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III

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—Ó filho! pelo amor de Deus! deixa os rouxinoes para ámanhã, dizia o Vasconcellos, depois de jantar, ao Gonçallinho Jervis.

—Aqui da janella não se ouve nenhum! Já estive á escuta.

—Pudera! Imaginavas então que uma tão poetica ave principiava a amar logo depois das ave-marias, como um caixeiro que fecha a loja e vae metter-se n'uma escada a gargarejar para defronte! Tem juizo, Gonçallinho. Para irmos a Collares ouvir os rouxinoes, precisavamos ter prevenido os trens. Deixa isso para ámanhã, e vamos á historia do Muxagata.

Assim foi resolvido por unanimidade... menos um. Era o Leotte, que foi á cozinha recommendar que lhe puzessem lamparina no quarto: pretexto para ver as criadas do Victor.{24}

—Vamos lá ao conto, ordenou o Vasconcellos: o Muxagata estava na feira.

—Estava effectivamente na feira, continuei, jogatinando com outros morgados e alguns lavradores ricos de Castello de Paiva e Arouca, n'uma casa humilde do Escamarão, que não as ha lá melhores.

Como o jogo nivella todas as condições, os nobres e os ricaços abancavam em familiar camaradagem, como se a uns valesse o direito do nascimento, e a outros o do ouro. As mãos de todos elles eram grandes e queimadas do sol ou do cigarro. Lembrei-me, de repente, das mãos finas e brancas de D. Christina, polvilhadas de pó de arroz. Que falta que ellas faziam ali, as mãos de Christina, para brilharem pelo contraste no meio d'aquelle enorme conflicto de manapulas de granadeiros, que ora se estendiam semeando dinheiro, ora se retraíam recolhendo-o!

E pelo meu espirito passou a idéa de que o Muxagata nem por sombras se lembrava, n'aquelle momento, das mãos patriciamente batoteiras da sua bem amada de Lamego.

Fui injusto.

Uma hora depois, Muxagata punha ponto no berlote. Levantava-se da banca, que por tal signal era de pinho, ganhando cerca de setenta libras. Varios lavradores e outros morgados haviam perdido o valor das suas juntas de bois e das suas varas de porcos. Quasi todos elles, os{25} morgados e os lavradores, estavam congestionados das repetidas commoções do jogo. Mas o sorriso triumphal dos felizes principiava a calmar-lhes as feições perturbadas. O Muxagata estava n'este caso. Irradiava-lhe na face o lampejo aureo de setenta libras.

Foi depois de acabada a jogatina que elle me deu maior attenção. Perguntou-me se me demorava na feira ou se recolhia á noite. Disse-lhe que, a meu pesar, partia duas horas depois para o Porto, por causa das matriculas.

—O que?! exclamou elle. Você vae para o Porto?!

Os seus olhos accusavam uma certa satisfação, que esta noticia lhe causára.

Respondi affirmativamente.

—Muito bem. N'esse caso ha de fazer-me um favor: levar quarenta libras á D. Christina, que, coitada! deve estar muito precisada de dinheiro. Mas, meu rapaz, pontualidade de cavalheiro: as quarenta libras serão entregues logo que você chegue ao Porto. E em tom de maior confidencia: Eu suspeito até que ella e a pequena (referia-se a uma filhinha de dois annos) não terão tido que comer.

Esta revelação causou-me triste surprêsa: caiu como um raio fulminador sobre as roseas illusões que eu nutria relativamente ao romance dos raptos.

Pois que?! pensei. É então para não ter talvez que jantar que uma mulher, bem nascida e formosa, abandona o seu farto lar paterno, perdendo{26} todo o direito á estima da familia e ao respeito da sociedade?! Os poetas d'aquelle tempo costumavam dizer:—«O teu amor e uma cabana». Mas a realidade parecia ir muito mais longe do que os poetas, porque, comquanto a casa das Fontainhas não fosse propriamente uma cabana, o que era certo, pela inesperada revelação do Muxagata, era que não havia lá que comer! E depois se eu não tivesse apparecido ali n'aquelle dia e n'aquella hora, D. Christina e a filha ver-se-iam condemnadas a soffrer por mais algum tempo ainda as suas duras privações?! E o esplendor da casa das Fontainhas, os criados de casaca e lenço branco, os cavallos do passeio até á Foz, as joias e as rendas de D. Christina era tudo isso a mascara ficticia da pobreza, o ouropel postiço da ruina, que esperava os acasos felizes da batota para ter pão na mesa e pó de arroz nas mãos?!

Eu estava assombrado por todos estes pensamentos que em tropel se precipitavam no meu espirito, e não sabia se devia rir-me da comedia do mundo, se chorar das desgraças e dos raptos alheios.

Á hora marcada, o barco rabello do Ramiro descia mansamente o Douro e abicava ao areio do Escamarão. Alfredo Leão fazia as suas despedidas. Eu recebia as quarenta libras do Muxagata, e saltava para dentro do barco. Momentos depois o lenho da espadella rangia, os remos chiavam{27} na madeira secca das cavidades que n'aquella especie de barcos substituem as forquilhas, e nós desciamos o Douro deslisando sobre a grande serenidade das aguas, que montanhas áridas e alcantiladas marginavam silenciosamente.

Impressionou-me o contraste d'essa placidez austera com a realidade turbulenta das paixões humanas.

E quando a noite começou a cair dos cerros alterosos, que rara casa branca povoava, eu tinha envelhecido moralmente vinte annos.

Chegamos ao Porto cerca da meia noite. Desembarcamos no caes da Ribeira, que nunca me pareceu mais triste do que n'essa hora. Subimos os dois a rua de S. João, entramos na rua das Flores, ambos muito solitarios, mas ao chegarmos ao largo da Feira de S. Bento encontramos dois estudantes do lyceu que, tendo andado á tuna, se dirigiam viciosamente para a batota do D. Marcos em Cima de Villa. Convidaram-nos a seguirmol-os. Eu alleguei que tinha de ir á rua das Fontainhas entregar o dinheiro a D. Christina.

Responderam-me que áquella hora já D. Christina estaria, como todas as mulheres, raptadas ou não, dormindo profundamente n'um poço de virtude.

Que embora, respondi. Iria bater á porta para lhe levar o ouro da perdição.

Pois sim, que fosse, mas que não me custava nada passar cinco minutos pela batota do D. Marcos.{28}

Fomos. Do dinheiro que eu tinha para despêsa de matriculas, livros e hospedagem, perdi quatro mil réis instantaneamente. Fiquei sobreexcitado com a perda; sedento de desforra. Tive, confesso-o, o pensamento de ir jogando todo o dinheiro que trazia até abrir brecha na banca. Queria uma vingança formidavel. Mas quando eu estava n'esta tortura, hesitante entre a febre e a honra, um braço invisivel, fosse o pulso do anjo da guarda ou o impulso da consciencia, como que me arrastou para fóra, não sem que os pés se me pegassem ao soalho.

Nunca me custou tanto ser homem de bem.

Corri á rua das Fontainhas. Surprehendeu-me vêr luz na escada e nas janellas. E dizerem os outros que D. Christina dormiria áquella hora como um poço de virtude! Bati. Um criado de casaca e lenço branco, o Miguel, veio abrir.

Que sim, que a senhora estava a pé, ceando, e que tambem lá estava o sr. Antonio Falcão, do Marco.

Embuchei. Pois a indigencia que o Muxagata me havia annunciado refestelava-se, depois da meia noite, n'uma ceia a dois, servida pelo Miguel de casaca e lenço branco?!

Pois as consequencias deploraveis do rapto, o quadro negro da fóme transmudavam-se n'essa orgia de bacchante perdularia, em que o Antonio Falcão do Marco era conviva suspeito?!

E emquanto subia as escadas envelheci moralmente outros vinte annos.{29}

A mesa da ceia resplandecia de loiças e cristaes. As joias de D. Christina não resplandeciam menos do que os cristaes e as loiças. E ella propria, na sua belleza acirrante, resplandecia mais que tudo aquillo.

Disse-lhe eu que era portador de uma encommenda para ella. Não ousei, por uns restos de pudor, dizer que a encommenda eram quarenta libras. D. Christina perguntou quem mandava a encommenda. Esta pergunta foi a minha ultima surpresa. De quem poderia ella esperar encommendas depois da meia noite? Ri-me para dentro, não obstante parecer-me que a pergunta, sendo muito melindrosa para o Muxagata, não o deixava de ser tambem o seu tanto ou quanto para mim.

Que era o morgado quem mandava... aquillo.

D. Christina não levou a sua impudencia até ao ponto de perguntar qual morgado era esse. Entendeu ou fingiu entender que seria o Muxagata.

—Como está elle? perguntou.

Eu respondi com alguma atrapalhação, que parecia troça:

—Bom. Muito obrigado.

E, do lado, o Falcão do Marco:

—Esse diabo de homem já se não lembra de nós, nem da filha! Nunca vi uma cabeça assim! Em tendo cartas e pontos não quer saber de mais nada! Pois já tinha motivos para ter juizo! Nem uma carta tem escripto á D. Christina, que estaria{30} para aqui sósinha com a pequena, se não fosse eu!

Levantei-me, puz as quarenta libras, descaradamente, á borda da mesa, sobre a toalha.

—Ah! é dinheiro! disse D. Christina cortando esquirolas de marmellada.

—São quarenta libras, respondi.

—Pois então faça-me o favor de lhe mandar dizer que ficaram entregues.

—Perdão! repliquei com certa rudeza. A sr.ª D. Christina vae escrever isso mesmo n'um bocado de papel, que eu mandarei ao morgado.

—Sim... farei isso. Mas primeiro acompanhe-nos a cear.

Agradeci, rejeitando. Então D. Christina disse ao Miguel que lhe trouxesse papel e lapis. E escreveu em lettra de collegial:

Recebi as quarenta libras.

Tua do coração

Christina.

Mais nada.

Saí, e respirei com soffreguidão a brisa fresca do Douro, que soprava do Passeio das Fontainhas. Uma tenue nebrina emplumava as arvores que ladeiam a rua. E eu, de mãos nas algibeiras, entregava-me dolorosamente, calçada acima, a esta cruel philosophia: «Onde hei de ir arranjar os quatro mil réis que perdi?!»{31}

Soube pela manhã que os outros tinham continuado a jogar, e ganharam.

Ora no decurso de dois annos succederam cousas que seriam espantosas se não fossem humanas.

D. Christina passou definitivamente do Muxagata, quando o sentiu irremediavelmente arruinado, para o Falcão do Marco, que por sua vez se arruinou tambem.

A lei de 1863 extinguiu os vinculos em Portugal, mas os ultimos exemplares da raça privilegiada dos morgados ainda hoje florecem, entre as Christinas indigenas, nas praias de Portugal, em proesas tradicionaes de batota, de femeaço e de gineta.

No inverno os mais d'elles desapparecem no fundo dos seus solares cultivando as batatas, que no verão seguinte hão de resuscital-os. O morgado nacional, depois que a phylloxera lhe comeu as vinhas, ficou reduzido ás batotas.

Mas o Muxagata foi a phylloxera de si mesmo: comeu logo de uma vez as vinhas e as batatas. Como todo o bom morgado, conservou, ainda na pobreza, o seu enthusiasmo pela equitação. E não tendo já cavallos para montar, cavalgava, ao longo dos vastos corredores no ruinoso solar de Muxagata, n'um cabo de vassoura. Um bello dia morreu, e não foi por desastre do seu ultimo cavallo... de pau.

Finis, laus Deo, perorei.{32}

O Leotte, que tinha voltado á sala e ouvido o final da historia, perguntou:

—Da D. Christina nunca mais soubeste!

Expludiu uma gargalhada geral.

—Olá! exclamei. Que novas nos trazes da tua exploração?

—Por ora... nada. Mas opportunamente farei o meu relatorio.

—Pois o mesmo não posso eu prometter a respeito da D. Christina. Nunca mais soube d'ella.

—E da filha o que foi feito? perguntou sentimentalmente o Gonçallinho.

—Tambem não sei. Se viver deve ter agora os seus dezenove annos.

—Como era o nome todo do Muxagata?

—Nunca lh'o soube. Por morgado de Muxagata era que toda a gente o tratava.{33}

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