sequer sei o teu nome.

— O meu nome? Se o quereis saber, é este: Pierre Gringoire.

— Sei de um mais bonito — disse ela.

— Má! — objetou o poeta. — Não importa, não me irritarás. Olha, talvez que me venhas a amar, conhecendo-me melhor; e depois contaste-me a tua história com tanta confiança, que te devo de algum modo a minha. Sabe então que me chamo Pierre Gringoire e que sou filho do rendeiro tabelionato de Gonesse. Meu pai foi enforcado pelos borgonheses e a minha mãe rasgaram os picardos o ventre, no cerco de Paris, há vinte anos. Fiquei pois órfão aos seis anos, tendo por herança as ruas de Paris. Não sei como transpus o intervalo dos seis aos dezasseis anos. Aqui uma fruteira dava-me ameixa, acolá um padeiro atirava-me uma côdea de pão; à noite fazia-me apanhar pelos soldados da ronda que me levavam para o calabouço onde encontrava um feixe de palha. Tudo isso não me impediu de crescer e de emagrecer como vês. De inverno, aquecia-me ao sol no pórtico do palácio de Sens e achava muito ridículo que reservassem para as canículas as fogueiras de S. João. Aos dezasseis anos quis tomar uma profissão. Experimentei sucessivamente tudo. E descobri, ao cabo de algum tempo, que para tudo me faltava qualquer coisa, e vendo que não servia para nada, fiz-me, por minha alta recreação, poeta. Sou eu o autor do mistério que hoje se representou. Como vê, não sou mau partido para um casamento. Sei muitas habilidades engraçadas que ensinarei à sua cabra; imitar, por exemplo, o bispo de Paris, esse maldito fariseu. Além disso o meu mistério deve dar-me muito dinheiro, se mo pagarem. Numa palavra, estou às suas ordens, pronto a viver consigo, solteira, como for do seu agrado; castamente ou alegremente; marido e mulher, se assim quiserdes; irmão e irmã, se preferis.

A cigana conservava os olhos fixos no chão.

Fébo!— dizia ela a meia voz. Depois, voltando-se para o poeta: — Fébo, que quer isto dizer?

Gringoire, sem compreender que relação podia haver entre a sua alocução e esta pergunta, não se contrariou pelo ensejo de fazer brilhar a sua erudição. Empertigando-se, respondeu:

— É uma palavra latina que quer dizer sol.

— Sol! — repetiu ela.

— É um nome de um tal belo archeiro, que era deus — acrescentou Gringoire.

— Deus! — tomou a repetir a cigana, e no tom em que disse esta palavra havia alguma coisa de pensativo e apaixonado.

Neste momento um dos braceletes da Esmeralda desprendeu-se e caiu. Gringoire deu-se pressa em se abaixar para o apanhar; quando se levantou, a moça e a cabra tinham desaparecido. Ouviu-se depois o ruído de um ferrolho.

— Deixou-me ela ao menos uma cama? — disse o nosso filósofo. Percorreu o quarto. Não havia móvel algum próprio para dormir, senão uma grande arca de madeira e essa ainda tinha a tampa esculpida.

— Vamos lá! — disse ele acomodando-se sobre a arca o melhor que pôde. — Resignemo-nos. Estranha noite de núpcias! É pena; havia neste casamento de bilha quebrada alguma coisa de antediluviano que me agradava.

Victor Hugo: O corcunda de Notre Dame

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