Читать книгу Sangue Contaminado (Laços De Sangue Livro 7) - Amy Blankenship - Страница 2
Capítulo 1
ОглавлениеCraven percorreu as ruas da cidade após ter enviado Nighthawk e Tiara para a fortaleza deles. Tinha ficado a saber o nome da rapariga pelo índio. Diversas descargas de adrenalina estavam a deixá-lo eufórico… sendo uma delas o facto de, finalmente, ter a filha que sempre desejara. Afastou a sensação de urgência, sabendo que ela não acordaria durante algum tempo.
Acreditava que Nighthawk não ia sentir o impulso de magoá-la de nenhuma forma… conseguira vê-lo nos olhos do índio, e isso deixou-o curioso. Tinha estado em busca de uma razão para o zombie convertido em Caminhante da Noite ter optado por ficar consigo. Agora, parecia que Nighthawk tinha estado simplesmente à espera de algo… ou de alguém.
Ambos queriam proteger a pequena e bela necromante… mesmo que fosse por motivos diferentes. Se ela se parecesse minimamente com a mãe, Craven não podia culpar Deth por ter gerado uma criança com tal ser humano. Não conseguia sentir a força vital do irmão neste mundo e a ideia de que tinha acabado de abandonar a filha era perturbadora.
Ver Nile a sofrer às mãos dos filhos que o atacavam deu-lhe uma imensa satisfação. Nile ter-se-ia tornado rapidamente num problema se não tivesse sido parado. Era um mestre de demónios e tinha já adquirido muita força ao tomar para si aquele cemitério colossal. Até mesmo um demónio de classe inferior podia tornar-se num empecilho se o seu exército atingisse tais proporções.
Mesmo não tendo sido ele quem acabara por matar Nile, poder testemunhar a sua destruição relembrou Craven das guerras de demónios de tempos passados. Isto encheu-o de sede de sangue e da necessidade de lutar por domínio. Emoções avassaladoras raramente o dominavam, mas quando tal sucedia, ia procurar algo que tivesse de ser eliminado.
O tempo que passara na fenda não era mais do que uma memória fugaz. O tempo deixou-o suspenso naquele lugar… parecendo-se muito com uma boa noite de repouso. Conseguia sentir o lapso no tempo apenas quando a fenda se abria e ele acordava. Assumia que era a mesma coisa que puxar almas do além… existia a mesma confusão.
A noite tinha dado lugar à madrugada, mas, ao contrário de alguns dos seus subordinados… Craven não estava vinculado à noite. Quando estava com disposição, abater um ou dois mestres mais fracos era um passatempo agradável. Conseguia já sentir o cheiro da desordem em que estavam a deixar a cidade.
Encostou-se a um dos edifícios para assimilar toda a informação. Este era o mesmo mundo em que vivera durante tanto tempo, antes de ser banido para a quietude da fenda, mas agora era diferente em tantos aspetos. Estes tempos eram mais sofisticados… e, no entanto, mais selvagens do que se lembrava. As ruas que atravessavam o terreno continham tantos segredos…, mas, com cada alma que tocava… iria aprender mais sobre estes tempos através das suas memórias.
O número de humanos tinha aumentado, juntamente com o número de almas que tinham ficado para trás para assombrar a cidade. Conseguia senti-las dentro das casas, dos hospitais… em todo o lado. Viu um autocarro da cidade a passar lentamente e reparou na alma de um homem que o olhava fixamente através da janela.
Seria esta a razão pela qual os cemitérios que edificara tinham menos almas do que o número de sepulturas? Do seu ponto de vista, era como se as almas se mantivessem no local onde o corpo morrera, lutando para manter uma existência que não tinha mais significado. A maioria dos demónios só conseguia usar humanos que ainda estivessem vivos… possuindo ou controlando os seus corpos. Com tão poucos necromantes existentes, o seu exército seria imenso uma vez completo.
A passagem do tempo concedera uma coisa… o número dos mortos coincidia agora com o dos vivos… se não o ultrapassasse. Craven tinha quase a certeza de que se os mortos fossem invocados todos de uma só vez, facilmente dominariam os vivos.
Para testar esta teoria, deixou que o seu poder se espraiasse em ondas à sua volta, procurando aqueles que não tinham um mestre que os reclamasse. As almas que tocou podiam sentir que estavam cercadas por demónios, incapazes de se mover livremente, e a maioria estava demasiado atemorizada para deixar o seu refúgio.
Craven era um colecionador de almas… tal como Deth. Usou os demónios mais fracos e outra criatura da noite qualquer para cumprir as suas ordens, mas a sua linhagem era especial. Quando ele ou alguém da sua linhagem dava a uma alma um caminho para casa, um acordo era estabelecido entre si.
Conseguia usar o corpo como um meio para enviar as almas de volta para o além, mas, se alguma vez recorresse a elas para combater, ficariam vinculadas ao acordo de regressar a esta dimensão e fazer o que ele desejasse. Ao acordar as almas dos mortos, Craven podia dar-lhes a possibilidade de as enviar de volta com esta condição… que elas se mantivessem ao seu dispor, no caso de precisar delas.
Quando uma alma passava através dele para regressar ao além, deixava um vestígio do poder que continha… dentro de si, tornando-o mais forte com cada passagem. O mesmo acontecia com Tiara, e ele sabia que Deth não tinha partilhado este segredo com a mãe dela. Se a ingenuidade da rapariga podia indicar alguma coisa, era o facto de que recebera apenas os ensinamentos da mãe.
Os segredos que Deth detinha não tinham sido partilhados, nem Craven os iria partilhar com Tiara. Ia utilizar a habilidade de conduzir almas ao além e deixar que a jovem necromante acreditasse que ele estava a ajudá-la… cativando-a ao mostrar-se empático para com a "necessidade" dela de salvá-las a todas. Estas ideias mortais provinham do lado humano dela.
Era inútil deixar as almas que conseguia sentir permanecerem livres, para que outro necromante de classe inferior como Nile se alimentasse delas. Chamando-as a si, fez a sua oferta silenciosa. O acordo era o seguinte… se aceitassem este acordo, Craven tornar-se-ia no seu protetor contra outros demónios, no seu refúgio, e no caminho direto para casa.
Uma a uma, as almas começaram a emergir lentamente dos lugares onde estavam escondidas… passando por pessoas que andavam nas ruas, fazendo a sua rotina matinal normal. Alguns humanos podiam sentir a proximidade das almas e apressavam o passo, para fugir à estranha sensação. Estes humanos possuíam uma perceção desenvolvida; embora não fossem capazes de ver os fantasmas cuja energia sentiam.
As almas mais corajosas começaram a entrar nele, aceitando a sua oferta e desaparecendo deste plano de existência, enquanto as almas mais temerosas simplesmente observavam à distância. Os seus lábios esboçaram um pequeno sorriso enquanto libertava outra onda de poder para as atrair. De súbito, mais almas que não tinham sido convocadas lotavam as ruas, precipitando-se na sua direção a um ritmo alucinante.
Permaneceu calmo, encostado à parede do edifício, enquanto as almas inundavam rapidamente o seu corpo. Se alguém tivesse prestado um pouco de atenção, teria visto o suave cabelo prateado de Craven agitando-se à volta do seu rosto, numa brisa que não existia. No entanto, o poder dentro de si estava a crescer mais do que as simples almas novas com as quais estivera a brincar nos cemitérios.
Estas almas eram velhas e estavam cansadas de existir neste mundo… almas fortes, que lhe davam o toque do seu poder ao fazerem a travessia. Usaria este poder para proteger aquilo que Deth tinha abandonado e que ele encontrara… a sua linhagem. Quando a vaga de almas cessou, Craven terminou a inspeção da cidade.
Um sorriso sinistro adornava-lhe o rosto enquanto seguia alguns dos caçadores de demónios de quarteirão em quarteirão. Quase soltava uma risada sempre que os caçadores paravam perto de uma área, e se dirigiam a outra, sem questionarem a razão pela qual tinham mudado de ideias. Este era um dos feitiços mais antigos que os demónios tinham usado contra os seus inimigos, desde a idade das trevas… um feitiço repelente, que fazia com que os visitantes indesejados não quisessem aproximar-se.
Tendo em consideração a sua linha de trabalho, ou os caçadores eram extremamente inteligentes, ou eram extremamente estúpidos. Contudo, a maior parte deles parecia humanos sem perceção extrassensorial, por isso era possível que se tratasse apenas de simples ignorância por parte deles.
Parou para admirar o estilo de luta de um deles, que lhe fazia lembrar Nighthawk… O humano podia ser um descendente do índio. Sangue de demónio manchava-lhe o rosto, como se fosse uma pintura de guerra, e a sua magia era de alto nível. Daquele humano Craven não se ia esquecer, não por medo, mas por curiosidade.
Começando a sentir-se aborrecido, retrocedeu até à área que os caçadores estavam a evitar inconscientemente. Esta área estava repleta de escuridão e era um refúgio para onde a escória desta sociedade podia fugir, e se esconder. Dentro da escuridão, o poder esperava e alimentava-se da vida que ali prosperava. Craven ficou à entrada, olhando, antes de atravessar a névoa que viera do oceano em direção à origem do poder autoiludido que descobrira.
Sim, autoiludido era a palavra perfeita para este poder. O poder era muito confiante, certo do seu domínio na escuridão, e Craven aproximou-se dele, sentindo-se quase feliz. Percorreu a calçada, assimilando os gritos silenciosos de agonia e a dor que a acompanhava.
As poucas mulheres com quem se cruzou passaram por si, lançando-lhe olhares de desejo, mas mantendo a distância… quase caindo da borda da calçada para o meio do trânsito, ou quase pressionando as costas contra as paredes dos edifícios.
Com os homens passava-se o mesmo, a não ser pelo facto de que as suas expressões exprimiam tudo, exceto desejo. Medo e ódio pareciam fluir dos seus poros quando olhavam para Craven. Há muito tempo que descobrira que as mulheres mortais o achavam belo e que, por essa razão, os homens tinham inveja. Não sentia nada pelos vivos… Os necromantes raramente se incomodavam com uma alma que ainda estava ligada ao próprio corpo ou a um corpo ainda vivo.
Por mais desagradável que fosse, Craven concentrava-se agora para conseguir encontrar os demónios mestres que controlavam os vivos. Eles não podiam ser encarados de ânimo leve, uma vez que os seus exércitos podiam também tornar-se numa ameaça para o seu território, no futuro.
Chegando a uma interseção, permaneceu por um momento na beira da calçada, observando os semáforos. Um gorgolejo profundo chamou-lhe a atenção, bloqueando os sons do tráfego matinal, e virou a cabeça na direção do som. Os seus olhos brilharam de entusiasmo ao antecipar o confronto que se avizinhava. Seguiu o som de um humano gemendo de medo, sabendo que isso o conduziria ao seu objetivo.
Quando desceu por um pequeno passadiço que conduzia a dois edifícios, entrou num parque de estacionamento, onde uma névoa densa se tinha instalado, retida entre os edifícios. Havia pessoas reunidas num círculo disperso no centro do parque de estacionamento, assistindo a algum tipo de confronto.
Bastou um breve relance para perceber que os humanos tinham sido possuídos por demónios das sombras. As suas almas ainda estavam intactas, mas os demónios tinham-nas tomado. Craven censurou as fraquezas humanas uma vez mais. Abrindo caminho pelo meio dos humanos possuídos, estacou no limiar do círculo, e viu um demónio das sombras abrindo caminho à força pela boca de uma mulher humana.
A mulher vestia uma espécie de fato de saia-casaco e os seus pertences estavam espalhados pelo chão à sua volta. O demónio tinha entrado tão fundo na boca dela, que apenas a ponta da sua nuvem negra e brilhante era visível, agitando-se para trás e para a frente. Craven concluíra corretamente que os demónios das sombras estavam a unir esforços para encontrar vítimas… E, ao que parecia, os seus números estavam a crescer rapidamente.
Inclinou a cabeça em fascínio quando o corpo da mulher se começou a contorcer violentamente devido à intrusão. À medida que a sua batalha contra o inevitável cessava lentamente, os seus olhos rolaram para a parte de trás da cabeça, deixando visível apenas o branco dos olhos por um breve momento, antes de voltarem ao normal… uma possessão total.
Os lábios de Craven esboçaram um sorriso de entendimento, e suprimiu completamente o seu poder ao sentir a verdadeira ameaça aproximando-se rapidamente. Uma longa faixa de sombra cintilante surgiu na esquina de um dos edifícios em plena luz do dia. Era o que ele pensava. Este demónio era um mestre das sombras…, mas até mesmo as sombras tinham uma fraqueza que podia ser explorada.
A sombra agregou-se no chão, aos pés da mulher, assemelhando-se a uma poça de alcatrão denso. Agitou-se espessamente durante instantes, antes de uma forma humanoide começar a surgir. A sombra pareceu gotejar, até que finalmente estabilizou, revelando um homem alto de pele escura. Tinha o cabelo cortado rente, e Craven não conseguia ver quaisquer pelos no seu corpo, a não ser um bigode no estilo Fu Manchu.
O mestre das sombras aproximou-se da mulher, vestindo uma túnica africana preta que dava pelos joelhos e calças folgadas, que se agitavam em torno das pernas. A gola da túnica era ornamentada com linha vermelha e dourada, descartando a necessidade de usar joias, e, no entanto, tinha ao pescoço um grande medalhão dourado e uma argola de ouro na orelha esquerda.
Baixou a cabeça para olhar para a mulher e estreitou os olhos de um negro denso. "A quem pertences?", perguntou o mestre das sombras, com uma voz de barítono profundo.
A boca da mulher abriu-se e fechou-se algumas vezes, antes de a voz finalmente se decidir a funcionar devidamente.
“Pertenço-te a ti… Mestre", afirmou numa voz confusa.
“Muito bem, agora levanta-te e serve-me.”
A mulher pôs-se de pé com movimentos sacudidos, como se não estivesse acostumada ao corpo que habitava. De certa forma, esta era uma descrição totalmente exata. Quando um humano era possuído plenamente, no início o demónio das sombras dentro dele não conseguia ter controlo total sobre as funções mais básicas do corpo.
“O que desejas de mim?”, perguntou a mulher, a sua voz quase normal, mas ainda um pouco atordoada.
Craven riu de modo sinistro, começando já a ficar saturado destas atividades preliminares. Numa voz condescendente, respondeu à pergunta da mulher: “Ele quer que encontres homens incautos e os tragas aqui, para que também possam ser possuídos e o exército patético dele possa crescer.”
A mulher e o demónio viraram a cabeça na sua direção, para o encarar. Craven inclinou a cabeça quando os humanos possuídos se viraram também na sua direção. Os olhos deles começaram a ficar repentinamente enevoados, passando, em segundos, de cinzento baço para negro como breu.
O mestre das sombras olhava-o como se ele fosse uma presa fácil e Craven resistiu ao impulso de rir outra vez. Quão pouco eles sabiam. Esperou pacientemente, enquanto os humanos começavam a dirigir-se lentamente na sua direção. Quando a primeira mão lhe agarrou o ombro, Craven atirou a cabeça para trás e abriu amplamente os braços. Uma vaga de almas começou a sair do seu corpo e atravessou os humanos… emergindo dos possuídos e ficando com os mestres das sombras ao seu alcance.
Craven não sentia compaixão pelos humanos que estavam possuídos pelo mestre das sombras… libertá-los daqueles que iam eventualmente tentar invadir o seu território era meramente um efeito colateral da supressão da possessão. Reparou que o mestre das sombras fora suficientemente inteligente para permanecer na forma humana, sob a qual as almas não conseguiam tocar-lhe.
“Que necromante formidável", murmurou o mestre das sombras no seu sotaque carregado. “Mas estás apenas a adiar o inevitável.”
Craven sorriu. “Isso é bem verdade, talvez deva simplesmente matar-te e acabar com isto.”
O mestre das sombras soltou um rosnado profundo e lançou-se para Craven. Ele girou para um lado para se desviar de um soco, e depois para o outro, para se esquivar do segundo soco.
“Demasiado lento”, troçou Craven. Quando o demónio rodou a perna na direção da sua cabeça, Craven dobrou-se para trás, para que o golpe lhe passasse diretamente por cima. Usando o ímpeto de se inclinar para trás, girou sobre as mãos e balançou os pés para cima num salto mortal, acertando com um pontapé duplo no queixo do mestre.
Craven pôs-se novamente de pé, ao mesmo tempo que o mestre das sombras recuperava o equilíbrio. Uma fina gota de líquido espesso e negro saía do canto da boca do mestre, deixando um rasto até à parte da frente da túnica.
“Então, tu sangras", provocou Craven. Não tinha culpa de que o mestre das sombras tivesse receio de reverter à sua outra forma. Ia derrotar este demónio de qualquer modo.
O homem cuspiu para o chão e fitou-o com uma raiva insondável. Sabia que este necromante queria o seu território e recusava-se a desistir. Vivia pelas suas próprias regras… um demónio que desiste é um demónio que merece morrer.
“Não to permitirei!”, rosnou o mestre de demónios, e de novo investiu contra Craven. Só que, desta vez, ele não se desviou. Quando o demónio ficou ao alcance de um braço, o punho de Craven irrompeu, enterrando-se no peito do demónio.
Ambos ficaram ali, olhando-se fixamente, um deles com uma expressão de surpresa e o outro com uma expressão arrogante de triunfo. Craven retirou o punho do peito do demónio e recuou. Um buraco fora aberto, revelando o negro retinto dentro da fachada humana que o demónio adotara.
Um grito humano irrompeu de uma das mulheres, seguido pelo som de passos. Os humanos não conseguiam ver a verdadeira forma do mestre das sombras, nem conseguiam ver Craven como um demónio. Tudo o que viam eram dois homens brigando na rua e um deles abrindo um buraco no peito do outro.
Craven abriu um sorriso sardónico. “Perdeste.”
O mestre das sombras cambaleou para trás e olhou para o buraco que tinha no peito. Um gemido lento e profundo encheu o parque de estacionamento e o demónio olhou para cima, mesmo a tempo de ver a primeira alma voando para dentro do orifício. O seu corpo estremeceu num ângulo estranho antes de outra alma o invadir. Mais almas se seguiram, voando para dentro do corpo do demónio para atacar as trevas que aí existiam.
Craven suspirou, satisfeito, quando a última alma abriu caminho para o interior do demónio. Este ficou hirto, com os braços esticados. A sua pele começou a rasgar e feixes de fumo negro emergiam das fissuras, acompanhados por uma suave luz branca.
Voltando-se, o demónio tentou fugir, mas os seus movimentos estavam rígidos e espasmódicos, quase parecendo um zombie, o que, até certo ponto, divertiu Craven.
O mestre atirou a cabeça para trás e gritou, enquanto o seu corpo era totalmente rasgado a partir do interior. O grito cessou repentinamente e um fumo fino de cor preta acinzentada pairou por momentos, antes de se desvanecer no nevoeiro matinal e desaparecer completamente com um último silvo de desprezo.
Craven manteve os braços estendidos, como que pedindo para ser abraçado. As almas que se movimentavam em volta do parque de estacionamento viraram-se na sua direção e lançaram-se para dentro do seu corpo. Quando a última alma desapareceu desta dimensão, baixou os braços e aproximou-se do que restara das roupas do mestre das sombras.
Baixando-se, apanhou o medalhão e saiu do parque de estacionamento. Quando voltou para a calçada, olhou à volta e viu mais humanos meditando.
Nas sombras projetadas pelos edifícios circundantes, identificou alguns demónios das sombras esgueirando-se… Sem um mestre a quem seguir, eram inúteis. Normalmente, os demónios das sombras não constituíam uma grande ameaça quando o seu mestre era derrotado, por isso não se preocupou demasiado com o lugar para onde se dirigiam. Segurando o medalhão sob a ténue luz do sol que começava a dissipar a névoa, sorriu uma vez mais.
“Bom dia!”, disse em voz baixa, guardando depois o medalhão asteca no bolso, e dirigiu-se para casa. Talvez pudesse divertir-se um pouco com o medalhão do mestre das sombras.
Começou a atravessar a cidade tão depressa que, quando viu a criatura de asas prateadas, já se tinha transformado numa pós-imagem. Abrandando o passo, deu meia-volta e novamente contemplou a parte de dentro da cidade. Isto sim, era interessante… Ele pensara que todas as mulheres Caídas eram levadas deste mundo à nascença.
*****
Carley tinha seguido o índio que carregava Tiara pelo do povoado, até chegarem a uma mansão sombria situada nas colinas periféricas. Este lugar provocou-lhe arrepios… devido talvez às gárgulas e aos demónios que rastejavam por toda a área exterior. A parte interior não era muito melhor.
Uma vez mais, estava grata por a maioria dos monstros não a conseguir ver. Mesmo que conseguissem, não poderiam fazer-lhe mal, graças ao feitiço de Tiara. Isso não a impedira de estremecer no momento em que ouviu gritos vindos da cave… esperava que se tratasse da cave e não do chão.
Tentando bloquear os lamentos de agonia, correu atrás do índio que subia as escadas até ao segundo piso. Se ele estava a levar Tiara para uma sala de tortura, teria de agir rapidamente. Quando entrou na divisão atrás dele, Carley parou para ver o homem simplesmente fitando Tiara.
Nighthawk franziu o sobrolho, querendo sentir alguma coisa… até mesmo uma faísca, enquanto contemplava a bela rapariga. Ela tinha feito com que algo despertasse dentro de si quando a conhecera pela primeira vez, mas fora tão breve que agora se perguntava se tinha sido apenas uma ilusão. O seu olhar foi atraído para a terra de cemitério que lhe sujava o rosto e o corpo.
Carley entrou em pânico quando o índio começou a despir Tiara.
“Para!”, gritou, deslizando para o meio dos dois, e Nighthawk atingiu-a sem pestanejar. “Raios, onde estão os cowboys quando são precisos?” reclamou Carley, e fez um turbilhão de movimentos para tentar que Nighthawk desviasse a atenção de Tiara e se focasse nela. Carley parou por fim, já que parecia ser inútil.
Ela tinha de regressar ao PIT e informar Jason e Guy sobre o paradeiro de Tiara, mas era incapaz de se ir embora até ter a certeza de que a amiga ainda estaria viva quando viessem resgatá-la.
Nighthawk pôs-se de pé e despiu-se até ficar de tanga, voltando depois a tomar a rapariga nos braços. Dirigindo-se à casa de banho, entrou numa banheira grande e ajoelhou-se, esperando pacientemente que se enchesse de água quente para poder lavá-la. Tampouco lhe agradou o cheiro do mestre Spinnan na pele dela.
Relaxando o corpo, Nighthawk deixou a mente divagar enquanto a água aquecida subia. Desprezava necromantes porque eles tinham-no transformado naquilo que era agora… Tinha de se concentrar até num sentimento como esse para conseguir sentir uma pontada que fosse. Esta necromante era diferente dos outros… Ela não queria controlar… queria libertar.
Olhando para a mulher nos seus braços, não precisou de questionar o porquê de o corpo dela não surtir efeito em si. A alma dele estava aprisionada na sepultura, e com ela… a maior parte das suas emoções. Não sentia necessidade de ser amado ou odiado… e muito menos de desejar alguém.
Pegando no champô da prateleira ao canto, Nighthawk ensaboou delicadamente o longo cabelo prateado dela, os fios deslizando suavemente pelos seus dedos. Não vendo razão para se apressar, lavou-a demoradamente. Muito tempo se tinha passado desde que tocara em alguém sem ter a intenção de lhe fazer mal.
Quando ficou satisfeito com o odor dela, passou a espuma por água e esvaziou a banheira. Enrolando algumas toalhas à volta dela, voltou para o quarto e pousou-a na cama. Tinha feito o que pudera por ela. Dado que a água não a despertara, sabia que estava num estado de sono muito profundo e era provável que não acordasse durante algum tempo. Sem a proteção adequada, esta guerra seria o fim dela.
Retirando a tolha do cabelo da rapariga, Nighthawk levantou delicadamente o tronco dela e tocou com os dedos na ferida que ela tinha atrás da cabeça. Sentira-a enquanto lhe lavava o cabelo. Na sua primeira vida tinha sido uma espécie de curandeiro… um xamã… por isso sabia que esta ferida não era fatal.
Deixou a mente penetrar fundo nela, tentando saber se havia outra razão para querer manter-se adormecida… abandonando este mundo por breves momentos. Nighthawk jamais rompera o vínculo que ela estabelecera consigo no cemitério mais pequeno e isto permitiu-lhe voltar a ativar nela a ligação mental. No passado, quando um necromante se conectava consigo, sentia-se como se estivesse a ser asfixiado. A sensação que tinha com ela era o equivalente a dar as mãos.
Mesmo adormecida, conseguia sentir a sua fome queimando… o lado dela que não pertencia à linhagem de Craven. Ela estava a manter esse lado enterrado bem fundo dento de si… escondendo o seu chamamento. A fome estava a oferecer a possibilidade de acelerar as suas habilidades de cura naturais. Esta era a única coisa que Nighthawk não podia fazer por ela… a energia de que ela precisava vinha da alma e, até ao momento… ele não tinha uma. Por enquanto, era bom que ela dormisse, mesmo sendo uma forma mais lenta de cura.
Nighthawk passou-lhe os nós dos dedos pelo rosto suave, no lugar onde Nile a golpeara e deixara uma pisadura. Craven tinha dito que o carinho de um companheiro podia curá-la. Era mesmo necessário ter uma alma para conseguir amar? Supunha que sim, já que não sentia essa emoção desde a sua morte efetiva décadas antes. Tinha de se esforçar para conseguir sentir uma emoção que não fosse a dormência rígida que sentia durante a maior parte do tempo.
Deitando-a delicadamente na almofada, Nighthawk endireitou-se e olhou por cima do ombro para a alma que o estivera a assombrar desde que regressara à casa.
“Tu pertences-lhe… não pertences?”
Carley deu um salto com a surpresa, não percebendo que o índio estivera ciente da sua presença o tempo todo. Olhou para ele com os olhos semicerrados. Ele tinha-a simplesmente ignorado enquanto gritava e vociferava com ele… o idiota. A expressão de Carley suavizou-se… parara de gritar passado algum tempo, ficando confusa ao vê-lo tratar de Tiara com tanto carinho.
Carley avançou lentamente, parando para ficar a pairar perto de Tiara, e ficando visível para se sentar na beira do colchão. Não fazia sentido esconder-se dele… Não se dava o caso de ele poder magoá-la mesmo que quisesse… o que ela duvidava.
“Poder-se-ia assumir que lhe pertenço…, mas não”, respondeu Carley com sinceridade, enquanto esticava o braço e passava a mão pelo longo cabelo lavado de Tiara, imaginando como seria se ainda estivesse viva. Não estava morta há tempo suficiente para esquecer a sensação do toque.
“Então por que a seguiste?”, perguntou-lhe ele.
Carley encarou-o e empinou o queixo, em modo de desafio. “Ela é minha amiga… quero ter a certeza de que está em segurança.”
Nighthawk assentiu, mostrando respeito pela resposta. “E a magia do Craven não te afeta, mesmo estando tu dentro da sua casa?”
Esta parecia ser uma pergunta importante para o índio, por isso Carley abanou a cabeça e olhou para a amiga. “Por causa da Tiara, a necromancia não consegue mais tocar-me nem me afetar. Amo-a por essa razão, por isso, por favor, não a magoes.”
Nighthawk sentiu o peito inchar de esperança. Esta emoção desvaneceu-se rapidamente, mas tinha sido o suficiente para deixar um vestígio que o fazia querer mais. Isso era tudo o que ele sempre desejara… nunca mais ser invocado por um demónio.
“Não temos intenção de lhe fazer mal. Ela quis vir connosco e nós honrámos a vontade dela. Se não acreditas em mim, és livre de ficar até ela acordar e podes perguntar-lhe diretamente.” Ele dizia só a verdade… esse era o único traço que trouxera consigo da vida.
“Então quem a magoou?”, perguntou Carley, sabendo que não tinha sido o homem ao seu lado, mas as feridas de Tiara, que saravam rapidamente, falavam por si sobre intenções malignas.
“O demónio com quem ela combateu no cemitério fez isto. O Craven salvou-a", respondeu Nighthawk, movendo-se para se sentar à janela, onde podia ser tocado pelo sol. Esta era uma das únicas divisões da casa onde as janelas não tinham sido pintadas de preto. Nighthawk tentou recordar se alguma vez apreciara a luz do sol ou não… supunha que sim.
Carley franziu o sobrolho quando ele virou o rosto na direção da janela, como se não fizesse caso dela nem da conversa. “E o Craven era o demónio que estava contigo? É esse o mesmo homem que cercou esta casa de tantos monstros? Sinceramente, não acredito que a Tiara aprovasse.”
Esticou o braço e pousou a mão na de Tiara, embora a tenha atravessado instantaneamente. “E por que razão ela nos deixaria… a nós, que somos os seus amigos, para ficar com um demónio?”
“Ela e o Craven são parentes de sangue. O Craven é tio dela. Mas, na sua mente, a filha do irmão é a sua filha. É por isso que ele não lhe vai fazer mal. Ela não é uma prisioneira aqui e não vai ser forçada a ficar. Assim que ficar curada… se decidir ir-se embora, irei com ela como seu guardião.”
“Por que farias isso?”, perguntou Carley. Craven é que era parente dela… não o índio. “O Craven ordenou-te que o fizesses?”
“Não, estou além do controlo dele”, respondeu, sem se virar para olhar para ela. “Sou um Caminhante da Noite e ela é a única pessoa que pode devolver-me a alma.”
O queixo de Carley caiu… um Caminhante da Noite? Isso sim, era magia poderosa. Pensou nos mitos e nas lendas que estudara, e até mesmo esses escritos antigos raramente tinham referido os Caminhantes da Noite.
Do que se recordava, um Caminhante da Noite era criado a partir de um humano que possuíra poderes místicos durante a sua vida humana, e que fora depois trazido dos mortos como um zombie por um feiticeiro poderoso. Mas esse era apenas o primeiro passo para a transformação num Caminhante da Noite plenamente desenvolvido.
Ao contrário da maioria dos zombies, conseguiam usar o próprio poder para recuperar a sua mente e o seu coração. Dizia-se que não tinham alma, mas ela não se recordava de que poderes possuía um Caminhante da Noite, ou se existia sequer um limite para o que conseguiam fazer.
Carley franziu o sobrolho ao constatar que não conseguia lembrar-se de ter lido nada acerca de um Caminhante da Noite recuperar a alma. Isso era sequer possível?
“A tua alma não está no além?” perguntou Carley, com curiosidade.
“Não, está vinculada à minha sepultura”, respondeu Nighthawk, enquanto desaparecia no mundo espiritual.
Carley sentou-se num silêncio perplexo. Vinculada à sepultura? Estremeceu perante a ideia de estar vinculada sob a terra, em vez de estar em liberdade como agora. Baixando o olhar para o chão, reparou que Nighthawk podia ter-se desvanecido, mas ainda conseguia senti-lo ali no quarto.
Olhando outra vez para Tiara, Carley decidiu não forçar a conversa… concedendo-lhe a privacidade que ele pedira silenciosamente.