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II

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O almôço foi uma devastação, uma hecatombe.

Dizia o Vasconcellos que assim era preciso, visto que só se tornava a almoçar... no outro dia.

Quando saímos do hotel eram quasi tres horas. O que se faria? Por onde se começaria? Os fumos capitosos do almôço accenderam brios quixotescos no espirito da maioria dos nove. A burro e á Pena! era o grito do Vasconcellos, reforçado por mais cinco ou seis vozes.

—Mas isso é a semsaboria de toda a gente! disse o Gonçallinho.

—Ó meu tolo! replicou com vivacidade o Vasconcellos. Querias talvez fazer versos com o estomago cheio de biffes! A burro e á Pena! insistiu.

Os burriqueiros, que nos tinham feito um verdadeiro{14} cêrco, largaram a correr para ir buscar os burros.

Emquanto esperavamos, dizia-me em tom de confidencia o Leotte:

—Já perguntei no Victor, e não ha lá hospeda nenhuma. Mas ha criadas, ao menos.

E d'ahi a pouco dizia-me o Gonçallinho, tambem em tom de confidencia, muito contemplativo, olhando para o castello da Pena e para o arvoredo da encosta:

—Como isto é bello!

A burricada á Pena foi, como sempre acontece, uma esturdia hilariante, cheia de episodios comicos. Quando o burro não caía, caía o cavalleiro; e as mais das vezes caíam ambos.

N'essa folia, que teve muito de carnavalesca, o tempo fugiu despercebido, as horas voaram. Ao fim da tarde, mergulhados n'um verdadeiro banho de aromas primaveris, estavamos nós sentados junto ao Chalet de Madame, quando o Vasconcellos alvitrou auctoritariamente:

—Agora, sim senhor. Agora é occasião propicia de darmos principio ao nosso Decameron. Tem a palavra o sr. Fulano, como se combinou.

Era eu. Pois não houve meio de resistir.

—Ora então, senhores e...

—Senhoras não ha infelizmente! exclamou o Leotte.

—Peço attenção, que eu principio.

E principiei.{15}

—O morgado de Muxagata, ou simplesmente o Muxagata, como elle era conhecido ha vinte annos no Porto, tinha solar a onze leguas de Lamego, na aldea d'aquelle nome.

Por setembro apparecia na Foz do Douro com uma coudelaria inteira, que lhe permittia variar de cavallo seis vezes por dia. Gostava d'isso, e lisonjeava-se de que as mulheres viessem á janella alarmadas pelo tinido aspero das ferraduras nos burgaus da rua Direita e de Cima-de-Villa.

Era, de resto, um typo de classe, porque nas praias de Portugal não se perdeu ainda o molde do morgado de provincia com manhas de picador e boleeiro.

Ha sempre um para amostra.

Todos os dias ia banhar os cavallos á praia dos Inglezes, que era a menos frequentada. Gastava duas horas n'esse trabalho, e elle proprio era o banheiro dos seus animaes que, á força de acicates, acabavam por investir com a onda.

O Muxagata encharcava-se dez vezes em cada manhã desde os pés até aos hombros.

Sentia-se satisfeito com essa maçada quotidiana, que sempre attraía alguns espectadores. E todo o seu orgulho consistia em saber-se nomeado como o melhor pé de estribo e a melhor mão de rédea que ginetava na Foz.

Eu vi-o pela primeira vez na rua Direita, n'um predio fronteiro á rua Bella.{16}

Morava eu ali perto. Sabia-se que vinha para aquella casa o Muxagata, e um bello dia começaram a chegar criados e cavallos. No outro dio chegaram cavallos e criados. No terceiro dia chegaram criados, cavallos, e palha.

Ao quarto dia correu voz de que chegaria o morgado.

Os criados e criadas, todos elles atexugados de bom presunto da Gralheira, fizeram o jantar para s. ex.ª

Mas s. ex.ª não chegou.

No dia seguinte fez-se novo jantar para s. ex.ª

E s. ex.ª não chegou ainda n'esse dia.

O grande Muxagata principiava a ser um mytho para muitos banhistas da rua Direita e travessas affluentes.

Chega o Muxagata! Não chega o Muxagata! Á noite, os criados, vendo que o patrão já não chegava n'esse dia, comiam o jantar que estava preparado para elle.

Passou assim uma semana.

Na segunda-feira seguinte sentiu-se ruido á porta do Muxagata. Foi muita gente ás janellas. Não era elle, mas um novo cavallo que chegava. Uma belleza de estampa, que os criados estavam admirando em circulo á porta da cocheira. Soube-se a historia do animal. Muxagata já estava no Porto, e havia comprado aquelle bello exemplar pur sang ao Côrte Real de Traz da Sé por tresentas libras.{17}

Finalmente, á noite, chegou o Muxagata com o Henrique da Perzigueda e outros amigos. Vinham a pé, todos de esporas e chicote. E antes de subir, foram á cocheira examinar os cavallos.

Vi o Muxagata. Era alto, forte, moreno: farto bigode preto, e pera. Foram jantar. O Ricardo Brown, o Côrte-Real e outros sportmen caíram logo lá. Depois do jantar, houve jogo. Sentia-se tinir dinheiro. Era o monte. Muxagata, depois das libações do jantar, gostava de fazer o seu berlote.

Aquillo devia ter acabado noite velha. No dia seguinte, ás 7 horas, já o Muxagata estava na praia dos Inglezes a dar banho aos cavallos.

Varias pessoas foram vêr. Outras deixaram-se ficar na praia do Caneiro á espera dos dois melhores espectaculos que os mirones apanhavam: o banho do fidalgo Padilha, que entrava no mar preso por uma corda, e o banho da Cacilda, filha do banheiro Leão, que nadava para o mar largo.

Foi pelo Henrique da Perzigueda, o qual eu vi morrer annos depois n'um sótão da rua de S. João Novo, que travei relações com o Muxagata.

Eu tinha os meus dezoito, e lisonjeava-me de que o Muxagata, a flôr dos sportmen da Foz, me tratasse mano a mano.

Quando elle descia a cavallo a explanada do Castello, sendo admirado no seu garbo de cavalleiro pelos hospedes do Hotel da Boa Vista, dizia-me adeus com o chicote, e eu parava muito{18} ancho, dando-me ares de entendedor, até o vêr exhibir-se no Passeio Alegre, em frente da casa acastellada dos Maias da rua das Flores, porque ahi era certo passar ás upas.

Havia sempre senhoras no balcão de pedra, que tinha um toldo listrado de branco e escarlate.

Mezes depois correu fama de que o Muxagata havia raptado uma menina de Lamego. Falava-se que os irmãos d'ella o queriam matar. Mas não morreu ninguem. Em todo o caso o Muxagata deixara o seu solar e viera estabelecer residencia no Porto, na rua das Fontainhas, com a sua bella raptada. A historia do rapto augmentára-lhe a nomeada de fidalgo extravagante. Algumas vezes vi o Muxagata a cavallo ao lado da famosa lamecense, vestida de amazona. Iam ordinariamente á Foz por Lordello do Ouro; voltavam por Miragaia.

Quando recolhiam ao cair da noite pela rua das Flores, os lojistas, sentindo o tropel dos cavallos, vinham á porta. O escandalo d'aquella mancebia publica indignava-os; não obstante, cumprimentavam risonhamente o Muxagata, que era bom freguez dos ourives e dos mercadores de pannos.

Na casa das Fontainhas havia batota todas as noites. Criados de casaca e lenço branco serviam o chá. D. Christina, a bella de Lamego, jogava como um homem entre os homens.{19}

Saltava nos valetes, e fazia cerco ás quinas.

Ella odiava os valetes, dizia. Na sua confiança nas quinas mostrava-se uma boa portuguesa de Lamego.

Vestia bem: rendas, flores e joias. As joias explicavam os cumprimentos dos ourives da rua das Flores ao Muxagata.

Usava o cabello apartado ao lado, com duas bellezas. Chamava-se bellezas aos anneis de cabello empastados sobre a fronte. Coisa tentadora, que desappareceu da circulação.

—É verdade! obtemperou o Leotte.

Prohibiram-lhe que interrompesse.

O pó de arroz, continuei eu, era ainda considerado como um deboche de toillette. D. Christina punha muito pó de arroz na face, no collo e nas mãos, especialmente nas mãos.

Tinha predilecção pela essencia de violeta. Ora os perfumes eram n'aquelle tempo outro deboche de toilette. As mulheres não cheiravam a nada ou cheiravam mal.

Podem vocês admirar-se de que uma mulher de Lamego se avantajasse dez annos ás outras portuguezas em mise-en-scène de coquettismo. D. Christina tinha pendor natural para a vida espectaculosa. Estas aberrações não são das terras; são dos temperamentos. Uma patricia dos presuntos de Lamego póde nascer tão coquette a dois passos da serra da Gralheira, quanto uma creatura{20} nascida entre os jardins de Harlem póde sair brutalmente apresuntada por fóra e por dentro.

De mais a mais o Muxagata, tendo-lhe conhecido a bossa, desenvolvera-lh'a. Educára-a como amante. O idillio de contrabando precisa ganhar em aperitivos acirrantes o que naturalmente lhe falta em tranquillidade sincera. As amantes são actrizes de um palco em que se representa a comedia do amor; as esposas são as sacerdotisas de um culto domestico, que se faz valer por si mesmo. A differença é grande. D. Christina tomava a sério o seu papel de actriz, e esforçava-se por que nos applausos do publico entendido reconhecesse o empresario a conveniencia das aptidões theatraes da artista.

Rodaram mais dois annos.

A casa da rua das Fontainhas continuava a ser o rendez-vous dos estroinas do Porto. Falava-se de perdas e lucros fabulosos na batota do Muxagata, que fazia concorrencia á do D. Marcos. Muxagata galeava ainda o mesmo luxo de cavallos, em competencia com o Ferreirinha; e a mesma pompa de fatos exoticos á porfia com o Ricardo Brown, porque ambos appareciam ás vezes de collete vermelho com botões de ouro.

Dizia-se porém que a casa de Muxagata estava empenhada. O milho, sua principal colheita, não chegava para tanto. O vinho não era muito. Legumes, hortaliças, amendoas, sumagre, eram em{21} grande quantidade, mas produziam pequenas receitas. A casa cobrava muitos fóros, n'uma e outra margem do Douro, desde Lamego até Entre-ambos-os-rios, mas andavam atrazados.

Um dia deu-se pela falta do Muxagata. Correu que tinha ido apurar rendimentos, que se ficavam por mãos de caseiros e foreiros remissos. Assim fôra, effectivamente. O Muxagata estava no seu solar ou por ahi perto. D. Christina continuava a habitar a casa da rua das Fontainhas. Não saía a pé nem a cavallo.

Pelo tempo das colheitas a minha familia ia para uma quinta no concelho de Sinfães. No fim de setembro fazia-se a feira do Escamarão, que mettia os pimpões de muitas leguas em redor: o Nascimento pae, o Tameirão, o fidalgo da Cardia, o José Ignacio de Covas, e outros.

Eu tinha que matricular-me nas aulas do Porto. Propunha-me estudar introducção aos tres reinos, da natureza, como então se dizia, com o dr. Almeida Pinto. Fui para a feira, e d'ahi devia embarcar para o Porto, em companhia do meu condiscipulo Alfredo Leão.

A feira abrira muito animada. O feminino montesinho concorrera em abundancia. De morgados havia para cima de um quarteirão. E de ourives do Porto estavam armadas sete barracas. Comia-se, bebia-se, batoteava-se á grande. As melancias tinham, como refresco, um consumo extraordinario. O regedor Antonio Pedro, emquanto os{22} cabos de policia dormiam á sombra das arvores, micava no rei.

Creio que foi o Tameirão que deu a boa nova de que o Muxagata estava na feira. Disseram-m'o. No meio da minha tristeza por ter que partir para o Porto, agradou-me a noticia. Fui procural-o.

—Que sim; que estava ali para cima a jogar.

—Mas que veiu elle cá fazer?

—Anda aos fóros. Quer dinheiro.

N'isto fui abruptamente interrompido pelo Vasconcellos:

—Meninos, apostrophou elle, olhem que a Pena já começa a pôr o seu barrete de nevoa. É a toilette de noite. Vamos indo para baixo. Depois de jantar se acabará o conto.

—Depois de jantar vamos ouvir os rouxinoes, atalhou o Gonçallinho.

—Isso é lá como quizerem. Que não esqueça o fio da historia. O Muxagata estava na feira e queria dinheiro—como eu.

—Como nós todos! gritaram uns poucos.

—A burro e ao jantar! commandou o Vasconcellos.{21}

Noites de Cintra

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