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IV

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—Então, se não vamos ainda hoje ouvir os rouxinoes, tambem eu quero contar o meu conto, disse o Gonçallinho Jervis.

—Sim, senhor, concordou o Vasconcellos.

—Mas qual dos dois contos que nos annunciaste pelo caminho? perguntou o Athayde.

A Primeira entrevista. Tenho porém a prevenir o respeitavel publico, para evitar uma pateada, que o meu conto, ao contrario da historia do Muxagata, não aconteceu nunca. É uma phantasia que só poderia ter-se dado no paiz azul dos sonhos...

—Ditosa idade em que se pensam essas tolices! exclamou o Vasconcellos.

—Mau! protestou o Gonçallinho. Se ralhas, não conto.{34}

—Tem a palavra o poeta, que poderá sonhar á vontade sem que ninguem o interrompa.

Fez-se silencio. E o Gonçallinho, romanescamente, depois de ter mettido os dedos pelo cabello para levantar a gaforina, usou da palavra:

—Custou muito—disse, elle—a planear a primeira entrevista. Era preciso illudir a vigilancia de tanta gente, inventar tantas mentiras, saltar por cima de tantos embaraços! Mas, finalmente, o programma, laboriosamente organisado, tinha sido acceito pela credulidade das pessoas que se lhe poderiam oppôr. Ainda assim, Fanny não ficou inteiramente tranquilla. Durante os dias que medearam entre o da elaboração do programma e o da entrevista, andava desconfiada, escutava pelos corredores receosa de que falassem d'ella, parecia-lhe ouvir dizer o seu nome e cochichar depois em segredo... O olhar das pessoas de familia incommodava-a, como se todas essas boas pessoas tivessem realmente a intenção de observal-a por desconfiança, de lêr-lhe nos olhos esse audacioso plano de uma entrevista no campo.

É verdade que ao mesmo tempo que se sentia atormentada de receios, de vagos sobresaltos, pensava na delicia d'esse primeiro dia de liberdade no amor, sem testemunhas, sem disfarces, sentada com Elle á sombra das arvores, ouvindo cantar os passaros a sua canção de estio, vendo doudejar no ar as borboletas de grandes azas coloridas,{35} cujo vôo independente tantas vezes ambicionára...

Mas se um obstaculo imprevisto sobreviesse! Quanto esta ideia terrivel a amargurava! A doença de uma pessoa de familia, a carruagem que podia faltar, a chuva que poderia vir n'esse dia... Como isso era horrivel! Mas Fanny lembrava-se, para tranquilisar-se, de que a fortuna ajuda os audazes e de que, como premio á sua audacia, ouviria finalmente cantar os passaros a sua canção de estio nas grandes arvores sombrias.

Toda a base do seu programma era essa velha desculpa, sempre acreditada, a doença de uma antiga companheira de collegio, que está a ares no campo, e á qual se quer dizer o ultimo adeus.

Fanny tinha effectivamente uma amiga de collegio, que estava tysica, e como as duas familias se não visitavam, o pretexto pareceu-lhe excellente, o segredo não viria a descobrir-se.

Mas se a pobre doente morresse antes do dia marcado para a entrevista? O egoismo dos felizes não conhece limites: que morresse no dia seguinte, e tudo seria pelo melhor. Morrer antes, deixar de soffrer menos alguns dias, nem por pensamentos Fanny o queria admittir. E todavia, no collegio, as duas amigas haviam sido muito dedicadas, mas o tempo passára e só de longe a longe, de anno a anno talvez, se lembravam uma da outra.

Com o coração de oratorio, como um condemnado{36} que treme de todas as sombras, que tem medo do rumor de todos os passos, Fanny esperou que esse desejado dia chegasse.

Dormiu mal, somnos curtos e agitados. Parecia-lhe ouvir assobiar o vento nas ruas, bater a chuva nas vidraças. Um temporal seria o maior de todos os contratempos: não a deixariam sair, e, se deixassem, o campo estaria encharcado, o idillio perderia muito do seu encanto, não poderiam sentar-se os dois debaixo das velhas arvores ouvindo cantar os passaros a sua canção de estio.

Mas, ó felicidade! tão certo é que a fortuna protege os audazes: o dia amanhecera esplendido, o sol brilhava no céu como um rubi, e o calor do estio começava a cair como o halito ardente de uma forja.

Primeiro dia de liberdade no amor! tu és tão saboroso como a guloseima que o collegial devora em segredo na sombra de um corredor ou n'um recanto da cêrca. Tu és o fructo prohibido em que podemos finalmente saciar a nossa voracidade de Tantalos famintos.

A carruagem chegára a horas, a familia, já disposta de ante-mão, não oppuzera obstaculos. Fanny descera unicamente acompanhada de uma antiga criada, que fôra sua ama de leite, e quando entrou na carruagem nem sequer fez reparo n'esse pequenino groom de cabello louro, faces rosadas, que com os olhos postos no chão, n'uma attitude{37} reverente e humilde, se não era hypocrita, lhe abrira a portinhola do trem.

Fôra elle, o pequenino groom louro e rosado, que lhe acommodára a orla do vestido dentro do coupé e que, fechando-o cuidadosamente, esperára, sempre de olhos postos no chão, ouvir a ordem da partida.

O coração de Fanny batia como o de um canario agarrado na mão de uma creança. Ella não via, não ouvia, disse ao groom, sem fazer reparo n'elle, uma palavra. O groom saltou para a almofada com a ligeireza que só as azas podem dar, e a carruagem partiu n'um trote largo, rasgado, batido.

As arvores da estrada principiavam correndo aos lados do trem, fazendo os seus cumprimentos n'uma alacridade funambulesca. As arvores pareciam alegres, trocistas, ironicas, como se estivessem de posse d'aquelle doce segredo. Fanny, vendo-as passar rapidamente, cuidava ouvir-lhes dizer:

—Mil felicidades, excellencia...

E córava de pejo, engolfada em maviosos pensamentos, sem haver trocado com a sua velha ama uma unica palavra sequer.

Os passaros cantavam n'uma estridula folia matutina, e toda essa onda de alegria musical parecia inundar o coração feliz de Fanny, enchendo-o de canticos festivos, que resoavam como n'um ecco interior.{38}

Ao cabo de hora e meia de caminho a carruagem parára, não á porta da quinta onde a amiga de Fanny agonisava, como ella por disfarce dissera ao groom ao sair de casa, mas á porta de um velho castello desmantelado, a que se seguia um parque extenso, coberto de grandes arvores sombrias, onde os passaros cantavam em liberdade a sua canção de estio.

Era o logar da entrevista.

E Fanny, vendo parar ahi a carruagem, e apear-se o groom, sempre com a ligeireza de um genio alado, rosado e louro, com os olhos postos no chão, teve uma vaga suspeita de que esse groom, que ella só agora vira, fosse um confidente encarregado expressamente por Edmundo de desempenhar tão alta missão de confiança.

E, emquanto ella descera, o groom, n'uma attitude sempre reverente e humilde, com a mão na portinhola do trem, ajudara-lhe a desprender do estribo a orla do vestido branco e fresco, ligeiramente mosqueado de pequeninas flores de myosote, azues e microscopicas.

Uma deliciosa serenidade alegre alastrava-se por todo o parque n'uma solidão encantadora. Dir-se-ia que o fim do mundo era ali e que, dados mais alguns passos, por detraz das ultimas arvores do parque, deveria o ceu pousar na terra.

Edmundo lá estava no seu posto, fazendo sentinella á sua propria felicidade e, quando Fanny chegou, a arvore que o abrigava como que distendeu{39} os seus longos braços verdes para envolver tambem na mesma sombra o corpo de Fanny.

A velha criada afastou-se, moendo o tempo na contemplação das flores campestres e da larga cóma das arvores, ora dobrando-se, ora olhando para cima, e de vez em quando um melro velhaco—era decerto um melro—zombava da ignara situação moral d'aquella mulher desfeiteando-lhe o asseio do seu antigo chapeu de palha de Italia.

Uma ironia de melro!

Á sombra da grande arvore, que tinham escolhido, Fanny e Edmundo, enleiados pela cintura, bebiam a pequenos goles de liberdade a sua primeira taça de amor e, quando erguiam a taça aos labios, estalava-lhes na bocca um beijo demorado.

As horas passaram rapidamente, a velha criada já não tinha mais hervas que reconhecer, mais arvores que observar, e os proprios melros estavam aborrecidos de troçal-a.

Era preciso partir, o sol declinava, a tarde fugia. Mais um gole colhido nos labios, mais um beijo que se arrastava n'uma extensa melodia amorosa.

Finalmente, Fanny pôz o pé no estribo da carruagem e o groom, rosado e louro, com um olhar altivo, triumphante, abriu-lhe, de cabeça erguida, a portinhola do coupé e, quando a fechou, antes de subir para a almofada, pousou o dedo pollegar da mão direita sobre a ponta do nariz e espalmou a mão no ar, agitando os dedos.{40}

Era o Amor, disfarçado em groom, que celebrava a sua victoria como um gaiato de collegio.

C'est gentil! exclamou o Leotte.

—Bravo! mavioso Gonçallinho! conclamaram sete vozes.

E o Vasconcellos, logo reposto nas suas funcções austeras de dirigente, advertiu a assembléa de que onze horas e cinco minutos eram tempo muito conveniente para que em Cintra cada um pensasse em dormir.

—Onde estará o groom da tua ballada, ó Gonçallinho? perguntou o Leotte.

—Nos intermundios de Epicuro... respondeu o Athayde.

—Em cascos de rolhas... commentou o Vasconcellos.

—É que eu queria, concluiu o Leotte, que elle viesse accender-me a lamparina do quarto.

E, rindo, cada um de nós foi para a cama—ás onze e dez, noite velha no paraiso de Cintra, a 20 de maio.{41}

Noites de Cintra

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