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II
UMA RESPOSTA[1]

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Não imagina V. Ex.a o prazer que me deu a sua carta, sabido como é que da discussão inteligente e sincera têm sahido as mais claras verdades, conhecido como é, por todos os propagandistas, quanto se ganha em fazer interessar pelas nossas opiniões, ainda os adversarios que mais as combatem.

E não sendo V. Ex.a um adversario, mas um confesso adepto, embora moderado, maior prazer o meu em lhe vir expôr serenamente as ideias feministas, tais como as comprehendo e preconíso. Diz V. Ex.a que é feminista, embora moderado, que o é como todos os ilustrados não poderão deixar de o ser, segundo a sua propria frase.

Eis o nosso primeiro triumfo, a nossa principal batalha vencida; tudo mais, creia, é questão de tempo, de paciencia, de serena e pertinaz energia, e de muito bom senso.

Ora aquellas qualidades não faltam ás mulheres, este é que ás vezes tem faltado, e não estamos longe de confessar que faltará ainda por largos annos á maior parte...

Mas, neste ponto, ninguem no nosso paiz poderá lançar á mulher a primeira pedra; culpados dessa falta somos todos e talvez mais o homem do que a mulher, talvez...

Voltando ao assumpto dizia eu, que está ganha a principal batalha do feminismo; efectivamente assim é desde que todos os homens, que se presam de inteligentes, reconhecem a mulher como um sêr quasi autonomo, com direito a pensar, trabalhar e luctar pelo seu proprio ideal. Nós não temos a fazer mais do que expôr ideias, e realisar pela prática as conquistas a que nos julgâmos com direito.

Que victoria imensa não representa essa sua simples frase! Que soma enorme de trabalho intelectual, que acumulação de esforços, para que os homens inteligentes nos concedam a outorga da sua restricta carta constitucional!...

E se pensarmos que esta primeira, mas definitiva conquista do espirito masculino, representa quasi o trabalho de meio seculo, temos vontade de dizer como o mais brilhante dos feministas francêses, Camille Mauclair:—que as mulheres apresentando as suas ideias e luctando pela educação que as superiorisa, lembram a paciencia das aluviões que fazem recuar o mar e mudam o aspecto de um paiz.

Se á geração que nos precedeu alguem falasse em feminismo, que apenas lá fóra começava a fazer-se perceber pela guarda avançada de exageradas e desiquilibradas, como adeante das procissões solemnes vem sempre o rapasío gralhando e correndo a foguetes, não haveria homem inteligente que não soltasse uma gargalhada escarninha, nem, com certeza, rapaz das escolas, que madrigalisasse pelos passeios publicos ou para os balcões floridos das vizinhas, que não encolhesse os hombros com desdem.

Os que não rissem, por temperamento sombrio e sentimentalesco, ergueriam os braços em clamôr chamando em auxilio da propria opinião a ignorancia das pobres mães e descrevendo, com enthusiasmo lamecha, o encanto duma carta amorosa com erros de ortografia como ironisava dôcemente Gonçalves Crespo, elle que na prática tão flagrantemente mostrou estimar o contrario.

Homens de incontestavel mérito não se pejavam de dizer—que só apreciavam as mulheres para os lavores caseiros, chegando a pôr em duvida a competencia intelectual do sexo feminino, não obstante as tradições gloriosas de excepcionaes, que tem vindo sempre a acompanhar a humanidade na sua evolução social através dos seculos.

Se a um dos mais bem organisados cerebros da geração a que me refiro, ouvi responder a quem citava o enorme talento de George Sand como prova da igualdade intelectual dos sexos—que essa não era mulher, era o diabo!...

Se é do meu tempo, se ouvi muitas vezes, eu mesma, a novos e a velhos, a homens e a senhoras, troçar das doutoras, citar por troça aquelle estupido dictado portuguez da mulher que sabe latim... já V. Ex.a vê o que representa para nós a sua simples confissão de que não ha hoje homem inteligente que não deva ser feminista.

Agora permita-me que explique o meu pensamento, que, certamente por deficiencia de clareza na fórma, não foi interpretado como desejava que o fosse.

O que entendo por—desenvolver livremente as qualidades afectivas na mulher,—é deixar-lhe o pleno direito da escolha, o direito sagrado de amar ou não amar, de casar ou ficar solteira, sem que isso represente uma vergonha ou, pelo menos, um ridiculo.

Entendo que o ser humano que pertence ao sexo feminino, não deve ser coagido pela educação, nem pelos costumes, nem pelas conversas, nem pelos pais—que têm a mania de talhar muito discricionariamente o futuro dos filhos—a vêr no casamento um fim, um ideal completo e único, quasi uma obrigação.

Assim como o homem pode ser professor, jornalista, sabio, artista, empregado, operario, tudo emfim, sem que ninguem lhe pergunte pela certidão do matrimonio, sem embargo de serem quasi todos chefes de familia, não vejo inconveniente a que a mulher procure a sua colocação, tenha o seu curso scientifico, estude, trabalhe para si, para o seu futuro, para a sua vida autonoma, sem se lhe inquirir do seu estado...

Que essa mulher fique solteira, porque não encontrou o companheiro ao qual lhe seria grato ligar o seu destino, ou que, encontrando-o, seja sentimentalmente feliz, que temos nós com isso?

Por acaso nos preocupa a vida conjugal do politico A. ou do artista B.?

O maior erro do homem é, a meu ver, estar convencido de que a mulher nasce e existe só para o seu prazer e encanto. Partindo deste principio, é claro que não nos encontraremos nunca, visto eu pensar de modo tão contrario.

A mulher, como o homem, nasce para si mesma. Tanto um como o outro fazem parte da sociedade, de que são factores igualmente imprescendiveis, que se não comprehenderia nem sequer existiria sem a união dos dois sexos, mas na qual individuos isolados podem coexistir igualmente, decentes, honestos e respeitaveis—quando muito pagando maior contribuição, como querem alguns economistas francêses...

Quando digo que não temos nada com a vida sentimental de cada um, não quero dizer que a mulher case por ambição monetaria ou intelectual, se é exatamente para a livrar dessa baixesa que a desejamos independente pelo seu trabalho, quando o não seja pela fortuna, e mais independente ainda pela razão que a torne um ente de consciencia justa.

Diz V. Ex.a que é o amôr que salva a mulher?!...

Efectivamente, por muito amar se salvou uma—a biblica Magdalena.

Mas não é desse amôr que se trata, dirá, é do amôr puro e honesto da mulher honesta por temperamento, educada e instruida, que escolhe com toda a liberdade do seu coração e do seu espirito o homem que lhe agrada.

Ora não é esta mulher assim elevada, assim honesta, assim livre na sua escolha, a que, pelo mais futil motivo, irá mudar de afecto, enredar-se em aventuras galantes, para as quais geralmente não tem vocação, e que podem preencher a existencia duma frívola e ignorante criaturinha cheia de vaidades e que no triumfo dessas vaidades tem os seus unicos gosos intelectuaes.

O que não quer dizer que todas as mulheres instruidas sejam honestas—quem o pudésse dizer, que seria essa a nossa maior gloria!—mas tão sómente que a mulher, que por seu desgraçado temperamento, educação ou influencia de meio, é deshonesta, o é, tanto ou mais, quando ignara e frívola.

Um dos mais graves defeitos da raça latina é o de dar ao amôr a importancia maxima da vida. Os romancistas não sabem nem podem falar em outros assumptos, querendo ser lidos e comprehendidos. O theatro explora-o em todas as gamas, desde o amôr ingenuo e sentimental até ao amôr falsificado dos adulteros. Os poetas choram os seus e os alheios; os musicos dão-lhe a fórma ritmica; os pintores e os esculptores divinisam-no no marmore polido e na policromia das suas telas...

Rapazes e raparigas, antes mesmo de chegar á puberdade, não pensam noutra coisa, e uns e outros julgar-se-hiam inferiorisados se estivessem cinco minutos na mesma casa sem se defrontarem valorosamente num complicado tiroteio de olhadelas amorosas.

Não será muito pensar num assumpto que só interessa a duas criaturas e por um tempo relativamente curto na vida humana?! Sim, que não interessa nem póde interessar senão a quem o sente e com elle é feliz ou infeliz.

Senão vejamos: V. Ex.a, que leu e respondeu ao meu artigo, sabe porventura se eu sou casada ou solteira, feliz ou infeliz no casamento, ou pensou sequer em tal?

Porcerto que não, nem isso importaria para lêr o que escrevo e responder o que entende.

É a prova de que a vida psíchica de cada individuo é completamente autonoma do seu estado civil.

A independencia da mulher não pode importar o não reconhecimento da autoridade do marido, (um dos grandes receios de V. Ex.a) porque essa autoridade existe, senão de facto, pelo menos de direito, emquanto existirem as leis que hôje nos governam, leis que a mulher deveria conhecer quando vai casar, leis que a tornam uma menor sob a tutella directa do homem.

O que será o futuro não o podemos prevêr, de tal maneira a educação da mulher modificará a sociedade.

Diz V. Ex.a que a mulher independente poder-se-ha desafrontar do marido que a atraiçôa atraiçoando-o por sua vez.

Poderá ser, mas isso o que prova? Apenas o que já disse—que, infelizmente, o cultivo da inteligencia nem sempre acompanha a honestidade e que essas mulheres se subalternisam tornando-se criminosas como aquelles que condemnam, irmanando-se ás levianas que hôje o fazem, a maior parte das vezes por inconsciencia.

A mulher independente que tal fizer, não terá por motor a independencia mas tão sómente o capricho ou o temperamento, e em qualquer circumstancia, portanto, faria o mesmo.

Com respeito á proscripção da mulher erudita da familia, não é, não pode ser, uma regra. Assim como ha homens que, não obstante serem intelectuaes, são bons chefes de familia, o mesmo sucede ás mulheres.

Nem em Portugal temos o direito de pensar doutra maneira, tendo na ilustre mulher, que é uma verdadeira erudita, D. Carolina Michaëlis de Vasconcellos, o exemplo vivo do que se pode ser ao mesmo tempo como mulher de sciencia, como esposa e como mãe exemplar.

Haverá mulheres que, pela sua profissão, se vejam obrigadas a estar afastadas do lar e dos filhos uma parte dos seus dias?... É certo; mas quantas os não abandonam hôje, sem esse imperioso motivo? E quantas, tambem, estando sempre em casa, tendo por unica obrigação o seu amânho ou direcção, não mandam as criancitas, ainda mal desmamadas, para a sujeição das mestras?! Quantas?!... Quasi todas as mães sem oficio nem emprego, as da pequena burguesia, essas mesmas que não querem instruir-se mais, nem se querem tornar independentes,—exatamente para não terem a maçada de trabalhar...

Se, em geral, a mulher portuguêsa filosófa—que para trabalhar escusava de casar!... Já os senhores estão vendo o que lhes devem.

Depois, álêm dessas mulheres que mandam os filhos para os colegios embora não tenham emprego fóra de casa, o que diz ás que têm as suas visitas, os seus passeios, os seus divertimentos, e que por igual são por esses motivos imperiosos afastadas dos filhos, com menos utilidade, parece-me, do que pela doença de um semelhante ou pela retorta de um laboratorio?!

Poder-se-ha dizer que a mulher intelectual despresa os modestos mesteres do seu lar, quando a propria Clemence Royer costurava a sua roupa e entretinha os seus ocios trabalhando como qualquer críaturinha que não saiba ao certo em que parte do mundo está situado o paiz que tem a dita de lhe ser berço?

Não se póde dizer que a mulher erudita tem fatalmente de ser uma proscripta do lar exactamente quando o nome de um homem e duma mulher, ligados pelo casamento, se uniram para a sciencia, num triumfo para os dois sexos; exactamente quando as revistas francêsas nos trazem o retrato de Mr. e M.me Curie acompanhados muito burguezamente de seu filhito.

É possivel que eu esteja enganada e seja exatamente V. Ex.a quem tenha razão, mas como estamos de acôrdo em que se não regateie educação ao sexo feminino e se acabe assim com o regimen de prodigios e excepções que só á causa das mulheres tem prejudicado, é o principal.

Que o resto não nos deve preocupar muito nem devemos aventar hipóteses faliveis, como tudo que pertence ao futuro e que não temos base segura para julgar.

O homem de ámanhã hade procurar a sua felicidade e a maior porção de bem estar compativel com a sociedade do seu tempo. Como o fará não o sabemos, mas é certo que pensará de maneira diferente do de hôje, como o de hôje, como V. Ex.a mesmo, pensa decerto diferentemente do que pensou seu pai e seu avô sobre os mesmos transcendentes assumptos.

Acabe-se com todas as prepotencias e todos os privilegios, tanto de raça, como de classe, como de sexo, e deixemos que, individualmente, cada homem e cada mulher, procurem ser felizes a seu modo, organisem os seus lares como entenderem,—desde que esse conjuncto se harmonise numa sociedade de mais justiça e tolerancia.

III


Ás Mulheres Portuguêsas

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