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Capítulo 1

Aquela frase postada num grande quadro pregado à entrada de Auschwitz I, Arbeitnacht frei, era elucidativa de uma filosofia redentora da mente para um povo que sempre se pautara por disciplina e trabalho desde a fundação da Grande Alemanha. Mais se justificava a frase quando, no presente, a sua sociedade se deixava embalar no engano de um conceito político que distorcia a verdade desse mesmo povo, que sempre tinha cultivado o humanitarismo e agora via esse juízo sagrado transformado em fomentador de desigualdade, de injustiça e sinónimo de prepotência, por um regime totalitário que apagava as consciências com mentiras e regulava minuciosamente a vida dos seus concidadãos com um sistema policial de espionagem entre amigos, vizinhos, instituições e até na intimidade das famílias. Transformava a sociedade em duas classes — os espiados e os espies — assim só o trabalho era capaz de fazer esquecer a tragédia que se abatera sobre todos. Arbeit nacht frei! Enquanto trabalhava, o povo adormecia a consciência e não torturava a mente com o conceito de dúvida sobre: igualdade, justiça e fraternidade, máximas humanas desejadas pelos homens de bem em todas as épocas e em todos os tempos. O inverno de 1944 foi rigoroso para todos e impiedoso para os prisioneiros dos campos de Auschwitz. Além do frio, começava a notar-se a falta de víveres, em virtude dos ataques e bombardeamentos aliados, que eliminavam os transportes de abastecimento. No campo de Birkenau já se havia dado início ao desmantelar do equipamento de geração elétrica, do sistema de co-incineração e dos fornos de cremação onde eram incinerados os cadáveres sem identificação, de prisioneiros mortos por doença, epidemias ou exaustão — tudo o que não devia beneficiar o inimigo ou comprometer os militares alemães que ali cumpriam serviço. Também os valores aproveitados dos cadáveres: cabelos, dentes de ouro, assim como dinheiro e jóias não entregues à entrada do campo. Havia o receio do avanço do exército soviético, que já se acercava da fronteira com a Polónia.

Era um dia especial. Uma grande expetativa reinava em todos os campos porque, embora tivessem terminado as levas de prisioneiros com destino a Auschwitz em virtude da derrota alemã na Rússia, era esperado um comboio oriundo da Hungria com 3000 ciganos. Esta leva especial se tornava necessária para suprir a mão de obra vítima do tifo e do esgotamento. Também havia que afastar dos campos de trabalho escravo os 850 prisioneiros russos e polacos que, de maneira alguma, convinha que caíssem em mãos soviéticas, a ameaça que pairava como um sinal da derrota iminente.

Para Birkenau seriam enviados 300 desses prisioneiros ciganos húngaros, assim como 50 mulheres da mesma etnia que se destinavam a prover o comando e a refrescar o prostíbulo do campo, que tinha sido depauperado pelo tifo e por doenças venéreas. Aquele centro de prazer era um incentivo aos trabalhadores e soldados cujo comportamento fosse considerado exemplar.

O kapo judeu Abner Abramowicz, depois de informado que seria o responsável pelo alojamento provisório e pela seleção das ciganas a distribuir pelo comando e pelo bordel, rejubilava de contentamento. Até já tinha feito negócio com o outro kapo judeu, Berger Stein:

— Camarada Berger, vai preparando umas garrafas de conhaque, porque amanhã à noite vamos fazer uma farra com as ciganas. Eu tenho ordem de as ter aqui até fazer a escolha das mulheres para o comando e do gado com destino à casa de putas. O sargento vago mestre já mandou trazer queijo e salsichas para as contentar e agora vou dar ordem para que limpem e desinfestem o barracão de oeste que por estar mais afastado se torna o mais seguro para alojar as mulheres. Ainda tenho que falar com a responsável da zona das mulheres para prover de vestidos e artigos femininos as nossas convidadas. Temos que as abonecar para fazer uma escolha eficaz de maneira a contentar esses filhos da puta dos boches do commando.

Ambos se riram da picardia e ao mesmo tempo rogaram pragas em surdina.

— Amigo Berger, adoro comer estas putas, que têm fama de ser sempre fiéis aos seus homens!

O companheiro olhou-o com ar de sorna e desabafou:

— Pois eu anseio estuprar estas cabras ciganas e ouvir os seus guinchos histéricos, principalmente aquelas que ainda são virgens e prometidas, de tenra idade; essas, para poupar o hímen, consentem em tudo, desde que não tentemos derrubar o seu ego virginal. Que grandes pegas! Vamos, amigo. Já ouvi uns zunzuns acerca dos azares da guerra, isto soa-me ao fim da nossa clausura e é tempo de pensar um plano de sobrevivência para não desenterrar o passado.

Abramowicz olhou sério para o companheiro e murmurou com gravidade:

— Sim, os boches tinham um mas estão à beira de naufragar. Nós temos que saber ultrapassar isso com vantagem!

Estes kapos eram tratados como soldados alemães pelos superiores, em virtude da sua baixeza de caráter e do seu servilismo. Chegavam ao ponto de executarem as tarefas mais sujas e degradantes do género humano: aqueles serviços que até os mais rudes soldados tinham pejo em realizar nos condenados aos campos de trabalho forçado. O prisioneiro B76324, agora merecedor de ampla confiança do comandante do campo, antes tinha sido um dos bonifrates ao serviço do Dr. Mengele, mais conhecido por anjo da morte. Este tratamento de favor os tornava respeitados até pelos soldados de serviço naquele campo, o que não evitava os seus pensamentos na mais restrita intimidade: o ódio que latia no seu subconsciente por aqueles porcos que os tinham desumanizado. Era por isso que lançavam figas e palavras de anátema aos oficiais das SS que se serviam deles. Estes dois judeus, odiados até pelos irmãos de raça, sabiam bem que a natureza do homem não é boa nem piedosa. Nem é justa, porque cada ser luta por sobreviver e eles tinham vencido: optaram pela lei do mais forte. Moralmente eram uns farrapos, porque essa conduta impõe quase sempre o sacrifício do lado bom que está no ser humano, esse instinto de abnegação em favor dos semelhantes mais fracos. Eles preferiram adotar a máscara da conveniência para manter os privilégios. Eram como a maioria dos católicos que escolhem a pompa do mundo, mas servem-se da cruz para camuflar a conduta ignóbil. Sentiam-se satisfeitos por terem sobrevivido ao tormento de Auschwitz, mas não conseguiam evitar a acusação da sua alma — o mal que tinham feito já não podia ser superado e o remorso estava ligado às canalhices do passado. Esse sentimento torna-se mais latente e cruel à medida que o tempo passa. O remorso é implacável, exige expiação e impunha-lhes um outro modo de agir que eles nem conheciam.

Era hora de almoço, as sirenes da fábrica de armamento e explosivos, assim como a petroquímica de Auschwitz II, já tinham soado para anunciar a pausa do meio-dia e o maldito comboio proveniente da Hungria sem aparecer. Esta era a última leva de prisioneiros para Auschwitz e todos os outros campos associados. Aquele carregamento era uma exceção muito afetada por força das circunstâncias. Era necessária mais mão de obra para o desmantelamento que tinha sido ordenado pelas altas patentes, em virtude da aproximação do exército russo; as instalações fabris não podiam de maneira alguma cair em mãos inimigas, mormente a importante indústria química de Auschwitz III; havia que acelerar a desmontagem das instalações e aqueles ciganos iriam ajudar à concretização desse plano.

Os soldados já tinham tomado posições ao longo do cais e da via férrea, cujo acesso era vedado por cavalos de arame farpado e cercas de rede eletrificada. Também os prisioneiros que ajudariam os recém chegados a descer e a limpar os vagões já eram enquadrados pelos seus kapos, que com as braçadeiras berrantes, castanhas para os polacos e amarelas para os judeus, se tornavam bem notados para os soldados que, de armas aperradas, aguardavam o comboio. Até o tenente, que comandava aquela unidade de receção, passeava, soberbo da sua autoridade, sobre a neve que atapetava o cais de madeira e provava o seu nervosismo com as batidas do pingalim sobre o cano das botas polidas de negro.

Um estridente silvo se fez ouvir no silêncio gelado daquele soturno ambiente de carris, sinistras vedações eriçadas de farpas e homens de rostos tétricos. Lá ao fundo, a quebrar a linha do horizonte, o olho incandescente apontava ao longo da via e tornava visível o círculo negro que, qual visão fantasmagórica, sugestionava o monstro de ferro que se insinuava na brancura do trajeto. Era envolto numa neblina de vapor e cuspia fuligem incandescente pela bocarra sita no topo, também de escuro tom.

A iluminação do cais se acendeu como reforço à visibilidade ofuscada pela neve que recomeçou a cair, leve e suave como pétalas de florinhas brancas em campo de boninas. A locomotiva estacou com um ruído sinistro de aço rangente no entrechocar de ferro contra ferro, no suspender das rodas e das bielas laterais. Resfolegou pelo escoadouro do cimo e se aquietou do esforço de tirar aqueles pesados vagões de gado; soltou ainda um último suspiro que envolveu de vapor a descida dos dois maquinistas. A neblina condensou-se e o oficial encaminhou-se ao encontro dos dois funcionários, que o saudaram de braço levantado num arremedo marcial e recebeu o rolo de papéis que atestava a carga e a proveniência. Relanceou os olhos pelos cabeçalhos escritos e de imediato levantou a cabeça e a ordem partiu seca e nítida, no silêncio da pausa do meio-dia:

— Achtung! Achtung! Preparar para abrir e formar a duas filas os homens depois do quinto vagão a partir da locomotiva! Para as mulheres que estão nos vagões da frente, abram a um terço só para respirar e aguardarão a descarga até os homens serem enquadrados para os serviços sanitários de inspeção.

Um sargento fez sinal aos kapos que enquadravam os piquetes de ajuda à descarga e lhes deu instruções:

— A cada homem um pão e uma wisse wurst e cada bebedouro tem lotação para dez, não permitam que se amontoem!

Os homens, como um só, sem qualquer resquício de vacilação, como se treinados a preceito pela prática, encaminharam-se em direção às portas corrediças dos vagões e ali estacaram, esperando as ordens dos seus kapos de braçadeira castanha. Os judeus que carregavam os baldes e as raspadeiras da limpeza também se posicionaram ao longo do vagão e aguardaram as ordens dos seus chefes de braçal amarelo. Pelos retângulos gradeados daqueles cubículos de desmaiada cor vermelha ouvia-se o bramido desesperado dos presos que, na ânsia de uma lufada de ar fresco, soltavam imprecações e injúrias. Uma voz mais atilada, talvez de alguém que era suspenso pelos braços dos companheiros, soou nítida e blasfema mesmo junto ao postigo:

— Cães judeus, apressem-se, condenados de um deus maldito!

Aquilo era uma terrível provocação ao messiânico sentimento dos filhos de Abraão, que se entreolharam e guardaram para si o pensamento que se fixou em suas mentes e que está escrito como preceito no Talmude: Até que os judeus os tenham por escabelo dos seus pés. Estes impuros goyim seriam os primeiros a sentir o poder dos escolhidos do Senhor dos Exércitos! Aquela blasfémia terrível seria analisada no conselho sionista do campo e quem a tivesse soltado, melhor fosse que já tivesse desaparecido!

As mãos enregeladas de um polaco manusearam o arame que servia de loquete, pois tal acessório já faltava no aprovisionamento de retaguarda, o que não pressagiava nada de animador ao esforço de guerra nazi. O primeiro vagão foi aberto, o último do comboio, e lançou de imediato, na atmosfera gélida, uma onda de nauseabundo odor que se infiltrou com tal intensidade na fileira de soldados em frente que nos seus rostos era visível a carranca de nojo e, para se manterem estáticos e em ordem, as mãos se aferraram mais às armas automáticas que portavam. Os trabalhadores polacos aproximaram-se mais da saída do vagão e, por estarem mais familiarizados com aquela repugnância que era sua companheira nas enxovias que habitam no campo, quase nem pestanejaram quando o cheiro a merda defecada no chão do veículo chegou às suas narinas. Conforme os ciganos eram despejados, com o amparo dos prisioneiros que os ajudavam, mais se espalhava o repugnante odor a suor, merda e mijo retardado. Era uma onda que já emporcalhava o próprio cais onde o oficial, de rosto franzido pelo asco, se refugiara junto dos êmbolos da locomotiva, cujo óleo derramado e viscoso disfarçava o nojento cheiro, e não deixava de sussurrar entre dentes:

— Schweinen!

O serviço médico sanitário lutava naquele momento com um surto grave de tifo e a inspeção, por rigorosa, era mais lenta, uma medida para obstar a maior contaminação. Os fornos crematórios já trabalhavam a 24 horas para eliminar as vítimas do surto daquela pandemia que ameaçava as linhas de produção das indústrias instaladas nos campos de trabalho, o que tornava ridícula a frase inscrita no quadro da entrada de Auschwitz I, Arbeit nacht frei (O trabalho liberta), porque o tifo ameaçava suspender toda a atividade.

Os recém chegados ciganos, indiferentes à porcaria que tinham deixado nos vagões agora livres, agarravam com as duas mãos ainda imundas de sujidade e trampa a salsicha fora de prazo e o pão duro. Devoravam com a raiva da fome que forçava as suas mandíbulas a tragar sem mastigar e a engolir sofregamente o que o estômago já exigia havia 3 dias. Depois, com a boca escancarada a demandar água para empurrar o que a faringe ainda não conseguira deglutir para o esófago, metiam a cabeça nos bebedouros para ocupar mais espaço e emporcalhavam a água que era de todos. A brigada de limpeza já raspava a merda fedorenta e seca dos lastros dos vagões de gado, que agora transportavam seres humanos para trabalho escravo. Era a necessidade como forma de produzir sem custos as armas que iriam dizimar os seus semelhantes, vítimas da limpeza étnica da sua raça de cabelo negro e pele mate, abominável à nobre e ariana descendência dos Ases. Alguns dos judeus mais sionistas, que limpavam a porcaria, expeliam em surdina imprecações chauvinistas sobre os corpos dos ciganos que tinham sucumbido à viagem, lançando anátemas com os lábios crispados de aversão:

— Senhor, que este maldito animal edomita seja apagado da memória do tempo e que o inferno o devore para todo o sempre!

Os corpos dos gitanos, exânimes e rígidos pela ação do frio, eram estendidos ao longo dos carris para posterior corte de cabelo e revista pela brigada de recoletores, antes de entrarem na linha de incineração. Os kapos, tanto de um lado como do outro, gritavam ordens e incentivos depreciativos sobre o seu pessoal para se fazerem ouvir e agradar aos alemães — o fito era o de manter os seus privilégios. Conforme os prisioneiros passavam a primeira porta, logo eram colocados dois a dois em simples filas para a inspeção sanitária e de seguida encarreirados para o banho de água fria, para depois vestirem os fatos listados de castanho, que era a cor atribuída à etnia cigana. Um prisioneiro judeu entregava-lhes um naco de sabão duro e empurrava-os para o outro lado do tapume, onde esguichavam os jatos de água gélida e, logo que passavam no controle de limpeza, lhes era dada para se limparem uma toalha de serapilheira, que lhes serviria também de agasalho e cobertor, esses prometidos e sempre adiados abrigos, que até já eram escassos para o próprio povo alemão.

Já o lusco-fusco tomava conta do crepúsculo quando foi iniciada a abertura dos vagões das mulheres e estas, ao contrário dos seus homens, pareciam despertadas com o folgo da vida. Olhavam os judeus que lhes davam a mão para saírem e provocavam-nos:

— Olá, porcos sionistas! Não tendes dinheiro para comprar a vossa estada? Quando nos veremos livres da vossa maldita raça?

Cada mulher que saltava para a neve era uma rajada de repugnante cheiro a mijo retardado e a merda. O fedor era sórdido, repulsivo e toldava aquele ambiente branco e frio, o que obrigava todos, sem exceção, a embrulhar o rosto e a franzir o apêndice nasal. Até os prisioneiros, já habituados pela rotina deste serviço, sentiam o impacto do torpe poluir e limitavam-se a estender o braço como autómatos, evitando assim o contato corporal e, em alguns casos, até o pensamento racista acerca daquelas bestas fedorentas e contaminadas com a perversão de Eva. Muitos até fechavam os olhos e as narinas, para não sentirem o repulsivo olor a menstruação solidificada e não atentar àqueles rostos lívidos de fraqueza, com ranho empastando os cabelos. Eles faziam por não ouvir os remoques ofensivos ao seu Deus, que saíam daquelas bocas fedorentas de harpias. Era um cheiro de tal sorte asqueroso, aquela mescla de mijo, merda, sangue contaminado e suores sexuais, que até os serviços de saúde trouxeram uma bomba com gás cheiroso para dissipar aquela podridão. No chão dos vagões, além do esterco das defecações, abundavam farrapos sujos com sangue menstrual e a urina das mulheres tinha um cheiro rebarbativo, como vapores de ácido muriático. Depois de vazios, os compartimentos ainda guardavam o pestilento odor de cada mulher despejada daquele antro que antes tinha transportado gado a granel e agora era convertido em transporte para aquelas infelizes e desgraçadas húngaras, cujo destino era o trabalho nos campos de Auschwitz e, para piorar a degradação, também serviriam para abastecer os prostíbulos de divertimento. Este afazer de prostituta que lhes estava reservado era um mister contraditório com a fama de mulheres fiéis a um só homem e a quem a promiscuidade e sordidez da função repugnava. Tal como os homens, também aquelas filhas de Eva seriam expostas à mesma inspeção e, sem qualquer resguardo do pudor, seriam desnudadas para o banho de duche frio. Para isso, lhes tinham também fornecido a trouxa com a vestimenta listada de castanho, assim como o retângulo de serapilheira para secar o corpo e servir de mantilha e abrigo.

As 50 ciganas escolhidas por uma das responsáveis femininas, antes de se vestirem, seguiam agora numa formação a três para o campo de Birkenau, que distava dois quilómetros. Quem desconhecesse o seu destino, ao contemplar aqueles rostos de singular beleza morena, não os seus corpos ofuscados pelas roupas largas e inestéticas, pensaria que elas seriam as convidadas para algum sarau social e não prisioneiras de um campo de concentração nazi.

Os 300 ciganos requisitados pelo comandante do campo de Birkenau como reforço de mão de obra para o desmantelamento já tinham alojamento designado e só faltava que os kapos os dividissem em grupos de trabalho. Na chegada ao acampamento, alguns deles tinham sido espancados pelos judeus encarregados de os conduzir às instalações, como vingança pelas provocações racistas e, por último, como um deles recalcitrasse a violência com a abjuração sionista, deu azo a que o próprio Abramowicz o injuriasse e agredisse:

— Maldito impuro, filho de imunda cadela! Eu ensino-te a respeitar os teus donos, seu…

Não chegou a rematar o achincalhamento nem a espezinhar o desgraçado que se rebolava na neve. O tenente Wolfgang, um dos raros oficiais nazis daquele campo com formação cristã, repreendeu o kapo judeu:

— É essa a vossa humanidade? Não achas que já lhe basta a raça para ser um desgraçado? Porque empregas nele o chauvinismo de judeu sionista? Queres pôr em prática aqui as vossas ideias talmúdicas de que todos os gentios são goyim e devem ser tratados como não humanos? Se essas instruções partem do vosso Deus, então Ele é mesmo um inimigo da raça humana! Eu sou cristão e a minha fé obriga-me a amar todos os homens. Jesus Cristo era um judeu, mas deixou-nos o sublime preceito de amar mesmo aqueles que nos querem mal. Vocês, os sionistas, não passam de execrados da humanidade e tarados messiânicos que querem escravizar todos os homens segundo a interpretação que dão ao vosso Deus cruel, sanguinário e invejoso. Anda, judeu, levanta a tua vítima e pede-lhe desculpa ou marco-te a cara com o pingalim!

O grupo de ciganas passou o portão que dava acesso a Birkenau e, sob o olhar de dez soldados, foram identificadas pelo kapo Abramowicz, que ao apontar os nomes na folha de papel que portava prometia-lhes, com um sorriso donairoso de cavalheiro:

— Meninas e senhoras, aqui vão ter um tratamento privilegiado. Já tenho café a aprontar e também uma refeição de pão e queijo à fartança. Vou oferecer-vos vestidos lindos e artigos de beleza para se porem bonitas e desejáveis para os nossos oficiais.

As mulheres a quem estes arrebiques eram dirigidos continuaram de catadura impassível e, num mutismo absoluto, estavam desconfiadas de tanta generosidade e fartura, tão avessas à fama maldita dos boches e dos judeus.

Os soldados que tinham assistido à peroração do kapo riram-se e abordaram o tagarela:

— Abramowicz, espero ter lugar na tua festa!

— Estejam descansados, há sempre uma goela para vocês!

O montão de vestidos estava a ser revolvido pelas mulheres. O sentido feminino não resistia ao chamariz tão atrativo e aquelas bolsas com artigos de maquilhagem como batons, rímel, lápis e cremes, excitava a sua vanidade de fêmeas.

Quando convidadas a banquetearem-se naquela mesa farta de pão, salsichas e queijo, as mulheres, que havia tanto tempo era sujeitas a rações de míngua, começaram a comer como desalmadas e serviam-se daqueles jarros cheios com aquele estranho suco adocicado que as entontecia de embriaguez e desejo. Começaram a exteriorizar a alegria sem pejo, dançando umas com as outras ao som daquela música suave e sensual que galvanizava o seu espírito jovem de mulheres sujeitas à garridice do momento.

Logo que os homens entraram carregando flores e garrafas de licor, os pares começaram a rodopiar no amplo espaço do barracão que tinha sido fechado por dentro. Sem qualquer resquício de vergonha, aquelas ciganas avassaladas pela bebida deixaram-se seduzir pelo instinto sensual já excitado com esse propósito, através da droga misturada ao estranho sumo que acompanhou a refeição. Abramowicz, que já tinha programado o seu afã pela bela Shira de 16 anos, puxou-a para um dos cubículos reservados do barracão e fechou-se com ela ali dentro, alheio ao que se passava do outro lado do tabique.

— Porque me trazes para aqui? Tu sabes que sou prometida desde os oito anos e na nossa tradição tenho que manter-me virgem para o meu Gilad!

O judeu esboçou um gesto de contrariedade e olhou nos olhos a bela ciganita. Aquele olhar negro e puro de malícia, onde o fingimento era arredio, encantou-o de tal sorte, que lhe atiçou o desejo e o rosto lindo de deusa sensual atraiu-o mais ainda para a luxúria que estava no seu pensamento e que ele desejava arrancar daquele corpo de donzela, como um troféu ao seu orgulho de predador devasso. Contemplou o corpo pequeno, mas de acentuados contornos feminis e o desejo, tal como um vulcão, explodiu dentro dele. De um puxão, arrancou os botões e o tecido azul, ao ser rasgado, deixou desnudas aquelas colinas implantadas no peito da cigana: eram lindos e sedutores, aqueles seios de mamilos castanhos e espetados, como pontas de lança. Aquela visão enlevou o desejo venéreo que dominava o seu espírito e, quando ergueu a mão para acariciar o objeto do seu fascínio, foi a calma firme da inocência que conteve o atrevimento nascido da impunidade.

— Tu podes ter-me, tens-me na tua posse e tens força para possuir-me, mas jamais terás a minha alma! És um homem lindo, embora de uma raça detestada pela nossa. Ao possuir-me, me roubarás a honra, o único valor que possuo, mas o meu nome secreto te perseguirá para sempre, porque eu perderei a vontade de viver e me matarei pelo compromisso assumido pelo meu pai, pois se viver serei amaldiçoada pela família e esse esconjuro me fará o destino maldito.

— Abramowicz fitou-a com respeito e aquele sentir novo pela primeira vez apoquentou a sua consciência e o levou a sentir saudade pela sua irmã, cujo paradeiro ignorava, ela também uma donzela linda, de uma beleza nívea e imaculada na sua virgindade. A imagem dela, como se de uma visão ilusória se tratasse, apareceu no rosto impassível da gitana e aquela diáfana figura pairou por fugaz instante ali mesmo, entre ele e ela.

— Explica-me, Shira, o que é isso do teu secreto nome?

— Eu explico-te: quando uma criança cigana é batizada, é-lhe dado um nome para escrever nos registos da terra onde vai habitar, também o nome verdadeiro pelo qual será chamada dentro da nossa comunidade e ainda um terceiro nome, que é murmurado ao ouvido da mãe. A partir daí, é ela quem depois do primeiro mês de vida sussurrará todos os dias esse nome secreto ao seu filho e fará isto até os doze anos de idade. Depois, nunca mais será pronunciado. Este terceiro nome servirá como talismã e defesa, pois caso tenha morte violenta por agressão ou até por suicídio, o nome servirá como vingança contra o culpado ou culpados.

— Então, qual o verdadeiro nome por que devo chamar-te? Shira riu-se e, mirando o seu rosto, murmurou:

— Aqui chamo-me o que escreveste no papel, mas sou Kalila para os meus.

— O teu prometido ainda é vivo?

— Não sei, mas embarcou no mesmo comboio.

— Queres que eu o procure?

— Sim, te ficarei eternamente grata!

— Farei isso por ti e te protegerei!

— Obrigada, meu amigo. Vejo que afinal não és sionista!

— Não saias daqui enquanto eu não te vier buscar.

O barracão tinha deixado de ser pista de dança, a música continuava a girar no gramophone, mas sobre as enxergas havia um pandemónio de corpos semidesnudos e suados que rendiam culto a Eros.

Abramowicz estranhou não ver ali o seu amigo Berger Stein e resolveu procurá-lo. Não demorou muito, uma silhueta à contraluz de um holofote denunciou o companheiro.

— Olá, Stein! Porque estás aqui?

— Queres mesmo saber?

— Sim. Achas que devo?

— Matei aquela edomita estrangeira, como fazia nas experiências do Anjo da Morte!

— Mas que raio te deu? Já pensaste como vou desenrascar-me com a falta dela?

— Ora, a puta era uma coisa impura, negou-se a fazer sexo comigo, porque era virgem e estava prometida. Assim a expedi diretamente para o Inferno, como manda a Torá!

— Maldito animal! Tu não podes pensar assim, isto vai dar para o torto, aquele Wolfgang é um boche maldito que vai querer contar as mulheres que entraram. Eu dei-lhe a lista com os nomes delas.

Voltou para dentro do barracão, bateu as palmas e fez-se ouvir:

— Meus senhores, o baile acabou, agora é hora de recolher e é melhor assim, antes que venha por aí o senhor tenente!

Não houve reclamações e um dos sargentos, que foi o primeiro a sair, murmurou ao ouvido do judeu:

— Depois mando-te tabaco e uma garrafa!

No dia seguinte, logo após o desjejum, reuniu todas as mulheres e falou-lhes:

— Preciso de escolher dez de vocês para trabalhar no Comando. As outras serão entregues à Debra Luski, que é a dona da casa de diversão do Campo. Ali terão comida, algum dinheiro e tratamento privilegiado. Neste ínterim, enquanto as mulheres estavam agrupadas, chegou o tenente Wolfgang, que se dirigiu diretamente ao judeu e inquiriu:

— Já escolheste as mulheres para trabalhar na administração do Campo?

A um gesto de Abramowicz, o grupo das dez filhas de Eva saiu da formação e o oficial deu ordem a dois soldados para acompanhá-las ao seu destino. O oficial começou a contar as restantes e disse.

— Faltam duas. Onde estão, Kapo?

— Uma está ali dentro, estava maldisposta e deixei-a ali a recuperar. A outra…

Não foi necessário responder. Berger adiantou-se e confessou:

— Senhor, a outra sofreu um acidente, está ali no bosque de abetos, eu matei-a!

O tenente não fez qualquer comentário, olhou o assassino severamente e fez sinal a dois soldados:

— Levem-no para a prisão, lá será interrogado, a justiça alemã funciona! Quanto à outra, vai buscá-la e junta-a a estas, para cumprir o mandado!

Foi junto a Debra Luski, a governanta que estava à frente daquele departamento de prazer, e conseguiu a sua proteção para Shira (Kalila).

Debra Luski era uma judia estudante de história antiga quando foi enviada para Auschwitz. Como era bonita e culta, depressa conquistou a graça de um major engenheiro químico e trabalhou como sua assistente. Quando o major foi transferido, conseguiu-lhe um lugar num departamento de gestão e depois, logo após a formação do prostíbulo de Birkenau, ela foi nomeada secretária da alemã Olga Müller, que tinha sido nomeada pela administração.

Abramowicz conseguiu a promessa de Debra para que a bela Shira nunca fosse prostituída. Ela faria, isso sim, outros serviços e bem disfarçada para camuflar a sua beleza natural.

Foi logo após a comemoração das festas de Natal e Ano Novo que Levy Cross, um judeu que trabalhava como intérprete na administração de Birkenau, lhe disse à boca pequena:

— Amigo Abramowicz, a guerra está por um fio. Em breve, os russos vão tomar isto. Não gostava de estar na pele dos boches. — e quando lhe perguntou por Berger, este disse-lhe, com intonação compungida:

— Humm, esse está em maus lençóis. Os alemães são muito rigorosos com a justiça, mormente aqui, em que os juízes são militares. Parece que o conselho de sionistas lhe arranjou um advogado. Oxalá se safe!

Quem ficou sumamente feliz foi a ciganita Shira, que trabalhava como servente de limpeza no prostíbulo, quando o kapo lhe comunicou que o seu Gilad estava de boa saúde a trabalhar em Auschwitz III e, numa manifestação de amizade, beijou-o no rosto. Foi nesse encontro que Shira, depois de informada sobre o destino da guerra, lhe propôs:

— Amigo, nós, os ciganos, somos veteranos na passagem de fronteiras. Primeiro atravessamos e depois apresentamo-nos! Se vieres a precisar, nós te ajudaremos, porque tu também me ajudaste, assim como esta amiga que é a minha chefe.

— Obrigado, querida. Oxalá tudo aconteça pelo melhor. Eu desejo terminar o meu curso de medicina e vou ter que chegar à Suíça.

Despediram-se com outro beijo e Levy Cross, que tinha assistido àquela manifestação de amizade, inquiriu-o:

— Como conseguiste a amizade da cigana?

— Ora, amigo, ajudei-a a manter a virgindade!

— O quê? Tu, que tens fama de devasso?

— Sim, amigo. O nosso conceito sobre os goyim tem de mudar.

Levy abanou a cabeça em concordância e expressou:

Tens razão. Nós temos que aprender o que é a igualdade e a fraternidade!

Foi em fevereiro de 1945 que a assistente social da Cruz Vermelha, de visita ao campo de Birkenau, o informou:

— Isto está mal para os alemães e vocês vão começar a apertar o cinto, porque os comboios de abastecimento a estes campos começaram a ser destruídos pela aviação aliada e os russos estão prestes a entrar na Polónia.

— Senhora Golda, pode fazer-me mais um favor?

— Sim, se é acerca da sua conta, tenho aqui um extrato e você já sabe o seu número secreto.

— Sim, só queria que a senhora me fizesse mais um depósito com este dinheiro.

A voluntária olhou para a quantia com admiração e confirmou:

— Esteja descansado. Este dinheiro será enviado ainda hoje com o nosso correio para Zurich.

O kapo judeu tinha um método seguro de conseguir dividendos: os alemães jamais suspeitaram que muitos dos mortos que enviavam para serem incinerados em Birkenau guardavam os seus tesouros no esfíncter do ânus e ele, que tinha o encargo de fazer a coleta dos dentes de ouro, ou outros valores dos cadáveres, porque era finalista de medicina e porque tinha sido instruído por um prisioneiro romeno de quem foi amigo, começou a fazer a procura no ânus dos mortos e tinha assim amealhado um bom pecúlio de endereços, pedras preciosas e dinheiro. Ainda não havia muito tempo, num corpo vítima do tifo, tinha encontrado no seu canal esfincteral seis notas de 500 francos suíços metidos num tubo plástico. Outro o tinha surpreendido com cinco pedras de rubi e um endereço para a restituição: Henis Kramer — Friedrich Strass — Duisburg. Tinha colhido também diamantes e até duas esmeraldas. Só o dinheiro é que entregava às assistentes voluntárias da Cruz Vermelha para abrir contas no Banco Popular, onde tinha já uma avultada quantia.

Foi na última semana de janeiro, quando grassava a penúria de alimentos em todos os campos de Auschwitz, que o tenente Wolfgang lhe confiara:

— Kapo Abramowicz, você é judeu e finalista de medicina. Se um dia adquirisse a liberdade, para onde iria?

— Ai senhor, já perdi a esperança, mas com os russos a norte, não sei mesmo se iria convosco!

— Pois não perca essa noção de future. Muito em breve iremos propor aos prisioneiros essa opção!

Ali estavam eles. Tinham seguido o conselho do oficial alemão, só que na barafunda da debandada, porque os russos estavam a montar o cerco a Varsóvia, Gilad, o cigano noivo de Kalila, que na liberdade trocara o nome de Shira, lhes pôs a hipótese de seguir para sul, em direção à Áustria, que, embora ocupada pelos nazis, lhes dava melhor acesso à Suíça.

Quando começaram a subida daquele monte, que já fazia parte dos Alpes austríacos, Levy Cross murmurou no ouvido de Debra Luski:

— Esta gente parece conhecer todos os carreiros do mundo!

— Meu caro, nos meus estudos de história, é obrigatório reconhecer neles os judeus errantes!

Já o dia definhava, era o quarto depois da fuga, Gilad falou:

— Abramowicz, tens dinheiro?

— Sim, amigo, precisas?

— Então, vem comigo. Vamos procurar comida nestes lugarejos isolados.

— Mas não é perigoso?

— Sim, é, podemos ser denunciados! É por isso que não vamos todos. O tempo é a nosso favor. É a altura de conseguir comida. Kalila já sabe como é. Até podemos regressar só amanhã. Como vamos longe, podem acender uma fogueira para aquecer. Nós temos as anoraques que surripiamos aos boches. Não esqueçam que os ramos de abeto são bons cobertores e a lenha não falta. Isto é deserto, mas tenham cautela!

— Andaram cerca de uma hora e quando atravessaram um riacho, já no lusco-fusco, avistaram luz numa casa de madeira logo acima do carreiro pedregoso que seguiam. Um cão ladrou, um homem já de idade saiu a investigar e foi nesse instante que o cigano, imitando o gutural sotaque da língua romanche, se fez ouvir.

— Desculpe-me, senhor. Somos viajantes a caminho da Suíça e precisamos de alimentos. Temos dinheiro para pagar.

O austríaco olhou para eles, sem compreender, e foi Abramowicz quem, em perfeito alemão e exibindo notas de banco suíças, explicou o que necessitava. Os olhos do homem piscaram de cobiça e expressou:

— Os senhores sabem que estamos em tempo de guerra e temos muita dificuldade em dispor de comida, mas neste momento posso dispor de algum queijo e pão. Claro que é caro, mas como a caminhada até à Suíça requer alguns dias, vocês não têm muitas oportunidades de se abastecerem e tenham cautela, porque os boches fazem muitas patrulhas na fronteira.

— Ofereceu-lhes de jantar e a mulher dele, uma senhora já perto dos 60, desabafou as suas mágoas por ter dois filhos deslocados ao serviço dos alemães. Conseguiram três queijos e seis pães caseiros por 220 francos e a senhora ainda lhes ofereceu uma sacola com avelãs. Cedeu-lhes dois cobertores e puderam pernoitar num anexo junto da cavalariça.

Já era quase meio-dia quando avistaram o acampamento improvisado e, depois de recolherem água de um ribeiro que tinham atravessado a pé descalço, todos se sentaram para comer pão e queijo. Com o velho mapa na mão, Levy Cross olhou o sol e apontou:

— É nesta direção que temos de seguir.

Num reflexo de espiritualidade espontânea, todos baixaram a cabeça e recitaram a oração shema com grande concentração:

— «Escuta, ó Israel, o Eterno é nosso Deus! O Eterno é Único. Bendito sejam o nome e a glória do seu Reino por todo o sempre…»

O casal de ciganos respeitou o momento e, quando terminaram, Gilad pronunciou:

— Que o Deus de Israel nos proteja, porque vamos mesmo precisar da sua ajuda para entrar na Suíça. Vou fazer uma aliança entre o vosso Deus e o meu engenho para alcançar a meta que desejamos.

Abramowicz deu-lhe uma palmada nas costas e animou-o:

— Tenho a certeza que conseguiremos, amigo!

Estava um dia bem luminoso quando ao longe avistaram aquela torre que guardava a fronteira e o cigano, logo que o crepúsculo deu sinal, acalmou-os.

— Eu vou fazer uma batida na fronteira e estudar o melhor local para a passagem. Não saiam daqui, porque quero entrar na Suíça ainda esta noite. Despediu-se de todos e Shira, abraçando-o, sussurrou no ouvido:

— Tem cautela, meu amor!

Já o breu da noite tinha coberto com o seu luto a paisagem rústica que os cercava, ouviram o silvo do assobio conhecido e, logo após, o murmúrio:

— Eu vou à frente, logo a seguir o Levy, depois as mulheres e tu Abramowicz, irás atrás de todos e não permitas nem um cochicho. Caminhar sempre com precaução e alerta aos meus assobios. Encontrei um sítio que me parece propício para a passagem. Cautela com os pés e o restolhar de folhas e ramos secos. O braço do cigano se ergueu e todos pararam, esperaram alguns minutos e novamente o assobio para recomeçar. Foi Abramowicz quem ajudou as mulheres a ultrapassar a barreira de arame farpado que se interpunha no seu caminho, já Levy e Gilad se encontravam do outro lado. Seguiram em silêncio, sempre na mesma ordem estabelecida, na direção indicada pelo cigano, até divisarem na linha do horizonte o alvorecer da aurora e lá em baixo uma povoação que Levy, ao pesquisar no mapa, disse ser Sevelen. Os quatro se sentaram e Shira aventou:

— Precisamos de roupas decentes para não levantar suspeitas, portanto sugiro que o façamos por etapas: agora vou eu mais o Abramowicz e procuramos uma loja de roupas. Daqui a mais ou menos uma hora irás tu, Gilad, mais a Debra e fazem o mesmo.

— Na esplanada da entrada da estação ferroviária, os quatro tomaram o almoço em amena cavaqueira, como se fossem um grupo de turistas esperando o comboio que os levaria a Walenstadt, junto ao lago do mesmo nome. Dali seguiriam para Zurich e o judeu, para convencer o funcionário da bilheteira que era um turista endinheirado, puxou por um grosso maço de francos suíços. Depois de quase quatro horas de comboio, onde fizeram uma refeição no vagão-restaurante para impressionar alguma autoridade que os vigiasse, chegaram à importante estação da cidade dos bancos. Para testar o número da sua conta bancária, Abramowicz entrou no banco, identificou-se e fez mais um depósito de 2000 francos, ao mesmo tempo que comprava um livro com 20 cheques de viagem de 50 francos cada. Estavam em abril de1945 e pela primeira vez em três anos se sentiam livres. Respiraram a plenos pulmões a paz de uma democracia pluralista, num país que tinha sabido manter-se neutral no conflito que tinha arrasado toda a Europa.

Para se sentir plenamente realizado, só lhe faltava cumprir o compromisso assumido com o tenente Kaufman Wolfgang e comunicar com sua esposa, que morava em Mulheim, uma pequena cidade no sul da Alemanha. Estudou o mapa com Gilad e este comentou:

— A única dificuldade está na tua apresentação à senhora, porque nestes tempos de guerra a vizinhança se torna uma arma de informação para a polícia, mas para sorte tua tens a via fluvial pelo Reno e isso, se bem explorado, te facilitará a fuga com a senhora e o filho.

— Como assim, Gilad?

— Ora, tu tens um visto passado pelo tenente. Assim, em vez de bateres na porta da senhora Rena Wolfgang, deixas um bilhete por debaixo da porta, com as indicações para um local propício de encontro.

Nakba

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