Читать книгу A novela gráfica como género literário - Alexandra Dias - Страница 10
Оглавление«La littérature en estampes a ses avantages propres : elle admet, avec la richesse en détails, une extrême concision relative. (…) Elle a aussi cet avantage propre d’être d’intuition en quelque sorte, et, partant, d’une extrême clarté relative».
Rodolph Töpffer
Foi no inverno de 1830 que Frédéric Soret, tradutor de Métamorphose des Plantes, fez chegar a Johan Wolfgang von Goethe, pouco tempo antes da sua morte, dois manuscritos narrando as aventuras humorísticas de um colecionador de borboletas e de um cientista errático, ambos envolvidos em episódios burlescos e de refinado humor, o primeiro, pela constante fuga da sua autoproclamada noiva, e o segundo, por ser terrivelmente distraído. Os manuscritos, respetivamente L’Histoire de M. Cryptogame, 1830, e Voyages et Aventures du Dr. Festus, 1829, da autoria de um discreto professor, Rodolphe Töpffer, antigo colega e amigo de Soret, foram desenhados num estilo solto e irreverente, que rejeitava o ideal romântico de fusão perfeita entre homem e mulher e ridicularizava o clero, os militares e os homens da ciência48.
Goethe encontrava-se em luto pela recente perda do seu filho. Eckermann, seu secretário à época, que tinha conhecido Töpffer no regresso de uma viagem a Itália, encoraja Soret a trazer alguns dos trabalhos apreciados por si em casa do autor. Os divertidos diários de viagem e as histórias desenhadas plenas de humor pareciam o ideal para distrair o solitário octogenário49. Apesar de conservador e da sua antipatia para com os cultores da caricatura, Goethe apreciava estes pequenos álbuns que designava por «romances em caricaturas»50:
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Rodolphe Töpffer, Histoire de Mr. Jabot, 1833.
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Rien de plus fou! Rien de plus étrange! Mais il y a là-dedans les germes de beaucoup de talent et d’imagination; il y a, sous le rapport de l’art, tel croquis, telle esquisse, qui montrent tout ce que M. Töpffer pourroit faire s’il vouloit y mettre toute explication dont il est capable51.
Na correspondência trocada entre os dois amigos52, Soret comunica a Töpffer que o poeta alemão permaneceu com os manuscritos durante uns dias, olhando para algumas páginas de uma só vez, descansando depois, porque, dizia ele, «corria o risco de ter uma congestão de ideias»53. Soret acrescenta ainda que Goethe prometera escrever algo sobre os álbuns, o que veio a fazer num texto publicado postumamente no jornal literário Kunst und Alterthum em 183254. O encorajamento de Goethe – entusiasta destes «estranhos pequenos livros»55 e do seu autor pois, entre as pessoas de talento, ele «nunca encontrou um mais original»56 – foi decisivo para que Töpffer completasse dois novos álbuns e se aventurasse na sua publicação. As reflexões de Goethe tornaram estas histórias conhecidas dos literatos e críticos da época57 e fizeram com que o mundo acolhesse a obra daquele que é considerado hoje o pai da banda desenhada.
Rodolphe Töpffer nasceu em Genebra no ano de 1799, filho de Jeanne-Antoinette Counis e Adam Töpffer, pintor de profissão e caricaturista, de quem Rodolphe herdou o dom da observação e o gosto pela sátira. Como desenhador, Rodolphe Töpffer deve mais ao seu pai do que a algum outro mestre, com quem aprendeu a técnica do desenho a pena e o sentido da caricaturização58. Apesar do seu enorme talento, uma grave doença nos olhos obrigou-o a renunciar, com desgosto, à vocação de pintor, pelo que optou pelo estudo das línguas antigas, o que o conduziu a uma carreira como perceptor e, depois, como professor de Retórica e de Belas-Letras na Academia de Genebra. Dedicou-se ainda à escrita, contando-se entre as conhecidas histórias em estampas, novelas sentimentais, diários de viagens, pequenas farsas dramáticas, ensaios sobre teoria de arte, recensões e textos jornalísticos sobre variados assuntos, desde política a exposições de arte59. ←27 | 28→Em 1822, inicia a sua carreira no internato do pastor Jean Heyer, onde tem a oportunidade de realizar excursões pelos Alpes com os seus alunos, tradição que será acompanhada da narração, através de desenhos, das aventuras vividas nessas viagens60. É nos momentos em que vigia os seus alunos que cria Jabot, Crépin, Vieux-Bois, Pencil, Festus, Cryptogame, Trictrac, os protagonistas desta nova forma narrativa. Muito marcado pelas teorias fisionomónicas de Johann Kaspar Lavater61, o seu traço é ainda determinado pelas limitações na visão. No entanto, para David Kunzle, a sua afeção nos olhos não estaria somente na origem da sua vocação, ela determinou claramente o seu estilo62.
Töpffer deixou sete álbuns de banda desenhada e o rascunho de um oitavo. A sua primeira história em estampas, Mr Vieux Bois, é criada em 1827 e marca o aparecimento de um novo género – a literatura em estampas:
Faire de la littérature en estampes (…) c’est inventer réellement un drame quelconque, dont les parties coordonnées à un dessein aboutissent à faire un tout; c’est, bon ou mauvais, grave ou léger, fou ou sérieux, avoir fait un livre, et non pas seulement tracé un bon mot ou mis un refrais en couples63.
Crítico literário e erudito, Töpffer tem imediatamente consciência de ter inventado uma nova arte. Esta expressão surge pela primeira vez em Réflexions à Propos d’un Programme64, um prospeto anunciando a abertura de um concurso de histórias em estampas proposto por um mecenas anónimo. Töpffer reflete sobre estas histórias e a influência pedagógica que elas exercem sobre o imaginário popular do seu tempo, aproveitando para fazer uma homenagem a Hogarth, desenhador inglês considerado por ele o precursor e grande impulsor deste «género de literatura»65. O texto não faz nenhuma alusão aos seus próprios álbuns, que representam uma revolução na tradição das narrativas em imagens e fundam, segundo historiadores como François Lacassin, Thierry Groensteen ou David Kunzle, um género inédito – aquilo que designamos hoje como novela ←28 | 29→gráfica. A literatura em estampas é ainda alvo de atenção no opúsculo Essai de Physiognomonie, de 1845, um dos principais textos teóricos sobre este novo género. O Essai ocupa um lugar preponderante entre os textos de Rodolphe Töpffer consagrados às histórias em estampas, tanto pela sua extensão como pelo seu interesse teórico. Retomando as ideias de Lavater sobre fisionomia, mas aplicando-as a um processo gráfico específico, o autor suíço prenuncia a semiótica da imagem na teorização das personagens a partir de morfemas gráficos distintos que constituem os fundamentos da linguagem da banda desenhada66.
Groensteen e Peeters reconhecem que, se Töpffer fosse apenas o autor das narrativas em imagens, a dívida para com a banda desenhada já seria considerável, mas, não satisfeito com o facto de ter inventado o género, ele é também o seu primeiro teorizador67. Com efeito, Töpffer é o primeiro a utilizar intencionalmente esta forma narrativa e a refletir sobre ela, destacando, muito claramente, aquela que é a especificidade do seu discurso – a complementaridade entre o lisível e o visível: o texto completa a imagem, não podendo um sobreviver sem o outro. Institui o caráter misto daquilo a que chama «récit en images», afirmando que esta forma de contar histórias possui uma natureza mista, sendo impossível separar o texto da imagem:
Ce petit livre est d’une nature mixte. Il se compose d’une série de dessins autographiés au trait. Chacun de ces dessins est accompagné d’une ou deux lignes de texte. Les dessins, sans ce texte, n’auraient qu’une signification obscure ; le texte, sans les dessins, ne signifierait rien. Le tout ensemble forme une sorte de roman d’autant plus original, qu’il ne ressemble pas mieux à un roman qu’à autre chose68.
Com efeito, o autor de Mr. Vieux Bois percebeu desde logo as principais especificidades da banda desenhada: o caráter indissociável do texto e da imagem, o papel determinante da personagem na estrutura da narrativa, o tratamento gráfico das expressões corporais e faciais. As suas reflexões são inovadoras e antecipam algumas das tendências em que a nona arte veio a evoluir ao longo do tempo. As inovações introduzidas por Töpffer afetam todos os elementos constitutivos do género: o suporte, já que ele preconiza o uso do álbum autografado como suporte privilegiado para as histórias em estampas; as relações entre o texto e a imagem e as relações das imagens entre si, porquanto inventa a tira ←29 | 30→de banda desenhada; e, por fim, o conteúdo narrativo, pois Töpffer representa graficamente o tipo de personagem que constituirá a personagem-tipo da banda desenhada moderna69.
A sua obra exibe um grau máximo de integração do texto nas narrações em imagens. Apesar de as suas personagens não se exprimirem em balões, ainda que o procedimento lhe fosse familiar, o texto é inserido na mesma vinheta que a imagem, separado dela por um simples traço. A componente verbal e a imagem partilham o mesmo compartimento, numa proporção variável. Partilham os mesmos recursos plásticos e gráficos, elegendo o regime manuscrito, restituindo à caligrafia as suas qualidades estéticas.
Apesar de não se poder afirmar que Töpffer tivesse pressentido, a cento e cinquenta anos de distância, que o álbum se imporia como formato ideal à publicação de banda desenhada, a sua escolha está longe de ser indiferente. Optando por um livro inteiro, ele tem a possibilidade de desenvolver as suas histórias num número de imagens sem precedentes70. Para além de poder expandir a sua criatividade num maior número de folhas, o álbum obriga a que seja prevista a disposição das vinhetas nas diferentes páginas, o que corresponde à atual operação de decupagem, isto é, à ordenação dos sintagmas sequenciais, com vista a uma finalidade narrativa, uma das relações de tipo linear entre as imagens, que Thierry Groensteen designa por artrologia restrita71.
Töpffer exibe toda a sua mestria na composição da tira, unidade plástica e narrativa, explorando interessantes efeitos rítmicos da sequência dos quadradinhos e das páginas, cuja compartimentação não obedece a nenhuma outra regra que não a da eficácia retórica.
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Rodolphe Töpffer, Histoire d’ Albert, 1845.
O desenhador utiliza frequentemente a montagem paralela ou alternada, entrelaçando cenas simultâneas. Esta técnica, muito audaciosa para a época, assenta na repartição das vinhetas pelo espaço da página. Os diversos quadradinhos são muitas vezes repetidos de forma idêntica, de maneira que cada um dos lugares da ação é ancorado num sítio permanente na página. O texto vem em reforço da imagem, retomando várias vezes, sob o modo de refrão, os mesmos elementos72. De acordo com Groensteen, Töpffer, conjugando a decupagem analítica da ação e a montagem sintagmática dos fragmentos, pôs em prática técnicas narrativas cinematográficas meio século antes do aparecimento do cinema73.
Ao definir esta forma narrativa como literatura em estampas, Rodolphe Töpffer estabelece a primeira conceção desta arte como uma forma de literatura.
Na verdade, um livro em banda desenhada é, regra geral, uma obra de ficção, possuindo, tal como a literatura, uma componente textual literária. Vende-se em livrarias e aprecia-se através da leitura. A associação da banda desenhada à literatura constitui um fator de grande desavença entre aqueles que se dedicam ao seu estudo, não obstante ter existido um esforço de legitimação do meio através ←31 | 32→da comparação das literaturas desenhadas à literatura74, e através da constituição do seu corpo teórico pela adoção de conceitos oriundos da semiótica e da ciência literárias. No entanto, a questão impõe-se: e toda aquela banda desenhada que se configura como literária, nomeadamente as novelas e as adaptações de obras literárias? Que espécie de literatura é?
Aaron Meskin considera, no ensaio «Comics as Literature», que grande parte da resistência ao tratamento da banda desenhada como literatura resulta da combinações de três fatores essenciais: o primeiro, pensar a banda desenhada como literatura significa ignorar os seus elementos visuais; o segundo, não reconhecer a essência da banda desenhada, assim como aquilo que nela é distinto de outras formas; e, o terceiro, haver banda desenhada que não é literatura75.
Apesar da força argumentativa destas considerações, não temos necessariamente de abandonar a tese «da banda desenhada como literatura», por duas ordens de razões. Primeiro, porque existem bandas desenhadas que possuem os mesmos requisitos narratológicos e novelísticos de um romance e que, em processos de transescrita/adaptação, ao integrar excertos e/ou a totalidade do texto de origem, exibem as mesmas marcas de literariedade. Segundo, porque esta discussão, ao invés de constituir um impasse, permite uma discussão enriquecedora, tanto para a teoria literária como para a teoria da banda desenhada, permitindo compreender fenómenos de fusão interartística e perceber como os diversos sistemas semióticos se interpenetram dando origem a formas artísticas e a processos de hibridação novos.
Um debate em torno desta questão conduz-nos necessariamente à definição de literatura, alicerçada no conceito de literariedade, cuja síntese e percurso histórico são estabelecidos por Genette em Fiction et Diction. De acordo com Genette, a literatura é um objeto estético resultante do uso de um material específico, a língua natural. A literatura é, assim, a «arte da linguagem verbal» e uma obra de arte é literária quando, essencial ou exclusivamente, utiliza a língua verbal. No entanto, esta condição, apesar de necessária, não é suficiente76. A chave reside no que Jakobson designou por «literariedade», ou seja, «aquilo que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte»77. A literalidade constitui o objeto ←32 | 33→da Poética, que, enquanto ciência que estuda o discurso literário, constitui uma reflexão sobre a literatura, centrando-se não no conjunto de factos empíricos que determinam as obras literárias, mas no discurso literário, o que permite perspetivar a obra literária como uma estrutura abstrata na qual existem constantes discursivas que podem ser estudadas cientificamente78.
Foi com a finalidade de abarcar todo o domínio de estudos da arte, escolhendo a poesia como terreno de eleição, que se efetuou o renascimento da Poética. A Poética designa a abordagem da literatura em termos abstratos e internos, assentando na interrogação das propriedades do discurso literário, isto é, apresenta-se como uma teoria da estrutura e do funcionamento do discurso literário que «visa o conhecimento das leis gerais que presidem ao aparecimento de cada obra […] qualquer obra é então apenas considerada como a manifestação de uma estrutura abstrata muito mais geral, de que ela não é senão uma das realizações possíveis»79. A Poética constitui-se, então, como a ciência da literatura cujo objeto de estudo é constituído pelas propriedades que singularizam o facto literário – a literariedade. No sistema literário, «os formantes linguísticos obtêm […] um valor autónomo»80 e a linguagem desempenha uma função estética, o que se tornou a preocupação central da ciência literária, já que «o que importa para a Poética é a compreensão da função poética»81. A função poética é a orientação para «a mensagem enquanto tal», ou seja, a forma da mensagem na língua literária é o fator dominante, e a palavra, e por extensão a mensagem, é entendida enquanto forma, enquanto qualidade fonética, morfossintática e lexical.
Num ensaio de 1921, Roman Jakobson coloca a questão que se tornará o grande paradigma da teoria da literariedade, da seguinte forma: o que é que faz de uma mensagem verbal uma obra de arte82. A resposta reside na compreensão da função poética da linguagem. Jakobson apresenta seis fatores que intervêm em qualquer ato de comunicação verbal e que determinam uma função diferente, associando assim a matéria da poética – a linguagem – à da linguística. A ênfase colocada na mensagem caracteriza a função poética. Esta função não é a única possuída pela poesia, mas sim a mais dominante, servindo também para ←33 | 34→estabelecer a dicotomia fundamental entre signos e objetos, com o intuito de realçar a qualidade evidente daqueles, isto é, o seu lado palpável83.
Ainda que se distingam seis dos aspetos básicos da linguagem, não se encontram mensagens verbais que apresentem apenas uma destas funções. A particularidade dos diversos géneros poéticos reside no facto de implicarem a existência – paralela à da função poética, que é a predominante – das outras funções verbais numa ordem hierárquica. A estrutura verbal da mensagem depende, basicamente, da função predominante. Definida deste modo, a função poética conduz à necessidade de estabelecimento dos critérios que permitem reconhecer empiricamente a função poética através dos dois modos fundamentais de organização utilizados no comportamento verbal – a e a combinação84:
La fonction poétique projette le principe d’équivalence de l’axe de la sélection sur l’axe de la combinaison. L’équivalence est promue au rang de procédé constitutif de la séquence. […] Par l’application du principe d’équivalence à la séquence, un principe de répétition est acquis qui rend possible non seulement la réitération des séquences constitutives du message poétique, mais aussi bien celle du message lui-même dans sa totalité. Cette possibilité de réitération, immédiate ou différée, cette réification du message poétique et de ses éléments constitutifs, cette conversion du message en une chose qui dure, tout cela en fait représente une propriété intrinsèque et efficient de la poésie85.
Jakobson recorda, neste excerto, os dois modos básicos da conduta verbal: a seleção e a combinação. Num determinado enunciado verbal, o falante seleciona, numa determinada série, um signo verbal que se conjuga num discurso onde o eixo da combinação não é dominado pelo princípio da equivalência, ao contrário do discurso poético, onde o princípio de equivalência rege a seleção e ambos os termos selecionados se combinam dentro da cadeia da língua. A linguagem literária constrói as suas sequências, as suas cadeias, procurando contínuas equivalências com termos já emitidos, reiterando o emitido, repetindo na cadeia traços fónicos, morfológicos, sintáticos e semânticos. A manifestação linguística concreta da função poética da linguagem funciona como o eixo organizativo dos textos literários86.
A questão colocada explicitamente por Jakobson pode ser entendida, de acordo com Genette, de duas maneiras diferentes. A primeira parte da interrogação «quels sont les textes qui sont des œuvres?»87, a partir da qual se estabelece ←34 | 35→a necessidade de identificar a literariedade dos textos e averiguar as razões pelas quais são literários. Genette qualifica as teorias que seguem esta interpretação como constitutivas ou essencialistas, assinalando que são de caráter fechado. A segunda, estabelece-se a partir da interrogação «à quelles conditions, ou dans quelles circonstances, un texte peut-il, sans modification interne, devenir une œuvre?»88. Esta seria, para Genette, uma interpretação condicionalista de literariedade. A sua sugestão consiste em substituir-se a pergunta o que é literatura? por «quand est-ce de la littérature?»89, tendo esta abordagem um caráter aberto.
A primeira interpretação pertence às teorias clássicas: certos textos são, na sua essência, e sempre, literários face a outros que não o são. A resposta depende dos critérios utilizados para diferenciar os textos literários dos que não o são – critério de literariedade constitutiva. Historicamente, têm vindo a ser utilizados dois tipos de critérios: o temático e o formal90. De acordo com Genette, a história da poética clássica, essencialista, constitui um longo esforço para passar do primeiro para o segundo critério. Este autor relembra a distinção aristotélica entre os conceitos de poiesis e mimesis para tentar superar a falta de realização específica de literariedade. Etimologicamente, poiesis significa poesia, mas também criação; neste sentido, a Poética teria como objeto de estudo a língua enquanto instrumento de criação que cumpriria duas funções distintas: a função comum, legein, relativa ao falar, informar, etc., cujo estudo seria realizado pela retórica, e a função artística, poien, relativa à criação de obras com finalidade estética de cujo estudo a Poética seria especificamente responsável. Segundo Aristóteles, a língua só podia passar do seu estado normal, legein, ao estado artístico e poético tornando-se um veículo de mimesis, ou seja, de representação ou de simulação de factos imaginários91. A língua tornar-se-ia artística quando colocada ao serviço da ficção, pelo que Genette propõe traduzir mimesis por ficção. A força poética da linguagem encontra-se, assim, em Aristóteles, na vontade de criar e contar uma história. A atividade do poeta seria não a dicção, mas a ficção, tanto em verso como em prosa. Na poética ficcional entraria não somente a poesia, mas também a prosa e o drama, de tipo ficcional. Desta forma, a poesia configura-se como obra de arte quando escapa ao perigo de dissolução no uso quotidiano da língua verbal e se torna ficção narrativa ou dramática. Segundo Genette, o postulado mais forte da teoria aristotélica consiste em destacar a característica ←35 | 36→típica da ficção e propor ao público esse prazer desinteressado que distingue os juízos estéticos.
Genette defende um novo sistema, ilustrado por inúmeras variações na tríade lírico-épico-dramático, que consiste em repudiar o monopólio ficcional em detrimento de uma forma de duopólio, no qual a literariedade estaria vinculada a duas grandes categorias: por um lado a ficção, dramática ou narrativa, por outro, a poesia lírica. De acordo com Genette, a versão mais elaborada deste modelo é a proposta de Käte Hamburger, que distingue dois géneros fundamentais: a ficção (ou mimesis) e a lírica92. Ambos se caracterizam pela rutura com as regras da linguagem verbal que consiste em produzir enunciados de realidade, atos de fala realizados por um «eu-origo», mais ou menos real, e um determinado autor, narrador, personagens de ficção, cujo ponto de vista e situação espacio-temporal regem toda a enunciação do discurso. Para Hamburger, aquilo que distingue a linguagem quotidiana da literatura é o facto de as marcas de enunciação revelarem um grau maior ou menor de autenticidade. Entende-se por «enunciação autêntica»93 aquela em que é possível estabelecer graus de autenticidade, conforme os géneros épico, lírico ou dramático. Neste sentido, o género lírico é aquele em que se percebe um grau maior de autenticidade, pois nele um determinado eu produz enunciados de realidade autênticos, sem fingimentos; o género dramático ocuparia um ponto intermediário, já que nele se realiza a representação das ações expressas nos enunciados, mesmo que se finja; já o épico representaria a inautenticidade mais acentuada, através daquilo que a autora define como ficção e que está na base da sua teoria. A ficção é uma enunciação não autêntica, não porque ela tente fazer-se passar por real, mas porque se configura aos olhos do leitor como tal94. O que produz o efeito de não autenticidade é a estrutura lógica da ficção, formada por elementos como o monólogo e o diálogo. Mas o elemento preponderante em tal sentido é o que a autora define como «verbos dos processos internos»95. A narrativa ficcional compõe-se de verbos que são usados em situações em que jamais ocorreriam em enunciados autênticos. Da mesma forma, o facto de tais verbos aparecerem sob a forma do pretérito épico dão ao facto narrado um teor de impossibilidade que só a ficção pode produzir. É só no âmbito da ficção que tais enunciados podem ocorrer. A situação muda, porém, ←36 | 37→quando se trata de narrativas em primeira pessoa: «o eu da narração em primeira pessoa é um sujeito-de-enunciação autêntico»96. Este sujeito assemelha-se ao do género lírico, fala de si. Neste sentido, pode usar os verbos dos processos internos sem que isso apareça ao leitor como irrealidade. O sujeito da primeira pessoa pode dizer de si que pensou ou sentiu sem que pareça ao leitor um enunciado irreal. Neste caso existe fingimento, mas não ficção, pois a aparência de irrealidade deixa de existir. Por isso, Hamburger filia a narrativa em primeira pessoa nos relatos autobiográficos. Da autobiografia, a narrativa em primeira pessoa teria herdado os recursos que a fazem assumir o caráter de fingimento: tenta parecer real. É um enunciado autêntico, pois tal fingimento pode assumir, em casos extremos, a dificuldade de se precisar se o texto fala de um sujeito real ou inventado. Este caráter de fingimento faz com que a primeira pessoa assuma perspetivas narrativas que lhe garantam um aspeto de verdade. A origem na autobiografia faz com que a primeira pessoa assuma o caráter de uma narração histórica. O eu que narra não assume as formas do género lírico; possui, ao invés, a objetividade do relato histórico, pois o seu objeto passa a ser o próprio eu97. Nesta poética, a lírica é definida por uma determinada atitude de enunciação e, sobretudo, por um uso da língua diferente do normal, língua opaca, tornada matéria sensível e autónoma, não intercambiável, cujo fim é ela mesma.
A chave teórica de toda esta problemática reside, para Genette, no conceito de função poética de Roman Jakobson: a insistência do texto na sua própria forma, mais percetível, intransitiva, minimizando a função comunicativa da linguagem. À pergunta: o que faz de um texto uma obra de arte?, a resposta de Jakobson é clara: a função poética. A poesia é definida como linguagem na sua função estética98. Mas, de acordo com Genette, tal como a teoria aristotélica desprezava toda a poesia não-ficcional, Jakobson e os seus seguidores nunca tentaram seriamente agregar a esfera da ficção (prosa, teatro), caracterizando-a pela simples ausência de imposições formais. Assim, tanto a poética temática de Aristóteles como a formal de Jakobson têm apenas parte da razão, pois cobrem somente uma parte das esferas literárias. O mais grave, de acordo com Genette, é que ambas as poéticas, uma e outra de tipo essencialista, são incapazes de abarcar, por exemplo, a literatura não-ficcional em prosa como a história, a biografia, o ensaio, entre outros99.
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Genette entende, por isso, necessário recorrer a uma poética condicionalista, mais instintiva e ensaística do que teórica ou doutrinal, que confie ao juízo de gosto, subjetivo e imotivado, o critério da literariedade. O seu princípio básico consiste em considerar literário todo o texto que provoca prazer estético. A sua relação com a universalidade manifesta-se sob a forma de desejo, como demonstrou Kant100. O descritivo, nestas poéticas, tende a ceder perante o valorativo e, consequentemente, o diagnóstico de literariedade de um determinado texto confunde-se com a apreciação subjetiva da qualidade. A ficcionalidade é, então, condição necessária, mas não suficiente, para a literariedade. Genette diz estar convencido do contrário, pois, se uma epopeia, uma tragédia, um soneto ou um romance são obras literárias, não é em virtude de uma avaliação estética, mas sim de um traço inerente a tais textos, tal como a ficcionalidade e a forma poética101. A literariedade parece totalmente independente dos juízos de valor individuais ou coletivos. A consequência final, para Genette, parece evidente: não se deve substituir as poéticas essencialistas pelas condicionalistas, mas colocar estas num lugar junto àquelas.
A literariedade é um fenómeno plural, exige uma teoria pluralista que dê conta das diferentes formas que a língua tem de escapar à sua função prática e produzir objetos estéticos. Neste sentido, Genette propõe que na apreciação de um texto como obra literária entre em jogo o conceito de regime. Genette distingue em princípio dois regimes de literariedade: o constitutivo, complexo de intenções, convenções genéricas, tradições culturais, etc., e o condicional, apreciações estéticas subjectivas, e sempre revogáveis102. A categoria de regime cruza-se, para Genette, com a do critério empírico em que se baseia – ainda que seja a posteriori – um diagnóstico de literariedade. Distinguem-se dois tipos de critérios: o temático, relativo ao conteúdo do texto, e o remático, relativo ao caráter formal do texto, ao tipo de discurso que exemplifica. O cruzamento das duas categorias determina, para Genette, o quadro dos modos de literariedade possíveis. Assim, a literatura ficcional é a que se impõe essencialmente pelo caráter imaginário dos seus objetos e a literatura diccional ou de dicção é a que se impõe essencialmente pelas suas características formais. Neste sentido, admitindo a possibilidade de que se dão ambos os tipos no estado puro, Genette assinala que o mais frequente é que se combinem num mesmo texto literário. Por último, o autor assinala o que existe de comum entre o modo diccional e o modo ficcional: na sua opinião, ←38 | 39→é o caráter intransitivo, opaco, tanto do discurso poético como do discurso de ficção. A intransitividade da linguagem era atribuída só ao texto poético103, que se concretiza na imutabilidade da sua forma, mas no texto de ficção dá-se pelo caráter ficcional do seu objeto, que determina uma função paródica de pseudorreferência ou de denotação sem o objeto denotado. O texto de ficção, assim, não «conduz» a nenhuma realidade extratextual, tudo o que toma constantemente da realidade se transforma no elemento de ficção.
Ora, quando a banda desenhada surge, graças a Töpffer ainda antes do aparecimento da arte cinematográfica, vem inscrever-se no âmbito do género narrativo e apropria-se das propriedades gerais de toda a narrativa, assim como do seu caráter ficcional. Para Groensteen, a banda desenhada conhece um problema muito semelhante àquele que afeta desde há muito o mundo das letras, pois não basta alinhar uma série de palavras para se obter uma obra literária, da mesma forma que não é suficiente alinhar imagens, mesmo solidárias entre si, para obter uma banda desenhada. Seguindo a esteira de Genette, também Thierry Groensteen considera que outras condições podem ser legitimamente trazidas a debate para a banda desenhada, tais como a natureza das imagens, a matéria, o modo de produção, as características formais, os modos de articulação, o suporte, a difusão e ainda as condições de receção, isto é, tudo o que inscreve as imagens num processo de comunicação específico. Para Groensteen, a procura da essência da banda desenhada não equivale ao processo de definição de literariedade104.
A banda desenhada assenta num dispositivo que não conhece o uso familiar, já que nem todas as pessoas, e muito menos todos os desenhadores e artistas, se exprimem através deste meio – logo, apenas se pode comparar a outras formas de criação que tocam o domínio da arte ou da ficção. Uma vez que a banda desenhada não é fundada sobre um uso particular de uma língua, Groensteen defende que não é possível defini-la em termos de dicção. Mas ela também não se confunde com uma das formas de ficção, uma vez que existem bandas desenhadas publicitárias ou de propaganda, pedagógicas ou políticas, e, pontualmente, reportagens onde predomina a intenção de informar e de testemunhar. Esta plasticidade da banda desenhada permite-lhe veicular mensagens de toda a ordem, assim como narrativas não ficcionais, e demonstra que antes de ser uma arte é nitidamente uma linguagem105.
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Assim, fica estabelecido que a banda desenhada não é uma forma de literatura, pois é uma linguagem, a usada pelas novelas gráficas. Se partirmos da questão colocada por Gérard Genette: quando ou onde há literatura?, e considerarmos com este autor que é literário qualquer texto que num regime condicional produz comprazimento estético, a novela gráfica é literatura: configura-se como uma estrutura abstrata na qual existem constantes discursivas homólogas às literárias, nomeadamente a linguagem ficcional. A ficcionalidade não caracteriza de modo exaustivo o texto literário, mas constitui uma propriedade necessária para a sua existência. Assim, a novela gráfica compartilha com a literatura o caráter de ficcionalidade, e é reconhecida como literária, porque a atitude de leitura que postula, enquanto prazer independente de qualquer interesse no sentido kantiano, é a do comprazimento estético.
Desde os primeiros trabalhos estruturalistas acerca da banda desenhada, na sequência dos estudos de Umberto Eco e de Pierre Fresnault-Deruelle sobre a sua linguagem, que se tem vindo a verificar um interesse crescente por este meio ainda pouco conhecido no meio universitário. Este processo sofreu – e sofre ainda – altos e baixos, mas, analogamente a outro tipo de estudos sobre objetos mais ou menos comparáveis, como a fotonovela ou as adaptações cinematográficas, a atividade desenvolvida pelos investigadores em banda desenhada, sem ser abundante, não é negligenciável. Os progressos da teoria da banda desenhada não se revelaram ainda capazes de fundar uma verdadeira disciplina, nem de dissipar a desconfiança que continua a cercar o seu objeto. Não obstante, muitos são os esforços teóricos que procuram definir a especificidade da sua linguagem. Ao longo do tempo, acabou por se constituir um corpus que nos permite efetuar o percurso da metalinguagem da banda desenhada106 desde a derivação formalista, herança da ciência semiótica de 1960, até ao fim da década de 1990, momento em que decorre a tentativa de definir a banda desenhada como uma linguagem, com as suas próprias unidades e os seus próprios códigos, cuja forma mais realizada foi dada por Thierry Groensteen em Systéme de la Bande Dessinée.
Rodolph Töpffer, ao destacar a indissociabilidade do texto e da imagem no exercício da literatura em estampas, estabelece a primeira conceção desta arte como sequência narrativa linear composta por signos icónicos e verbais, como ←40 | 41→uma linguagem onde o texto e a imagem surgem lado a lado, indissociáveis no processo de enunciação narrativa, apresentando assim a primeira definição de banda desenhada. A importância de Töpffer não residiu apenas no facto de a sua obra antecipar aquilo que viria a ser a banda desenhada contemporânea, os seus textos críticos constituem a primeira reflexão teórica sobre esta nova forma artística situada entre a caricatura tradicional e o imaginário pessoal. Depois deste esforço de teorização inicial, a prática pouco se separou da teoria. Passado mais de um século desde a publicação da primeira obra teórica, surge aquela que é considerada a primeira tentativa de sistematização estruturalista da linguagem da banda desenhada.
Em 1964, Umberto Eco, em Apocalittici e Integrati: Comunicazioni di Massa e Teorie della Cultura di Massa, defende uma nova orientação nos estudos dos fenómenos da cultura popular, criticando a postura apocalítica daqueles que acreditavam que a cultura de massa era a ruína dos «altos valores» artísticos:
E precisamente naquele ano leio L’esprit du temps de Edgar Morin, o qual diz que para podermos analisar a cultura de massas é preciso divertirmo-nos com ela secretamente […] Então porque não usar as minhas histórias aos quadradinhos e os meus livros policiais como objeto de trabalho?107.
Desenvolvendo uma série de investigações sobre o fenómeno da receção, Umberto Eco procedeu a análises teóricas das mensagens introduzindo uma vasta dimensão semiótica constituída pela variabilidade dos códigos. Esta constatação leva-o a afirmar que as histórias de Milton Caniff se configuram como um novo género literário:
Steve Canyon […] colocou-nos perante a existência de um «género literário» autónomo, dotado de elementos estruturais próprios, e de uma técnica comunicativa original, baseada na existência de um código partilhado pelos leitores e ao qual o autor recorre para articular, segundo leis formativas inéditas, uma mensagem que se dirige, conjuntamente, à inteligência, à imaginação e ao gosto dos leitores108.
Na teoria crítica de Eco, a semântica da banda desenhada é constituída por uma série de elementos figurativos estereotipados, as metáforas e as onomatopeias visuais, e os diferentes tipos de balões surgem como elementos morfológicos que constituem a componente verbal da banda desenhada. Estes elementos semânticos estruturam-se numa gramática do enquadramento, e, neste âmbito, articulam-se numa série de relações entre palavra e imagem, nomeadamente as ←41 | 42→relações de complementaridade, de reiteração pleonástica e de independência irónica entre palavra e imagem. O semiólogo utiliza o termo enquadramento para definir as relações sintáticas da banda desenhada, identificando-o com o conceito cinematográfico de montagem. Umberto Eco foi o pioneiro na análise semiótica baseada na noção de código, defendendo que as unidades de articulação da imagem são apenas definíveis no contexto dessa mesma imagem, de tal forma que as imagens não são articuladas através de um código, mas texto icónico é um ato de produção de código, análise que viria a prevalecer nas décadas seguintes, influenciando de forma decisiva a abordagem teórica da linguagem da banda desenhada.
Três anos mais tarde, em 1967, a Société Civile D’Études et Recherches des Littératures Dessinées, SOCERLID, organiza a exposição Bande dessinée et figuration narrative no Musée des Arts Décoratifs de Paris. Esta exposição vem a exercer uma influência profunda sobre a conceção que o público tem acerca deste meio. Por um lado, constitui a primeira tentativa de legitimação cultural da banda desenhada, e, por outro, o catálogo que dela derivou procura concretizar uma história da nona arte nas suas dimensões histórica e sociológica, mas também artística e estética. Este catálogo expõe, por ordem cronológica, as principais séries e os seus autores, contextulizando-os histórica e sociologicamente, apresentando um tipo de análise dos processos narrativos e da estrutura da imagem na banda desenhada contemporânea que teve uma adesão imediata por parte dos teorizadores. A década de 60 é ainda marcada por títulos como Bande Dessinée et Cultures, de Évelyne Sullerot, 1966, ou Opera Mundi e Bande dessiné: Histoire des histoires en images, de la préhistoire à nos jours, de Gérard Blanchard, 1969, reveladores das tendências historicizantes na abordagem da banda desenhada.
A década de 1970 inicia-se com duas obras bem distintas entre si: por um lado, o catálogo da exposição exibida na Maison de la Culture de Montreuil, Imagerie Populaire Contemporaine, la Bande Dessinée, de 1971; por outro, uma recolha de artigos de aproximadamente quinhentas páginas, o que representa, face à época e à matéria tratada, uma obra de grande envergadura, de Francis Lacassin, intitulada Pour un 9e Art, la Bande Dessinée. Esta obra encontra-se organizada em quatro partes. A primeira, intitulada De l’Image Narrative à la Narration en Images, onde o autor, após apresentar a sua definição de banda desenhada, estabelece o seu percurso histórico; a segunda, intitulada Quelques Classiques, é composta pela análise de autores clássicos e dos seus trabalhos; a terceira, Miroir du Monde, estabelece as semelhanças entre a banda desenhada e a literatura popular, e atém-se em aspetos tais como a ficção científica, o herói, o racismo e o sonho, sempre numa perspetiva sociológica, e a quarta, Bande ←42 | 43→Dessinée et Cinema, onde o autor sistematiza a comparação entre cinema e banda desenhada.
No ano seguinte, em 1972, Fresnault-Deruelle propõe, em La Bande Dessinée, Essai d’Analyse Sémiotique, entender a banda desenhada como uma gramática. Este investigador enquadra a banda desenhada em duas dimensões essenciais, a morfologia e a sintaxe. A morfologia comportaria todos os elementos constituintes da linguagem específica da banda desenhada: os elementos de natureza icónica, como a cor, o desenho, os tipos de plano no sentido cinematográfico e os ângulos de visão, a perspetiva, o contraste; os elementos de natureza verbal, como a legenda e o cartucho; e ainda os elementos de natureza icónico-verbal, de que são exemplo a onomatopeia e o balão. A sintaxe constituiria a componente da gramática que daria conta das relações existentes entre todos estes elementos organizados no quadradinho, unidade mínima de sentido, e na vinheta, sintagma frásico.
Títulos como Le Langage de l’Image de Anne-Marie Thibault-Laulan, de 1971; La Bande Dessinée et son Discours, de 1976; Panorama de la Bande Dessinée de Jacques Sadoul, de 1976, que consiste na análise histórica e artística de cerca de duzentas bandas desenhadas francesas, belgas, italianas, americanas, entre outras nacionalidades, publicadas entre 1897 e 1975, numa edição ilustrada; La Chambre à Bulle de Pierre Fresnault-Deruelle, de 1977; La bande dessinée de Jean-Bruno Renard, de 1977, que consiste na introdução à história, à técnica, à estética e à sociologia da banda desenhada; ainda Récits et Discours par la Bande de Pierre Fresnault-Deruelle, de 1977, e Les Spectres de la Bande de Alain Rey, de 1978, (estudo sociológico, semiológico e didático da banda desenhada) – são reveladores tanto da abordagem estruturalista, como da especialização do discurso teórico da banda desenhada. Alain Rey revoluciona mesmo estes estudos chegando a afirmar que o aspeto fundamental da banda desenhada reside na troca entre os valores textuais e figurativos, no jogo criativo entre figuração e narratividade, e não entre imagem e texto como era ideia corrente109.
A década de 1980 reproduz a tendência da década anterior, com a publicação de muitas obras de caráter histórico, pedagógico e sociológico, nomeadamente, Avanies et Mascarades de Bruno Lecigne, de 1981, Bande Dessinée Chinoise, de 1982, La BD Critique Latino-Américaine (Idéologie et Intertextualité) de Maria Perez-Yglesias e Mario Zeledon-Cambronero, de 1982, Flashes sur le Comique d’Images dans le Filme et dans la BD, obra coletiva, de 1983, La Bande Dessinée à l’ Université… et Ailleurs: Études Sémiotiques et Bibliographiques de Jean-Louis ←43 | 44→Tilleul, de 1984, Autour de la BD, obra coletiva de 1985, La Bande Dessinée depuis 1975 de Thierry Groensteen, de 1985, La Bande Dessinée de Anne Baron Carvais, de 1985, Le Mystère de la Case Vide de Luc Dellisse de 1986, Pour Analyser La Bande Dessinée de Jean-Louis Tilleul, de 1987, que permitem observar a progressiva sistematização dos mecanismos semióticos da banda desenhada. Nos Estados Unidos, em 1985, Will Eisner edita Comics & Sequential Art, pela Poorhouse Press, obra de caráter didático que surge em consequência do curso lecionado pelo desenhador na New York’s School of Visual Art, onde introduz o conceito de banda desenhada como «arte sequencial». Em 1988, novamente na Europa, Luís Gasca e Roman Gubern, com El Discurso del Comic, produzem uma obra sem precedentes na teoria da banda desenhada, apresentando uma compilação classificada e sistematizada das suas principais convenções semióticas, exemplificadas com a reprodução de cerca de duas mil vinhetas. Ainda no ano de 1988, decorre em Cerisy-la-Salle, promovido pelo Centre National de la Bande Dessinée et de l’Image, CNBDI, o ciclo de conferências Bande Dessinée – Récit et Modernité, que constitui uma reflexão teórica sobre a banda desenhada em torno de quatro questões essenciais: a) quais as circunstâncias históricas que permitiram o nascimento da banda desenhada no final do século passado; b) qual o domínio temático que melhor serve à banda desenhada; c) quais as relações entre o universo visual representado e o argumento; d) quais os dispositivos plásticos e narrativos de que a banda desenhada se serve na estruturação de uma prancha e na totalidade da narrativa – questões que permitem uma abordagem inovadora e cada vez mais sistemática da linguagem da banda desenhada. A abordagem semiológica encontra o seu seguimento com Sémiologie du Récit en Images de Alain Berghala, de 1988, e a abordagem histórica prossegue com Hergé Écrivain de Jan Baetens, de 1989, e On A Marché Sur La Terre de Pierre Masson, de 1989.
A década de 1990 distingue-se pela tentativa de definição da essência da banda desenhada, pela explicitação das especificidades da sua linguagem e pela reflexão sobre a produção das décadas anteriores, assim como a indagação sobre aqueles que serão os seus novos caminhos. Os títulos que expressam estas tendências são: Lire La Bande Dessinée de Pierre Masson, de 1990, Lectures De Bande Dessinée de Jean-Louis Tilleul, de 1991, Pour Lire La Bande Dessinée de Arnaud de la Croix e Frank Andriat, de 1992, La Bande Dessinée de Benoît Peeters, de 1993, Pour Une Lecture Moderne de la Bande Dessinée de Jan Beaetens e Pascal Lefèvre, de 1993 e La Bande Dessinée de Thierry Groensteen, de 1997.
A ligação da banda desenhada ao cinema recebe cada vez mais atenção: Cinéma et Bande Dessinée, obra coletiva com a edição de Gilles Ciment, de 1990, e Le Langage Cinématographique en Bande Dessinée, de 1992 consistem ←44 | 45→no estudo dos pontos de interseção entre os dois meios de narração através de imagens, nomeadamente a animação e o guião.
Do outro lado do Atlântico, surgem duas obras de importância fundamental: Understanding Comics: The Invisible Art, de Scott McLoud, de 1993, e Graphic Storytelling de Will Eisner, de 1996. Ambas exploram as definições de banda desenhada, o seu desenvolvimento histórico e o seu vocabulário essencial, assim como os diferentes meios através dos quais a sua linguagem é expressa.
Em 1994, Thierry Groensteen e Benoît Peeters dedicam à vida e obra de Rodolphe Töpffer o volume Rodolphe Töpffer – L’Invention de la Bande Dessinée, da Hermann. Em 1998, Jan Baetens edita Formes et Politiques de La Bande Dessinée, onde desenvolve o estudo da técnica efabulatória e de mecanismos narratológicos tais como a elipse, específicos do discurso da banda desenhada. Ainda no mesmo ano, Benôit Peeters vê publicado Case, Planche et Récit, que incide sobre aspetos como a vinheta, a composição da prancha, o movimento e a leitura de uma página de banda desenhada. Este autor propõe quatro princípios – convencional, decorativo, retórico e produtivo – de construção das pranchas, cuja conceção surge no cruzamento de dois eixos: a relação entre a narrativa (récit) e a imagem (tableau), e a prevalência de uma sobre a outra. Dá especial destaque ao facto de a banda desenhada permitir precisamente uma leitura narrativa, linear, literária, assente na legibilidade, e uma leitura tabular, assente na visibilidade, pois a prancha configura-se como um quadro visual, um conjunto organizado de imagens.
Distinguem-se nestas três décadas de investigação teórica sobre a banda desenhada dois tipos de análise: por um lado, uma análise semiótica baseada na noção de código; por outro lado, uma análise mais empírica, que procura definir a especificidade da banda desenhada, descrevendo as relações texto-imagem.
Pierre Fresnault-Deruelle é o único investigador que no meio universitário francês se interessou pelo discurso crítico da banda desenhada. No ensaio «Semiotic Aproaches to Figurative Narration», de 1990, distingue quatro períodos sucessivos: a idade arqueológica da década de 1960, onde os autores, nostálgicos, descobrem as leituras da sua infância; a idade sócio-histórica e filológica da década de 1970, na qual a crítica organiza os textos nas suas variantes e reconstitui as suas filiações; a idade estruturalista da década de 1980; e a idade semiótica e psicanalítica da década de 1990110. Thierry Groensteen, que cita este estudo, subscreve de uma forma geral esta periodização, cujas categorias considera necessário combinar. Das quatro tendências distintas, nenhuma foi ←45 | 46→realmente abandonada; elas coexistem como vias divergentes ou paralelas, abertas à investigação, não se excluindo umas às outras, em particular a crítica temática e o estudo dos géneros, como o humor, o fantástico, o western, entre outros. Interessa-lhe particularmente o facto de Fresnault-Deruelle assinalar o aparecimento de um quinto estrato, o de uma crítica neo-semiótica onde o acento seria colocado sobre a dimensão poiética da banda desenhada, em que se inscreve a sua obra Système de la Bande Dessinée111. Esta obra é publicada em 1999, pela Presses Universitaires de France. O seu objetivo principal, e aquilo que a distingue, é considerar a banda desenhada enquanto linguagem e enquanto conjunto singular de mecanismos produtores de sentido. Esta linguagem não passará por uma apertada análise estrutural ou semiótica narrativa, como também não será tratada a questão do signo. Thierry Groensteen situar-se-á à margem da ortodoxia disciplinar da semiologia, apresentando uma proposta que designa como neo-semiótica112 inscrita na perspetiva macrossemiótica do Grupo μ. A leitura de diferentes investigadores convenceu o autor de que uma teoria da banda desenhada deve renunciar imperativamente a duas ideias comuns que, ainda que tenham inspirado a maior parte das abordagens semióticas, lhe parecem constituir um obstáculo à compreensão real deste assunto. A primeira, é a de que o estudo da banda desenhada, como o de qualquer outro sistema semiótico, deveria passar pela decomposição em unidades constitutivas elementares, e a segunda, a de que a banda desenhada seria essencialmente um misto de texto e imagem, uma combinação específica de códigos linguísticos e visuais, um local de reencontro entre duas «matérias de expressão» no sentido hjelmsleviano113. Opondo-se a estas conceções, Thierry Groensteen pretende demonstrar o primado da imagem e, por conseguinte, a necessidade de elaborar uma teoria sobre aquilo que designará como «códigos visuais». Salienta que não é central, na análise da linguagem da banda desenhada, a questão da existência ou não de signos visuais, pois os códigos mais importantes são os que concernem unidades maiores, mais elaboradas. Estes códigos governam a articulação, no tempo e no espaço, das unidades a que se dá o nome de «vinhetas» e obedecem a critérios tanto visuais como narrativos ou, mais corretamente, discursivos. Entrar no interior da prancha, dissecar a vinheta para enumerar os elementos icónicos ou plásticos de que a imagem se compõe, em seguida estudar os modos de articulação destes elementos, supõe uma grande devassidão de conceitos que não conduz a ←46 | 47→nenhum avanço teórico significativo. Groensteen está convencido de que não é abordando a banda desenhada ao nível do detalhe que se poderá chegar a uma descrição coerente e racional da sua linguagem. Antes pelo contrário, é abordando-a a nível das suas grandes articulações, isto é, das operações que consistem em organizar conjuntos de unidades que funcionam ao mesmo nível. O objetivo deve ser, pois, o de definir categorias suficientemente englobantes para que a grande maiori dos procedimentos linguísticos e dos elementos figurativos observáveis possa ser explicada por conceitos114.
Ao contrário de Alain Rey, que afirma, em Les Spectres de la Bande, que o essencial da banda desenhada reside na troca entre os valores textuais e figurativos115 no jogo criativo entre figuração e narratividade, e não entre imagem e texto116, Thierry Groensteen sustenta que é a solidariedade icónica o princípio fundador da banda desenhada e que é necessário reconhecer como único fundamento ontológico da banda desenhada a relação que se estabelece entre uma série de imagens solidárias, e que esta mesma relação admite diversos graus e conjuga diferentes operações. O autor define como solidárias as imagens que, participando de uma série, apresentam a dupla característica de serem fragmentadas, encerrando no seu seio uma série de temas ou histórias, e de serem plástica e semanticamente predeterminadas pela sua coexistência in praesentia.
A condição necessária para que se possa falar de banda desenhada é que as imagens existam em número múltiplo e se correlacionem entre si, mesmo que aquilo que se ofereça ao olhar seja sempre um espaço fragmentado, compartimentado, uma exposição de quadros justapostos117. Uma página de banda desenhada constitui uma unidade que tem de ser decifrada analiticamente. A leitura vinheta a vinheta não deixa de ter em conta a totalidade do campo panótico que constitui a página, ou a dupla página, porquanto a visão focal é enriquecida pela visão periférica. Enquanto objeto físico, toda a banda desenhada pode ser descrita como um conjunto de ícones independentes, mas solidários. Se considerarmos um determinado conjunto de pranchas de diferentes origens, apercebemo-nos que elas satisfazem esta condição mínima mas também que nem todas obedecem aos mesmos propósitos ou mobilizam os mesmos mecanismos118, razão pela qual Thierry Groensteen escolheu como conceito nuclear a noção de ←47 | 48→sistema, a fim de constituir um quadro conceptual onde todas as atualizações da nona arte podem ter lugar e ser pensadas em relação umas às outras, quanto às suas diferenças e semelhanças.
Groensteen define banda desenhada como uma combinatória original de uma (ou duas, com a escrita) matéria(s) de expressão e de um conjunto de códigos, sendo esta a razão que permite descrevê-la em termos de sistema, pois considera que aquilo que faz da banda desenhada uma linguagem única é, por um lado, a mobilização simultânea de um conjunto de códigos visuais e discursivos, e, por outro, o facto de esses códigos, que não lhe são exclusivos, se especificarem logo que são aplicados a uma matéria de expressão bem precisa como o desenho. O problema colocado ao investigador não é o de privilegiar este ou aquele código: é encontrar uma via de acesso ao interior do sistema, que permita explorá-lo na sua totalidade, e fazer surgir a sua coerência interna. O objetivo deve ser o de definir categorias suficientemente englobantes para que a maioria, ou a totalidade, de procedimentos linguísticos e de elementos figurativos observáveis possa ser explicada por conceitos119.
Groensteen propõe realizar este programa a partir das categorias espaciotopia, artrologia e entrelaçamento (tressage), todas elas dando conta das relações entre as imagens e identificando os códigos «tecidos» no seu interior que asseguram a sua dependência de uma cadeia narrativa, em situação de copresença espacial. Considerar a banda desenhada como um local de confronto entre o verbal e o icónico constitui uma posição teórica que conduz a um impasse. Se Groensteen defende que se conceda à imagem um estatuto proeminente, é pela simples razão de que ela ocupa na banda desenhada um espaço mais importante do que o reservado ao texto. O seu predomínio no seio do sistema prende-se com o facto de, no essencial, o sentido se produzir a partir da imagem.
Este investigador inaugura uma nova escola no âmbito do estudo da banda desenhada, ao assumir, numa perspetiva semiótica visual, uma nova abordagem dos fundamentos da linguagem e dos mecanismos produtores de sentido da nona arte, dissolvendo alguns dos equívocos em que assenta a sua tradicional teorização. Um desses equívocos é precisamente a subordinação da banda desenhada a conceitos oriundos da linguística cuja operatividade nem sempre se revela a mais adequada. Ainda que insistindo na necessidade de singularizar a linguagem da banda desenhada, Groensteen reconhece o paralelismo entre os processos desta arte e os do cinema, as duas formas narrativas em imagem por excelência. Em «Du Septième au Neuvième Art: L’Inventaire des Singularités», um dos seus ←48 | 49→ensaios de referência, estabelece um quadro de semelhanças e diferenças entre as duas artes, colocando em evidência a singularidade da banda desenhada, e mostra como os seus princípios funcionais se organizam num dispositivo que deve muito ao modo de enunciação fílmica120. As diferenças entre banda desenhada e cinema são claras, repousando em três critérios fundamentais: a matéria de expressão, o processo de elaboração e o modo de articulação das imagens121.
Quando se fala de narrativa em imagens, faz-se referência a dois domínios autónomos, apresentando cada um deles um certo número de características próprias, relativamente às quais banda desenhada e cinema constituem dois subconjuntos. O primeiro destes domínios é o da narrativa e o segundo é o da imagem. Além de serem duas espécies narrativas, filme e banda desenhada têm também em comum o facto de recorrerem à representação, de narrarem através de sequências de imagens. É um dado trivial a existência de uma gramática da imagem: formas, cores, luz e composição são parâmetros sobre os quais cineastas e desenhadores continuam a fundar a parte visual do seu trabalho. De forma diferente do romance, filme e banda desenhada apresentam, de acordo com a terminologia proposta por Metz e retomada por Gaudreault, uma história «em atos» representada pelas próprias personagens. Tanto um como o outro, nos mostram as personagens a agir em vez de nos relatarem as peripécias que sofrem. À narração acrescenta-se um novo modo de comunicação que Thierry Groensteen designa como monstration, termo que tomou de empréstimo a Gaudreault122, e que significa produção de um simulacro analógico. Tanto no cinema como na banda desenhada, monstration e narration são indissociáveis. A literatura romanesca conhece sobretudo a narração, enquanto a pintura e a fotografia conhecem a monstration123.
Groensteen observa que, se a banda desenhada constitui, como se repete frequentemente, um género misto, é a esta fusão interna de narração e monstration que o deve. De seguida, a combinação de textos e desenho, característica objetiva da banda desenhada, não pode ser estabelecida como um elemento fundamental da sua definição. Em primeiro lugar, porque a história da banda desenhada é ←49 | 50→marcada pela existência de obras «mudas», isto é, sem componente verbal, que, tornando-se exceção à regra, não deixam de ser obras de banda desenhada. Em segundo lugar, a combinação de texto e imagem não constitui um critério suficientemente discriminativo para ser definitivo, já que é uma constante da arte moderna. E em terceiro lugar, na constituição de uma banda desenhada, texto e desenho não têm uma existência proporcional em termos quantitativos.
Groensteen alerta para o erro que decorre do estabelecimento de uma equivalência entre os termos da soma texto e imagem e os da soma narração e monstration. Se o desenho é o grande agente, exclusivo, da monstration, o texto não é seguramente o único veículo natural e privilegiado da narração. De facto, podemos observar uma grande diversidade de estratégias narrativas utilizadas pela banda desenhada, desde aquela que confia toda a narração ao desenho até àquela que assenta internamente no texto, para a produção de sentido. Na esmagadora maioria dos casos, o essencial da narrativa é transmitido pelo desenho e é este que valida a expressão narrativa em imagens. Esta expressão é reversível, podemos entendê-la como narrativa que incorpora as imagens ou, então, como sequência de imagens que se constitui como uma narrativa.
O texto de uma banda desenhada não preenche senão uma função narrativa direta. Frequentemente, a componente textual consiste apenas em breves precisões fornecidas pelo narrador quanto às coordenadas espácio-temporais da ação (por exemplo a indicação de uma elipse). No momento em que o texto pretende ultrapassar esta pretensão na narrativa corre o risco de se tornar redundante. Numa banda desenhada, os dois constituintes principais do texto são, por um lado, os diálogos, e, por outro, os comentários que exprimem um ponto de vista subjetivo sobre a ação – esta, geralmente, da passagem principal, objeto e instrumento de uma focalização. A imagem pode reproduzir ou simular todas as atividades humanas, exceto uma, fundamental: a linguagem. As palavras tornam-se difíceis de transpor para outro sistema significante que não a linguagem, por isso não há outra forma a não ser citá-las diretamente, apesar de uma citação ser um elemento estranho, uma peça incorporada.
As funções precisas e limitadas que reconhecemos ao texto da banda desenhada são precisamente as mesmas que encontramos no cinema. A voz off assegura os comentários e fornece os elementos da interpretação, o que na banda desenhada existe como texto escrito. Os diálogos são ditos em vez de serem escritos, ouvidos em vez de lidos. Apenas muda o suporte material, a função do texto na narrativa não é modificada. Groensteen observa que o facto de o diálogo ser escrito nas vinhetas não lhe confere um estatuto diferente e não seria argumento para definir a banda desenhada como uma sucursal da literatura, um género para- ou infra-literário, ou então teríamos de ver o cinema como ←50 | 51→um retorno à literatura oral. Esta evidência refuta declaradamente, segundo este autor, as teses que reforçam o argumento de que o texto escrito é o aspeto essencial da narrativa em banda desenhada e que, por esse motivo, lhe atribuem o estatuto de literatura gráfica. Rodolphe Töpffer via no texto e na imagem duas componentes proporcionalmente «iguais» da banda desenhada, que definia a partir do caráter misto. Este ponto de vista, sustentável na sua época, deixou de o ser na atualidade. Efetivamente, na economia da banda desenhada, aqueles que reconhecem à componente verbal um estatuto idêntico ao da imagem, partem do princípio de que o escrito é o veículo privilegiado da narrativa. Ora a multiplicidade das espécies narrativas tornou inválido este postulado.
A banda desenhada é um modo de expressão sequencial, caracterizado pela justaposição de imagens solidárias entre si. Signos icónicos e verbais são dispostos dentro dos limites de unidades mínimas de sentido, os quadradinhos, de cuja organização sequencial resulta a vinheta. Deste caráter sequencial da banda desenhada resulta a designação sequential art, de Will Eisner, que entende a banda desenhada como um meio visual composto por imagens justapostas em sequência linear.
A unidade espacial de referência da banda desenhada é o quadradinho – porção de espaço isolado pela margem, normalmente de cor branca, delimitada pelo traço do quadro que a isola. É o quadradinho que compõe a tira, que, por sua vez, estrutura a prancha. A prancha corresponde à repartição dos quadradinhos e à composição gráfica da página. Esta redução da página a uma “grelha vazia” lembra a Groensteen dois postulados frequentemente esquecidos pela teoria da banda desenhada. O primeiro é que a banda desenhada é composta por imagens sequenciais solidárias entre si, e o segundo é que as suas imagens se relacionam espacialmente, antes de conhecerem outro tipo de relação, o que constitui desde logo um fator de narratividade124.
Groensteen, reconhecendo o fundamento da banda desenhada na solidariedade icónica, isto é, no jogo de sucessão e coexistência de imagens, no seu encadeamento diegético e na sua exposição panótica, faz notar que é através da colaboração entre as categorias artrologia e espaciotopia que a imagem sequencial se torna plenamente narrativa, prescindindo do apoio verbal. Considerando necessário adequar ao contexto da banda desenhada os conceitos herdados da investigação semiótica literária e cinematográfica, este autor propõe uma nova terminologia, em Système de la Bande Dessinée, assente nos três termos fundamentais mencionados atrás: espaciotopia, artrologia e entrelaçamento (tressage). ←51 | 52→Estes termos possuem a vantagem de distinguir, sem separar completamente, a descrição dos quadradinhos e a observação das suas coordenadas espaciais:
[…] les paramètres spatio-topiques que je serai appelé à distinguer relèvent tous de la géométrie, qui est la science des figures de l’espace. Il serait donc possible de faire l’économie du néologisme spatio-topie et d’utiliser tout simplement le terme géométrie. Cependant, la terminologie proposée a l’avantage de distinguer, sans les séparer complètement, deux ordres de curiosité : la description des figures (vignettes) en soi, et l’observation de leurs coordonnés en situation125.
A banda desenhada subjuga as imagens que a compõem através de diferentes tipos de relação. Para qualificar o conjunto de relações, Groensteen utilizará um termo genérico e de larga aceção: o de arthrologie, do grego arthron, que significa «articulação». Toda a imagem desenhada se manifesta e existe num espaço. Pôr em relação os quadradinhos de uma prancha de banda desenhada implica necessariamente relacionar os espaços, concretizar uma partilha do espaço. Serão estes os princípios fundamentais desta distribuição espacial que serão analisados, desde logo, à luz da espaciotopia, termo criado para reunir os conceitos de espaço e o de lugar, onde serão sucessivamente convocados os traços específicos da banda desenhada como o balão, o quadrado, a tira ou vinheta, a moldura, a prancha, e as suas interações analisadas. Esta precedência concedida às relações de ordem espacial e topológica vai ao encontro da opinião corrente, atrás referida, que defende que, na banda desenhada, a estratégia narrativa é totalmente submetida à organização espacial e comandada por ela. O discurso suscitaria ou ditaria, à medida do seu desenvolvimento, o número, a dimensão e a disposição das vinhetas, dispondo-se dentro de uma forma. Esta forma é precisamente o dispositivo espaciotópico, uma das chaves da espaciotopia, e também uma das chaves do sistema da banda desenhada, um complexo de unidades, de parâmetros e de funções126. No momento de produzir a primeira vinheta em banda desenhada, o autor já tomou algumas opções estratégicas, ainda que possam vir a ser modificadas depois, que têm a ver com a distribuição dos espaços e a ocupação dos lugares. É da competência da paginação a gestão do espaço da página, a especificação das opções e a atribuição a cada prancha da sua configuração definitiva.
A banda desenhada não é apenas a arte do fragmento e da distribuição, ela é também a arte da conjugação, da repetição e do encadeamento. É no interior do dispositivo espaciotópico que Groensteen distingue dois graus nas relações que se podem estabelecer entre as imagens127. As relações elementares, de tipo ←52 | 53→linear, constituem aquilo que Groensteen denominará artrologia restrita. Governadas pela operação de montagem, isto é, segmentação e disposição, colocam em ordem os sintagmas sequenciais, frequentemente subordinados a fins narrativos. É a este nível que intervém prioritariamente a componente escrita como operador complementar da narração. As outras relações, translineares ou distantes, pertencem à artrologia geral e recusam todas as modalidades do entrelaçamento (isto é, a operação que, desde o momento da criação do texto em banda desenhada, programa e efetua séries de sentido no interior da sequência narrativa128). Estas representam um nível mais elaborado de integração entre o fluxo narrativo e o dispositivo espaciotópico, cuja componente essencial, tal como a nomeou Van Lier, é o multiquadro. Este termo sugere, além da ideia de multiplicidade, a redução das imagens à sua moldura, ao contorno, e especialmente ao traço que a delimita. Permite imaginar uma banda desenhada vazia, sem conteúdos icónicos e verbais, e constituída por uma série finita de quadradinhos solidários entre si, ou seja, permite imaginar uma banda desenhada provisoriamente reduzida aos seus parâmetros espaciotópicos. São três os parâmetros espaciotópicos, os dois primeiros de natureza geométrica, a forma e a superfície, e, o terceiro, o «sítio» ou posição ocupada pelo quadradinho na página:
[…] il faut déjà mobiliser trois paramètres si l’on veut décrire avec précision une vignette quelconque, sans préjuger de son contenu. Ces paramètres spatio-topiques sont toujours observables, même si la vignette est (…) vide. Les deux premiers sont géométriques : ce sont la forme de la vignette (rectangulaire, carré, ronde, trapézoïdale, etc.) et sa superficie, mesurable en centimètres carrés. Ils définissent la vignette en tant qu’espace. Cette dimension spatiale de la vignette se résume et s’incarne dans le cadre. Le cadre est à la fois trace et mesure de l’espace habité par l’image.
Le troisième paramètre, qui est le site de la vignette, concerne son emplacement dans la page et, au delà, dans l’œuvre entière129.
Este terceiro parâmetro determina o protocolo de leitura, dado que é a partir da localização das diferentes componentes do multiquadro que o leitor estabelece o percurso a seguir.
←53 | 54→
A representação de um multiquadro pode ser observada a partir desta adaptação de uma prancha do desenhador português Vyktor a uma grelha vazia.
A integração e a articulação a nível espacial representam os processos fundamentais da narrativa em banda desenhada:
(…) les articulations du discours de la bande dessinée portent indissociablement sur des contenus-incarnés-dans-un-espace, ou si l’on préfère sur des espaces-investis-d’un-contenu. La spatio-topie est donc une partie de l’arthrologie, un sous- ensemble arbitrairement découpé, et sans autre autonomie que celle que veut bien lui reconnaître, à un moment donné, la recherche, à des fins heuristiques. Il est utile en effet, pour appréhender certains niveaux de fonctionnement du langage de la bande dessinée, d’opérer intellectuellement cette réduction de la planche à un assemblage de cadres et de bulles vides. Dans la réalité, cet assemblage n’est nulle part observable comme tel, et n’a pas même préexisté, sous une forme déjà si élaborée, à la version finale, complète, de l’objet planche130.
Ao longo do processo de elaboração de uma banda desenhada – e ela começa por ser uma forma mental – é necessário desenvolver uma espécie de diálogo com este meio artístico, verificar a viabilidade e a aplicabilidade de um determinado ←54 | 55→argumento a um encadeamento em «molduras». A espaciotopia é o ponto de vista que podemos ter sobre a banda desenhada antes de pensar numa história em particular, e a partir do qual é possível pensar numa nova possibilidade do meio. Quando se dá forma a um conteúdo, quando uma história preenche o multiquadro, a questão dos encadeamentos e das articulações torna-se preponderante. Articular os materiais icónicos e linguísticos é uma tarefa da montagem. Articular os quadradinhos é tarefa da paginação. Montagem e paginação são as duas operações fundamentais da artrologia que a operação de entrelaçamento remata eventualmente. Ambas se servem dos elementos que dependem da espaciotopia. A paginação assegura a integração e a gestão dos parâmetros espaciotópicos de uma banda desenhada, não só por estabelecer relações proporcionais e posicionais entre os quadradinhos, já preenchidos pelos seus conteúdos verbais e icónicos, mas também por assegurar o seu grau de autonomia percetiva131.
Desde o instante em que o autor confia à linguagem da banda desenhada a história que pretende contar, ele pensa essa história, e a sua obra nasce no interior de uma forma mental determinada que é necessário gerir esteticamente e traçar através de signos. Não se tratando de uma forma de escrita pictogramática, a escrita da banda desenhada possui outras especificidades que observaremos a seguir.
A importância de Töpffer não residiu apenas na reflexão teórica sobre esta nova forma artística, como já dissemos; a sua obra antecipa aquilo que viria a ser a banda desenhada contemporânea. Benôit Peeters salienta que Töpffer, ao utilizar de forma brilhante a sua limitada capacidade de desenhar, criou um novo tipo de escrita, a escrita por imagens132.
L’on peut écrire des histoires avec des chapitres, des lignes, des mots: c’est de la littérature proprement dite. L’on peut écrire des histoires avec des successions de scènes représentées graphiquement : c’est de la littérature en estampes133.
Se considerarmos, com Roland Barthes, que a literatura não é um conjunto de obras, mas sim uma prática de escrita134, a literatura em estampas é o exemplo ←55 | 56→extremo da rutura com a conceção logocêntrica preconizada por Derrida135. Assim, a escrita da novela gráfica, não se limitando a uma prática que decorre da utilização de uma semiótica icónico-verbal, obedece às regras de um código específico e aciona dispositivos de ordem espacial — a espaciotopia, o entrelaçamento e a decupagem —, que, como vimos, são próprios da linguagem da banda desenhada e determinam a conceção e a planificação do ato de escrita, atuando como fator de constrangimento criativo.
Pensar a banda desenhada enquanto escrita foi o objetivo de um grupo de autores franceses de banda desenhada que, em 1990, criou o grupo OuBaPo (Ouvroir de Bande Dessinée Potentielle). Jean-Cristophe Menu, Patrice Killoffer, Etienne Lécroart, entre outros desenhadores e autores, desenvolveram um programa de aplicação de restrições aos seus desenhos e textos, seguindo o modelo de restrições literárias utilizado, em décadas anteriores, por autores pertencentes ao célebre grupo OuLiPo (Ouvroir de Litérature Potentielle) como Georges Perec e Ítalo Calvino. Esta oficina de literatura foi fundada pelo escritor Raymond Queneau e pelo matemático François Le Lionnais. As suas bases foram traçadas na década de 1960, em França, quando um grupo de escritores procurou conceber uma vanguarda literária. Num século que nasceu sem a dependência de métricas e de rimas, onde todos os modelos haviam já sido explorados e subvertidos, constroem-se novas medidas num exercício de composição inovador. Inventam-se novos jogos de linguagem, importam-se conceitos matemáticos para a literatura, criam-se restrições para produzir um novo meio de escrita literária136. Estas restrições foram a base de muitas publicações, tais como o célebre romance La Disparition, de Perec, escrito sem a letra «e», a vogal mais usada na língua francesa137. Sem um programa estético definido, o objetivo do grupo era inventar ou reinventar regras de tipo formal que permitissem, com uma pequena quantidade de matéria – a verbal – e de mecanismos – as restrições impostas – conceber o maior número de obras literárias. Revigoram-se técnicas da antiga retórica capazes de romper com a ideia de inspiração e de génio como motores de criação, explorando a escrita do ponto de vista técnico.
Os oulipianos são seguidos não só por novas gerações de escritores, mas também copiados por diversos domínios artísticos, dando origem a uma linhagem de «oficinas» reunidas sob o nome de OuXPo, expressão que designa qualquer arte que se desafia a si própria, explorando e subvertendo as suas potencialidades ←56 | 57→estéticas138. É neste panorama criativo que se inserem os oubapianos. Na primeira publicação, que reúne as experiências de alguns dos seus autores, a OuPus1 apresenta textos teóricos sobre a OuLiPo e a própria OuBaPo. Jean-Christophe Menu refere, no ensaio «Ouvre-Boîte-Po», que, justamente, por ser uma arte à margem, pouco «explorada», a banda desenhada tem muito mais potencialidades a serem descobertas e, sendo uma arte «potencial», presta-se à invenção constante139. Num texto que se tornou fundador, «Un premier bouquet de contraintes»140, publicado no mesmo número da OuPus, Thierry Groensteen, em lugar de invenção, fala em transformação lúdica, introduzindo a noção de «reinterpretação gráfica». A «transformação lúdica» consiste em modificar o estilo gráfico da obra sem alterar o assunto141. Groensteen apresenta exemplos, tais como as reproduções que Moebius fez de algumas personagens da Marvel, nomeadamente, o Homem de Ferro, o Super-Homem e o Homem-Aranha, ou que Bilal fez de Tintin, ou, ainda, as versões manga de personagens de banda desenhada ocidental. Estas representações constituem, apenas, um exercício ilustrativo; no entanto, o facto de o traço dos seus artistas ser conhecido, cruzado com aquelas personagens, também conhecidas, leva a que se crie um espaço ficcional, potencial, onde se mantém o conteúdo mas se altera a forma, ainda que esta alteração conduza necessariamente à modificação da mensagem semântica.
A prática levada a cabo pela OuBaPo abraça experiências que fogem à narrativa clássica da banda desenhada, mas nem sempre se distingue, de forma clara, da prática da banda desenhada experimental, pois admite muitas formas de realização que se destacam pelo uso não convencional dos seus códigos de expressão que, sem assentarem em mecanismos de constrangimento assumidos enquanto tal, são explorados, subvertendo os códigos tradicionais. Esta atitude de subversão, assim como a insatisfação quanto à visibilidade artística, a resistência aos clichés sobre a banda desenhada e à desvalorização do género caracteriza todo o grupo que tem como regra a imposição de entraves: escrever a partir de técnicas restritivas e somente a partir delas. Deste modo, o grupo explora as estruturas artísticas da linguagem da banda desenhada, estabelece escolhas editoriais, que não as padronizadas, reinventando o livro enquanto objeto; reabilita estratégias surrealistas como a exploração de associações de ideias e de sonhos e privilegia ←57 | 58→registos autobiográficos. Desenvolve restrições como a eliminação de elementos estruturantes: a narrativa, o texto ou mesmo a imagem, de que são exemplo as histórias sem personagens, as narrativas em 3D e as sequências icónico-verbais poéticas, desprovidas de dimensão diegética.
Os constrangimentos estudados, e usados, pela OuLiPo, segundo Thierry Groensteen, no texto já citado, podem aplicar-se de forma idêntica à banda desenhada, pois aquilo que distingue a banda desenhada potencial da literatura potencial é o mesmo que distingue a banda desenhada convencional da literatura convencional. Na interseção entre o domínio literário e o da banda desenhada, o autor recorda que ambas têm em comum veicular e produzir um discurso; no entanto, a literatura é feita exclusivamente de palavras e de signos tipográficos que entram frequentemente, mas não obrigatoriamente, na composição da banda desenhada, onde são confrontados com motivos visuais, esses sim, completamente alheios ao universo literário. Na banda desenhada, o texto é um elemento facultativo e, estando presente, a sua relevância é de grau variável142. Para determinados semiólogos, a essência da banda desenhada é fundada na combinação do texto e do desenho, na sua irredutível mistura, o que constituía a convicção de Töpffer, em 1837. Se reconhecemos o texto como um dos dois elementos constitutivos da banda desenhada temos, em consequência, de associar a sua ausência nas silent strips, isto é, nas pranchas sem texto, a uma supressão ou a uma mutilação voluntária. Ainda que em reduzido número, a banda desenhada sem texto marca toda a história da nona arte, razão pela qual Thierry Groensteen considera que o texto é um ingrediente contingente, dispensável à produção de uma banda desenhada143.
As diferenças entre os dois domínios artísticos são determinantes para melhor identificar o campo de ação da banda desenhada potencial. É o desenho na sua fisicidade que está na base dessa distinção. Primeiro, a banda desenhada e a língua não partilham nem o mesmo alfabeto, nem a mesma sintaxe. É evidente que a sintaxe da banda desenhada é bem distinta, refere Groensteen, porquanto não há uma vinheta que cumpra a função sintática de sujeito, de predicado ou de complemento; no entanto, não pode ser negada a existência, no seio da prancha, de um conjunto submetido ao duplo regime da decupagem e da paginação, assim como de múltiplos laços de subordinação e de coordenação entre as imagens144. Os diferentes autores não estão de acordo quanto a poder identificar, ←58 | 59→num desenho, pequenas unidades discretas, indivisíveis e em número finito, correspondendo a um alfabeto. Na banda desenhada, são as relações entre os componentes da mesma imagem – nível morfológico – e as relações entre as vinhetas contíguas – nível sintático – que são semanticamente determinantes. Assim, os constrangimentos de tipo oulipiano, assentando na ordem, no número, na extensão ou na natureza das pequenas unidades da língua, não encontram equivalente aplicável à banda desenhada, exceto operar sobre unidades de maior amplitude e já muito elaboradas. A segunda diferença reside na solidariedade existente entre a banda desenhada e o seu suporte. Salvo exceções, como o caligrama e outras formas de texto poético, o texto literário é indiferente à sua repartição no espaço da página e no do livro. O escritor não pensa nele e entrega esta preocupação aos cuidados do editor. Já na banda desenhada, cada vinheta ocupa um local específico. A prancha, enquanto espaço compartimentado, determina uma localização para cada imagem, assim como uma forma e uma superfície. A gestão destes parâmetros constitui não somente uma prerrogativa do desenhador, mas uma parte essencial do seu trabalho. Os parâmetros técnicos do suporte, nomeadamente, o formato do livro, o número de páginas, a impressão a cores ou a preto e branco, entre outras restrições impostas pelo editor em consequência das especificidades da coleção de que fará parte, são constrangimentos que determinam a sua criação e com as quais o autor tem de lidar no momento em que concebe a obra. Para a OuBaPo, esta submissão obrigatória às normas do suporte, de um lado, e a solidariedade natural entre o enunciado e um espaço determinado que lhe corresponde, por outro, têm pelo menos duas consequências. Desde logo, certos constrangimentos que afetam a forma, o número de vinhetas, nomeadamente as técnicas de redução textual que não podem aplicar-se a não ser a bandas desenhadas curtas, uma vez que tecnicamente é muito difícil reduzir a duas ou três pranchas um texto mais extenso. Em seguida, os constrangimentos não podem ser implementados sem uma intervenção sobre o suporte em si: eles obrigam a divergir dos standards editoriais. Assim, a decupagem, as dobras, a introdução de elementos móveis ou páginas com transparências, etc., serão um recurso frequente nas obras oubapianas, pois agir sobre a escrita da banda desenhada é necessariamente agir sobre a imagem e sobre a organização do espaço ou da natureza do suporte145.
Partindo dos mesmos princípios da OuLiPo, os autores da OuBaPo adoptaram uma série de restrições que subdividiram em dois tipos: as restrições geradoras e as restrições transformadoras, que Groesnteen apresenta sob a forma de ←59 | 60→uma taxonomia146. As restrições geradoras são aquelas que, através de uma série de estratégias de escrita, permitem criar novos textos. Pertencem, a este grupo, a restrição icónica que consiste em limitar ou eliminar um elemento visual; a restrição plástica que reduz o modo de representação a figuras geométricas, marcas de carimbos, cores, etc.; a restrição do enquadramento que o circunscreve a um determinado ponto de vista ou ângulo de visão; a iteração icónica ou a repetição de uma imagem ou de um elemento gráfico; a iteração icónica parcial ou repetição de uma imagem com pequenas variações. Groensteen afirma que estas quatro primeiras restrições regulam a alternância da repetição e estabelecem a diferença que está na base da criação de histórias em banda desenhada e, portanto, são as mais comummente utilizadas. Seguem-se a pluri-legibilidade, isto é, a leitura em mais do que um sentido: tanto da direita para a esquerda como da esquerda para a direita, o equivalente ao palíndromo literário; a reversibilidade, ou possibilidade de uma banda desenhada poder ser lida em mais do que uma orientação: de cima para baixo e de baixo para cima; a montagem, ou seja, a conceção da página de forma a permitir leituras novas, com inclusão ou não de acetactos ou outro tipo de elementos que podem ser sobrepostos ao texto existente; a sequência aleatória, isto é, páginas cujas vinhetas são recortadas e cuja mobilidade lhes permite uma sequência em qualquer ordem; a distribuição regular, ou seja, a introdução (binária, aritmética, exponencial, etc.) de um determinado elemento de vinheta para vinheta. Groensteen propõe ainda a conceção de narrativas onde o espaço transcorrido entre os painéis aumentaria de acordo com uma determinada regra; a ordenação geométrica ou fixação da ordem e da forma das vinhetas numa página147.
As restrições transformadoras são as que atuam sobre um texto já existente, transformando-o num novo texto. Fazem parte deste grupo a substituição do texto ou da imagem, ou de ambos, de uma determinada história de banda desenhada. Os exemplos de substituição icónica são raros, mas Schuiten, o conhecido autor de Peanuts, adicionou imagens de uma parte de uma história de Tintin e incorporou-a na sua própria história. Uma outra variação, proposta por Killoffer, membro fundador da OuBaPo, é designada por «aveugle double»148. Alguém escolhe ou desenha uma página de banda desenhada; de seguida, dá o texto a um desenhador, pedindo-lhe para criar novos desenhos; e depois dá a prancha sem texto a um argumentista, pedindo-lhe para introduzir um novo ←60 | 61→texto e preencher os balões de fala, de pensamento, ou as legendas da narração; finalmente, os novos desenhos e o novo texto são combinados numa história nova, apenas marginalmente relacionada com o trabalho original. Outro método tomado de empréstimo à Oulipo é o «N+7» que consiste em substituir cada substantivo pelo sétimo que se lhe segue na ordem estabelecida pelo dicionário. Seguem-se a expansão, ou seja, o desenvolvimento de uma obra já existente acrescentando-lhe vinhetas; o seu oposto, a redução, seja ela arbitrária ou através de um princípio orientador; o reenquadramento que permite expandir ou reduzir o quadro de uma vinheta; a reinterpretação gráfica, que consiste em redesenhar uma novela gráfica ou recriar o seu estilo, de forma paródica ou não e, por último, a hibridação, união de duas vinhetas de duas ou mais narrativas icónicas, podendo ser do mesmo autor ou de autores diferentes149. Este ensaio de Groensteen tornou-se um texto crítico-doutrinário que forneceu a análise mais apurada de todos os tipo de constrangimento.
Jan Baetens, responsável pela edição da antologia Romans à Constraintes, dedicada à questão das restrições na literatura em prosa francesa, vem contrariar o preconceito instituído de que escrever sob constrangimento é uma prática exclusiva da poesia, provando que a sua disseminação é uma das tendências fundamentais da literatura moderna de expressão francesa150. Originalmente publicada entre o ano de 1991 e 2002, esta obra serviu ao investigador belga de ponto de partida para a reflexão sobre a escrita da banda desenhada no artigo «Comic strips and constrained writing», de 2003151. Neste ensaio, o autor vai centrar-se na conceção de escrita, aplicando o conceito literário de «escrita por constrangimento», que designa todas as formas de escrita baseadas em regras preconcebidas, formais ou semânticas, ao campo da banda desenhada. Baetens analisa a maneira como algumas teorias da escrita por constrangimento podem ser úteis à análise dos problemas teóricos levantados pela composição de um romance gráfico e concentra-se na distinção entre duas maneiras de escrever: a integrada, ou completa, e a dissociada, ou incompleta. A dissociação consiste em separar quase totalmente a obra do parâmetro governado pelas restrições impostas. O processo de integração consiste na interação permanente de todos os parâmetros do texto da banda desenhada, sujeitos ou não à restrição inicial. Segundo Baetens, é necessário estabelecer uma distinção entre os mecanismos da escrita dissociada ←61 | 62→e da escrita integrada, pois até agora esta distinção não foi plenamente reconhecida e todos parecem assumir que a escrita é necessariamente um processo integrado, sendo os processos dissociados geralmente excluídos da atenção crítica152.