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MUDANÇAS

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Passei duas semanas infernais.

Dentro de mim agitavam-se emoções, como a raiva, a frustração, a tristeza e a vingança, enquanto no exterior parecia apática e perto do suicídio.

Não comia, não falava e não dormia.

Enfraqueci muito rapidamente e quando me recusei a tomar uma hemodose, a tia Cecília ficou tão preocupada que chamou o padre Dominick.

«Por quanto tempo pensas continuar assim?» perguntou-me Dominick, cansado do meu silêncio.

«Para sempre» sussurrei.

«Então és uma idiota. Claro que o Kevin tem a sua cota parte de culpa porque sempre te iludiu com os seus gestos carinhosos e gentis, mas foste tu quem construiu castelos no ar. Ele nunca disse que te amava e muito menos que queria estar contigo, assim se confundiste uma paixoneta de rapariguita imatura com amor, a responsabilidade é apenas tua. Cresce porque o amor é outra coisa» desabafou Dominick furioso.

Era a primeira vez que se dirigia a mim daquela maneira e não estava mesmo nada à espera.

Olhei-o chateada.

«Então, diz-me o que é o amor» provoquei-o com um tom de voz ácido.

«É um sentimento muito mais profundo, que se constrói com o tempo e estando próximo da outra pessoa tanto nos momentos mais felizes como nos mais difíceis. Se amasses realmente o Kevin, estarias feliz pela sua escolha, porque desejarias a sua felicidade e o seu bem-estar. O amor verdadeiro não é um desejo egoísta, como o teu!».

Pensei muitas vezes naquelas palavras tão duras e fortes.

Por fim, percebi que o padre Dominick tinha razão. Aliás, o que eu sabia verdadeiramente do Kevin, para além do facto que era sempre gentil com os clientes?

Para ser sincera, não sabia nada dele.

Não sabia qual era o seu prato preferido, que tipo de música escutava, o que gostava de fazer no seu tempo livre, para além de estar com a Clara, se era desorganizado ou meticuloso...

Todavia, não conseguirei esquecer todos aqueles anos dedicados a fantasiar acerca dele e de uma possível história de amor toda nossa.

Em poucos dias, voltei a comer, dormir e falar.

A tia Cecília ficou tremendamente aliviada ao ver-me novamente em forma, sobretudo depois de ter tomado a minha hemodose e voltar a ser falastrona como antes. Durante dias tinha tentado fazer-me comer, preparando-me todo o género de comida, mas eu tinha desistido. A minha recusa contínua em dirigir-lhe a palavra, também a tinha feito desesperar.

Por fim, também eu estava feliz por voltar a ser a Vera de antigamente.

Um dia, era quase noite, quando o telefone tocou.

Eu estava entretida com o enésimo filme de amor choramingas, por isso não lhe prestei atenção. Foi a minha tia a atendê-lo.

Não conseguia compreender o que a tia dizia, mas apercebi-me que tinha acontecido algo de grave, porque o seu tom de voz mudou e ficou muito preocupada.

Foi um curto telefonema.

«Está tudo bem?» perguntei-lhe, quando a vi regressar da cozinha, onde tínhamos o telefone.

«Infelizmente, o cardeal Montagnard morreu de um enfarte».

«Lamento. Conhecias-lho bem?».

«Sim. Estava muito ligada a ele e admirava-o tanto como homem, quanto como eclesiástico» explicou-me a tia com lágrimas nos olhos.

Era a primeira vez que via a tia triste pela perda de alguém e não pensava que pudesse sofrer assim tanto.

Ficou apática e silenciosa durante dias, atormentada pela sua dor.

Por fim, decidi esperar a segunda-feira da semana seguinte.

Na escola tinha sido convocada uma greve contra a lei da redução dos professores e por isso, teria todo o dia livre e estava determinada a levar a tia ao centro comercial para fazer compras.

Ainda que não tivesse muito dinheiro de parte, devido à minha reduzida mesada semanal, tinha intenções de comprar-lhe um presente nem que para isso, gastasse todas as minhas poupanças.

Queria levá-la às lojas e comprar-lhe um perfume, uma camisola ou um livro.

Qualquer coisa que lhe fizesse voltar a sorrir.

Por sorte, aquela segunda-feira chegou rápido.

Levantei-me à hora habitual, mas desci com calma para tomar o pequeno-almoço, depois de me ter lavado e vestido cuidadosamente.

«Vera, é tardíssimo! De certeza que vais perder o autocarro!» repreendeu-me a tia, mal coloquei os pés na cozinha.

«Hoje não tenho que ir à escola! Há greve» expliquei-lhe imediatamente com um grande sorriso nos lábios.

«Ah, sim. Talvez me tinhas dito... não me lembro» respondeu-me a tia com um tom de voz ausente.

«Pois. Por isso, decidi ir à cidade, porque tenho que comprar um livro para a escola. Podes acompanhar-me, por favor? Menti. Sabia que se dissesse à minha tia que queria levá-la às compras, nunca aceitaria, mas se se tratasse de material escolar, estaria sempre pronta.

«Está bem, mas agora não. Prometi ao Ahmed que falávamos sobre o novo gado, que chegará até o fim da manhã, mas hoje à tarde de certeza que te posso levar à livraria» assegurou-me.

Projeto adiado.

Detestava adiar os meus planos, porque depois chegava o enésimo contratempo a estragar tudo.

Devia tê-lo antecipado para o dia anterior.

Assim dei por mim a não saber o que fazer.

Acabei por optar pela televisão.

Passou-me a vontade de sair.

Estava prestes a voltar para o quarto para mudar de roupa, quando de repente, soou a campainha.

Fui abrir.

Era Dominick acompanhado de dois homens altos e maciços, vestidos de negro com o desenho de uma cruz branca com uma gota vermelha ao centro, bordado no bolso do casaco.

Fiquei tão curiosa com aqueles dois endemoniados, nunca antes vistos, imóveis perante a porta da minha casa, que não prestei atenção à voz transtornada do padre Dominick, que me empurrou bruscamente para dentro de casa e gritou o nome da minha tia.

«Cecília, têm que se ir embora! Agora!» gritou o padre Dominick aterrorizado.

«O que está a acontecer?» perguntou-lhe a tia, tentando não mostrar a sua angústia.

«Eles sabem tudo e estão a chegar!» gritou novamente o padre Dominick.

«Eles quem?» intrometi-me alarmada.

Ninguém me respondeu, mas percebi que a tia sabia a quem o padre se referia, porque levou a mão direita à boca, para tentar sufocar um grito.

«Mas como é possível?» sussurrou a tia com um fio de voz.

«Assassinaram-no! Assassinaram o cardeal Montagnard, depois de o terem feito confessar! Agora eles sabem tudo e vocês não estão mais seguras. Virão procurá-las e quando o fizerem, apanharão a Vera e vão matá-la».

Eu? Mas o que tinha a ver com isto tudo?

Estava tão chocada que não consegui abrir a boca.

«Dispararam-lhe em vez de usarem o seu habitual modo de atacar. Por isso, a Ordem levou tanto tempo a perceber quem era o culpado do homicídio. De certeza que foi o Blake. Só ele e o seu bando são capazes de um crime semelhante. Ninguém sabe o que aconteceu realmente, mas ao que parece o cardeal contou tudo ao Blake, provavelmente sob tortura» continuou o padre Dominick.

«Mas é terrível!».

«Pois e agora devem fugir. Já vos reservei um quarto num hotel em Dublin. Quando chegarem, receberemos novas ordens do cardeal Siringer, que nos quer encontrar».

«Mas como fazemos?» suspirou a tia abalada.

Naquela quinta estava a sua casa, a sua vida.

E também a minha.

«Temos que partir imediatamente. Vamos viajar toda a noite, se necessário. Seremos escoltados por dois membros de confiança da Ordem, sob coordenação do cardeal Siringer, que nos levarão primeiro ao hotel e depois ao lugar prefixado para o encontro. Por isso, mexam-se! Levem o mínimo indispensável e vamos embora!» recomeçou a gritar o padre Dominick.

Por alguns segundos, que me pareceram horas, a tia e o padre olharam-se intensamente nos olhos, depois disso, como que movida por uma força inexplicável, a tia agarrou-me por um braço e arrastou-me pelas escadas até ao meu quarto.

Em frente à porta, abraçou-me e sussurrou-me docemente ao ouvido: «Não te preocupes. Estarei sempre presente para te defender. Não permito que ninguém te faça mal. Foi assim por dezassete anos e será sempre, enquanto for viva».

«Tia, o que está a acontecer?» consegui perguntar baixinho.

«Está calma. Agora vai para o teu quarto. Tens três minutos para pegares na mala que está debaixo da tua cama e enchê-la com aquilo que te pode ser útil nos próximos dias. Quando estivermos longe daqui te explicarei tudo. Prometo-te».

Não tive outra escolha.

Corri para o meu quarto, abri o guarda-roupa e comecei a encher a mala que tirei de debaixo da cama, com camisolas e calças. Alguma roupa interior, o estojo de maquilhagem e as minhas poupanças. Estava prestes a fechar a bagagem, quando notei a foto que tinha sobre a mesa-de-cabeceira perto da cama. Era uma foto minha com a tia abraçadas em frente à cancela da quinta.

Adorava aquela foto tirada pelo Ahmed há alguns anos atrás.

Coloquei-a também e fechei o zip da mala.

Saí do meu quarto, olhando-o mais uma vez. Aquele tinha sido o meu quarto de infância, o meu refúgio.

Tinha esperança de um dia poder voltar ali, mas alguma coisa me dizia que aquele era um adeus.

Fechei a porta do quarto atrás de mim com um véu de tristeza.

Mal desci para o piso inferior, o padre Dominick agarrou-me pelas costas e arrastou-me para fora de casa em direção a um carro negro, que estava estacionado em frente à cancela da quinta.

Mal me viram, os dois homens desconhecidos entraram no carro e o mais forte pôs-se ao volante.

«Quem são aqueles dois?» perguntei.

«Não há tempo para explicações» abreviou o padre, fazendo-me entrar no carro, para depois apressar-se a ajudar a tia, que estava a dois passos da viatura. Nesse instante, chegou Ahmed.

«Ahmed, chegou o momento do qual falámos com frequência. Adeus» a tia cumprimentou-o, pouco antes de entrar no carro empurrada pelo padre Dominick.

«Fechar a porta e partir. Adeus, Cecília. Vera, vou ter saudades tuas» cumprimentou-nos o Ahmed com um ar triste.

«Adeus, mas talvez nos voltemos a ver» confortei-o, mas ele sacudiu a cabeça e foi-se embora, no mesmo instante em que a BMW negra também partiu.

Senti uma onda de infelicidade propagar-se no meu coração.

Comparando com aquilo, o que tinha sentido pelo Kevin depois de ter sabido do seu futuro casamento, parecia uma ninharia.

Gostava muito do Ahmed e nunca pensei que um dia, ficaria sozinha.

Mal o carro partiu a toda a velocidade, senti o suspiro de alívio da tia e do Dominick.

Apenas eu permanecia tensa como uma corda de violino.

«O Ahmed não vem connosco?» tentei perguntar.

«Não, Vera. O Ahmed tem que ficar a tratar dos nossos assuntos. Dará a casa a uma instituição de caridade e avisará a escola da tua partida, informando-a da tua transferência inesperada devido a problemas de saúde e depois partirá para a Tunísia com o dinheiro que lhe deixei numa conta corrente particular, para ser usado só em caso de necessidade. Na verdade, há anos que isto está tudo planeado» explicou-me a tia, acariciando-me a cabeça.

Tudo isto era ainda incompreensível para mim. Mil pensamentos e frases pronunciadas giravam na minha mente a uma velocidade incontrolável. Não conseguia memorizar um pormenor, que depois desaparecia para dar lugar a outra coisa qualquer.

Ahmed. A escola. Kevin. Patty Shue. Ron. A quinta. Eles.

O cardeal Montagnard. Dublin. O cardeal Siringer.

Tantos, demasiados pensamentos passavam a grande velocidade na minha mente.

Pensava na escola. Estava a recuperar a biologia e ainda tinha que receber a nota do relatório de história.

Para além disso, continuava zangada com a Patty por ter dito a todos que estava noiva do Ron.

Que sentido tinha tudo isto, se no dia seguinte estarei, sabe-se lá onde?

Não voltaria a ver o Kevin. Porquê levar tão a peito o seu casamento com a Clara, se eu não ia estar presente na mesma.

Talvez estarei morta em maio. Não me tinha esquecido que alguém me procurava, depois de ter morto um homem. Era óbvio que tinha reservado para mim o mesmo final cruel.

Eles.

Eles, quem?

Ainda ninguém me tinha explicado quem era esta gente e o que queria de mim.

Tentei pela enésima vez.

«Por favor, expliquei-me porque está a acontecer isto tudo e quem são eles?».

A tia olhou-me com os olhos cheios de tristeza e desespero. Também o padre Dominick olhou-me angustiado.

«Olha, tu és uma rapariga especial» a tia iniciou com esforço.

«Em que sentido?».

«Nasceste em circunstâncias especiais, inesperadas e ainda em parte desconhecidas. Só o cardeal Montagnard sabia a verdade e quando a tua mãe morreu, ele decidiu tomar conta de ti. Desde o nascimento mostraste graves problemas de saúde por causa da tua anemia, mas ele fez de tudo para ajudar-te a sobreviver e ao fazê-lo notou que havia algo em ti maravilhosamente inesperado. Não disse a ninguém o que era, mas decidiu fazer-te crescer num ambiente protegido. Posteriormente, revelou ao cardeal Siringer, o chefe da Ordem da Cruz Ensanguentada, o teu nascimento e disse apenas que eras a solução para o seu problema».

«Qual problema?».

«Ser-te-á revelado no tempo certo, mas fica sabendo que o teu nascimento trouxe muita confusão na Ordem. O cardeal Montagnard mandou regressar do Zimbabwe Cecília, um antigo membro da Ordem, encarregando-a de criar-te, enquanto o cardeal Siringer exigiu um controlo externo, o padre August. Só cheguei mais tarde, quando a Cecília pediu uma ajuda amiga capaz de apoiá-la» interveio o padre.

Então não era verdade que quando a minha mãe morreu, a tia encontrava-se em Portugal, pensei.

«Sabes, nunca tinha tido uma filha e tinha medo de errar contigo, além que o padre August criticava todas as minhas escolhas e dizia que tinha sido um erro teres sido confiada a mim, porque me tinha apegado demasiado a ti e isso não me permitia ser objetiva. Dominick era um velho amigo meu e confiava cegamente nele. Além disso, conhecia a Ordem e as suas leis, assim decidiu envolver-se com o objetivo de dar-te uma determinada educação religiosa» contou a tia.

Agora percebo porque nunca tinha gostado do padre August.

Tinha sempre a sensação que me controlava e a tia não se sentia confortável na sua presença.

Mas, de momento, o que me deixava mais perplexa era o motivo de tanto secretismo, sobretudo da parte da minha tia, que apesar de tudo era a prima da minha mãe.

Mencionei-o à tia, que me olhou com uma expressão ainda mais angustiada.

«Bastou-me ter-te nos braços por apenas um minuto, que percebi o quanto te adorava. Eras a criatura mais doce e bela do mundo. Todas as vezes que me sorrias, a escolha de abandonar os votos para estar contigo, tornava-se menos penosa. Apercebi-me que podia ser feliz assim, mesmo servindo o Senhor de forma diferente. Todavia...» iniciou a tia, mas as palavras não lhe saiam.

«Todavia ela não é realmente tua tia, ainda que te ame como uma mãe ama o próprio filho» o padre Dominick terminou por ela a frase com um ar de sofrimento.

Fiquei petrificada.

A tia Cecília não era minha tia?

Tudo, menos isto.

Isto era demasiado.

Não consegui pronunciar nenhuma palavra.

Estava transtornada.

Olhei a minha tia, ao meu lado, no banco posterior do carro, que chorava baixinho, repetindo continuamente: «Perdoa-me».

Pareceu-me entrar em transe, num estado de semiconsciência.

Todas as minhas certezas caíram por terra.

Passaram-se horas.

Permaneci naquele estado até chegarmos a Dublin ao final da tarde.

Lembro-me apenas que o carro parou mesmo em frente a um hotel, o Jolly Hotel.

O homem da receção nem nos perguntou pelos documentos, entregou-nos simplesmente as chaves dos quartos.

Eu e a tia fomos levadas para o quarto 112, enquanto o padre Dominick dirigiu-se sozinho para a porta 115.

O quarto era pequeno com papel de parede amarelo, tal como as cortinas e as cobertas.

Havia duas camas de solteiro. Sentei-me sobre a que estava ao fundo, perto da janela.

Posei a minha mala no chão e observei a estrada iluminada pelos postes de luz, no exterior da janela.

«Tens fome?» perguntou-me a tia, fazendo-me saltar de susto. Depois de me revelar que não era minha tia, não me tinha dirigido mais a palavra.

«Não, obrigada».

«Tens a certeza? Não comeste nada, nem mesmo no autogrill onde paramos para almoçar» mencionou preocupada.

Apeteceu-me perguntar-lhe porque se interessava tanto por mim, uma vez que eu não lhe era nada, mas não o fiz.

Abanei a cabeça.

Ambas sem jantar, metemo-nos por baixo dos cobertores, apesar de ainda ser muito cedo.

Não tinha sono nenhum.

A minha mente estava cheia de pensamentos, mas aquele que me martelava a cabeça era: a tia, ou melhor, a irmã Cecília.

Se isto for sequer o seu verdadeiro nome.

Passei uma hora a quebrar a cabeça à procura de um sentido, de uma lógica sobre todo aquele assunto.

Vinte e quatro horas atrás fazia zapping sentada no sofá da sala, enquanto a tia reorganizava a cozinha e agora estava numa cama desconfortadíssima, num quarto de hotel ridículo, com uma mulher talvez desconhecida.

Isto tudo não fazia sentido.

Quero de volta a minha casa e a minha tia.

Apercebia-me que tinha sido mais belo viver na completa ignorância e ilusão, do que ir de encontro à crua e injusta realidade.

Se o padre Dominick tentasse outra vez falar-me de justiça divina, comia-o vivo!

Todavia agora estava ali. Presa naquela absurda realidade, perto da pessoa que, até há bem pouco tempo atrás, adorava mais que tudo, enquanto agora temia não a conhecer realmente.

Não consegui mais estar calada.

«Porque tomaste conta de mim em todos estes longos anos?» perguntei-lhe muito baixinho.

Estava convencida que não tinha ouvido. Não porque dormia. Sabia que não dormia, uma vez que durante o sono ressonava imenso, mas sentia a garganta a arder e o peito pesado que me sufocava e as palavras saíram-me débeis e inseguras.

«Não o imaginas?» respondeu-me com a sua habitual e familiar doçura.

«Porque te ordenaram, certo?».

«Não, tolinha. Porque gosto muito de ti. Ainda que realmente não o sejas, para mim, és a minha menina. És a coisa mais importante da minha vida. Esperava conseguir comunicar-te tudo isto em todos estes anos juntas».

Sim, sabia que me queria bem. Sempre me ajudou nos momentos de dificuldade, esteve sempre pronta a apoiar-me e nunca me fez faltar nada, apesar das diversas restrições económicas. Em tudo o que fazia, demonstrava o seu amor por mim e eu sempre me apercebi disso e recebi-o de braços abertos.

Tinha sido uma mãe, mas também uma amiga, uma vez que por causa da minha saúde, nunca consegui fazer amigos. Todos os meus companheiros sempre foram desconfiados em relação a mim, por viver com uma tia e estar frequentemente doente, para além de ser a inimiga número um de Patty Shue, a amiga número um de todos os outros.

«Sei que me queres bem e também eu te quero bem, mas todas estas novidades fizeram curto-circuito no meu cérebro. Não sei mais quem sou, quem tu és...» desabafei.

«Tens razão. Quis dizer-te a verdade tantas vezes, mas a Ordem proibiu-me terminantemente».

«Podias ter-me dito às escondidas. Fazia de conta que não sabia de nada com o padre August e Dominick».

A tia começou a rir.

Também eu sorri e percebi que tudo tinha ficado como antes.

Cecília era sempre a minha querida tia, que escutava as minhas tontices e se ria delas.

«Escuta, Vera. Tenho muita pena de não te ter dito a verdade, mas fi-lo para o teu bem. Prometo-te que quando encontrarmos o cardeal Siringer, lhe pedirei autorização para te contar toda a verdade. A este ponto, é justo que saibas a história completa» disse a tia muito séria.

«Pois, ainda devo saber quem me quer morta» tentei desdramatizar.

«Nunca permitirei que te façam mal» afirmou determinada.

Naquela noite, a tia não me quis dizer mais nada.

Continuamos a falar toda a noite, mas acerca da nossa antiga vida na quinta, procurando consolo ao menos nas recordações.

Atração De Sangue

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