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Capítulo 2

Nos campos de Auschwitz, no início de 1945, era mais premente o desmantelamento do equipamento sofisticado das fábricas que ali laboravam ou até a destruição de documentos comprometedores, do que a aplicação da justiça comum alemã. Isto provocava o desleixo nos tribunais que estavam relacionados com este tipo de delitos. O maior problema do momento era a falta de víveres. Desde que os Aliados começaram a atacar os comboios que forneciam a alimentação aos campos de trabalho, a produção baixara muito e o esforço de guerra da máquina alemã quase estagnara. A má nutrição, aliada às péssimas condições de acomodação dos prisioneiros e trabalhadores — porque existiam e eram bem pagos — tornava-os vítimas fáceis das doenças infeto-contagiosas. Além desta grande dificuldade, alastrava também o nervosismo patológico fomentado pelo medo que afetava os próprios soldados: a presença do exército russo junto à fronteira norte da Polónia provocava esse temor e desmoralizava todo o sistema defensivo nazi. Foi fruto dessa desorientação e da oferta de alguns valores do pecúlio reunido em comum com o seu amigo Abner Abramowicz, que o sargento das SS se deixou corromper e lhe permitiu a fuga em segurança, durante uma leva de prisioneiros para trabalhar na floresta. A visão e o oportunismo jornalístico nele inculcados durante os estudos dessa profissão levaram Berger Stein a conseguir um visto para a Suécia, salvos condutos esses que estavam a ser facultados em Budapeste por Raoul Walenberg, um diplomata acreditado daquele país. Aquela nação que soube manter-se neutra, durante a guerra que tinha devastado a Europa, recebeu cerca de 70.000 judeus durante o conflito.

Em Estocolmo, por intermédio de outros estudantes judeus, soube da existência de uma instituição sionista que arregimentava ex-prisioneiros e refugiados e lhes prometia emigração segura para a Palestina. Ficou surpreendido, para não dizer chocado, quando durante a entrevista com os responsáveis sionistas, em vez de o interrogarem acerca da sua vivência no Campo de Birkenau, o confrontaram com uma realidade desde há muito programada e o aconselharam a subscrever uma declaração em que ele, na qualidade de kapo, tinha ajudado a incinerar os cadáveres das vítimas das câmaras de gás. Quando pretendeu dar uma explicação cabal acerca do que de fato acontecia, argumentou:

— Meus senhores, eu nunca vi em Birkenau uma câmara de gás!

— Não importa isso, só precisamos da sua declaração assinada e do seu número de prisioneiro. Você, como estudante de jornalismo, sabe que de muitas mentiras se constrói uma grande verdade!

Só mais tarde veio a constatar o porquê daquele afã dos seus compatriotas sionistas. Foi um rabino que, apologista da criação de um estado de Israel na Palestina, lhe deu a conhecer a profecia que estava inserida na Torá e o seu significado místico: este holocausto de judeus nos campos de trabalhos forçados era de feição à criação realista do mito judaico talmúdico que prometia. — Tu retornarás à Terra que te prometi, mas com seis milhões a menos. Ora, se a II Guerra Mundial trazia as condições certas para a criação da Pátria de Israel, os judeus só teriam que fazer acreditar que no holocausto teriam perecido os tais 6.000.000 requeridos pela premonição messiânica. Assim, se tornava obrigatório publicitar o sacrifício dos judeus para que o mundo, perante tal atrocidade, sentisse remorsos e ajudasse a criar, de uma mentira, um fato histórico. Os generais russos, aliciados por Estaline, que desejava os ingleses fora da Palestina, estavam já dando o seu contributo propagandístico ao deturpar a informação colhida nos campos de Auschwitz, onde até inventaram as famigeradas câmaras de gás. Os tais 6.000.000 descritos na profecia tinham mesmo que desaparecer como vítimas das pseudo fornalhas do nazismo!

Berger Stein riu-se daquela farsa e, numa retrospetiva do que tinha aprendido na faculdade, recordou-se de ter ouvido um zunzum acerca dessa fraude: foi no ano 1900, um artigo publicado pelo jornal New York Times e copiado de um discurso do Rabi Wise, onde este afirmava — «Há 6.000.000 de judeus vivendo, sangrando e sofrendo» — como argumento a favor do sionismo.

Em 1906, um jornalista judeu, em virtude dos pogrom do rescaldo do primeiro levantamento comunista na Rússia, grita aos quatro ventos que está eminente um holocausto de seis milhões de judeus.

Também pouco depois da I Grande Guerra os sionistas invocaram um massacre de 6.000.000, só que o argumento não foi longe e ninguém acreditou na história.

Em 1921, o povo russo, já farto de ver os judeus como usurpadores bolcheviques na sua própria terra, começaram a persegui-los como bodes expiatórios da falta de liberdade e do racionamento de víveres. Estes, na vã tentativa de chamar a atenção do mundo para a chacina de que eram vítimas, recorreram novamente ao mito dos seis milhões.

Se a história desta hipotética mortandade atribuída aos carrascos nazis conseguisse mais apoio dos políticos ocidentais, do que somente de Estaline, era bem mais fácil convencer o mundo. Ora, os americanos precisavam na altura de esconder os seus erros na Europa e também os massacres nucleares de Hiroxima e Nagasáqui. Assim, estavam dispostos a satisfazer a farsa, porque além do interesse político, havia os dividendos das indemnizações a pagar aos judeus, as quais iriam potenciar a sua economia. Também ao alinharem com Estaline no embuste, conseguiam mais argumentos para impor a sua vontade ao povo alemão, que necessitava da sua ajuda para voltar a erguer-se e, como tal, seria um bom cliente da indústria americana. Também os testemunhos do julgamento de Nuremberga arranjados pelos carrascos judeus ao serviço do exército britânico, que recorreram à bestialidade da tortura para conseguir falsas declarações sobre atrozes ações que só estavam na mente dos torturadores, conseguiram o objetivo a que se propuseram. Só esqueceram que a história, mesmo a dos vencidos, vinga sempre a própria história e a declaração dos sentenciados à morte ficou na memória dos vivos!

Tal como afirmei no meu livro, O Cruel Josué, o holocausto, forjado ou não, enalteceu a religião judaico-cristã. Também a profecia da mulher heroína que no alto das muralhas de Libna, enquanto fazia holocausto dos seus filhos para não caírem vivos nas mãos dos bárbaros hebreus, comandados pelo cruel Josué, os arremedava com sanha: «Vinde, malditos adoradores de um deus cruel! Vede como ofereço em holocausto ao vosso sanguinário Javé o fruto das minhas entranhas, a carne da minha carne e sangue do meu sangue! Que a memória do tempo fixe a minha maldição: que os filhos dos vossos filhos sejam pelos homens humilhados e escarnecidos da mesma maneira que vós trespassais os corpos dos nossos velhos, mulheres e crianças. Que o sangue deles esteja sempre sobre as vossas cabeças nos tempos do advir. Sereis escorraçados de todos e apedrejados pela canalha; sereis escravos de um futuro que jamais sorrirá à vossa raça de malditos! As vossas mulheres se prostituirão por um naco de pão e as vossas crianças serão apontadas a dedo nos caminhos da vossa eterna peregrinação.»*

Stein assinou tudo o que lhe puseram na frente e ainda se filiou a uma das organizações sionistas que lutava no Médio Oriente por mais terra para Israel: a Irgun, que tinha por fito conseguir o que a ONU não permitira na divisão da Palestina. Ele era Berger Stein. De nada lhe interessavam os métodos e tão pouco a independência dos sionistas, mesmo o acicate do nacionalismo que isso podia despertar. Ele só queria enterrar o passado para não ver enlameado o seu presente e para isso nada melhor que camuflar-se numa estrutura também clandestina. Assim, mais depressa se veria livre do pesado fardo que carregava. Descobriu mais tarde que a organização Irgun era comandada por Menachem Begin, um líder favorável ao sionismo revisionista a que o próprio Ben Gurion se opunha com firmeza.

Berger não fez comentário algum acerca da trapalhada fraudulenta. Ele só tinha que tornar-se um nacionalista e inscrever-se como voluntário para a próxima leva de judeus para a Palestina. Desejava isso, sim, e contar com o apoio da instituição para continuar os seus estudos de jornalismo ao mesmo tempo que, com serviços prestados, apagava o seu passado como kapo no campo de Birkenau.

Encarregado pelo Centro Judaico de, com a colaboração de outros estudantes da universidade, fazer propaganda junto das comunidades judaicas refugiadas na Suécia, chegou à conclusão que afinal os laços de solidariedade entre os diversos grupos sociais não eram de molde a confiar na sua cooperação para lutar por um objetivo comum. Era necessária uma união religiosa e uma coesão de esforços para conseguir um estado, uma terra de todos para todos. O conceito de raça, que devia ser um elo aglutinador, andava ao sabor das diversas nacionalidades que compunham a comunidade. Também a ideia de uma comum religião estava dispersa pelas tendências culturais, mormente as mais fundamentalistas, que tinham como prioridade a hegemonia sobre as diversas seitas. Era difícil um acordo unilateral a favor da emigração para a Palestina e a solidariedade suficiente para a formação de uma pátria comum, Israel. As diversas comunidades continuavam agarradas à continuidade do estilo de vida de onde tinham a origem. Chegou assim à conclusão que era sumamente difícil conseguir uma união invocando somente a religião e a mesma raça, para os reunir num mesmo ideal. Num relatório que apresentou no Centro Sionista, escreveu que somente um terço dos judeus asilados na Suécia estariam dispostos a emigrar para a Palestina e, como tal, aventava a hipótese de redefinir a política de relação entre a Diáspora e o novo Estado de Israel.

Para quê estar agora a preocupar-se com o seu serviço como voluntário a favor da causa sionista? Estava uma manhã luminosa e naquele sábado combinara encontrar-se com a sua companheira no grupo de trabalho a favor do Centro Judaico. Erika era uma rapariga moderna, alegre e carinhosa, que nunca fez as tais perguntas que ele temia: quem és? De onde vens? O que fazias? Como a maioria das jovens costumava fazer, as mais das vezes só para satisfazer a curiosidade que lhes estava inculcada nos genes. Erika era diferente. Com ela, encontrava uma afinidade espiritual que jamais topara em qualquer outra mulher. No entanto, havia uma coisa que não conseguia explicar — era não poder olhar para ela como pertencendo à sua raça. Não tinha maneira de entender este complexo que entrava em hostilidade com o seu sentir amavio. Era como uma aversão na forma, mas não no sentimento íntimo. Tudo nela, até os predicados físicos que eram sumamente agradáveis aos seus sentidos, lhe fazia recordar a ideia de uma valquíria das lendas nórdicas, que apagava da sua mente a imagem predefinida daquelas meninas que tinham brincado com ele no gueto de Varsóvia, onde a sua família tinha sido confinada antes da guerra. Aquelas mesmas meninas, adolescentes e mulheres que serviam de modelos de identificação aos esbirros das SS: cabelos negros, pele mate e olhos escuros. Era por esses sinais que os nazis capturavam as mulheres judias.

Erika tinha a sua altura, os cabelos eram da cor das espigas maduras em campo de pão, os olhos tinham um intenso e celestial tom de turquesa e a tez tinha a pureza de nívea fada! Tudo nela lhe fazia lembrar o que lera acerca dos sortilégios e das lendas do norte da Europa, onde as valquírias podiam ser feiticeiras ou sacerdotisas. Erika era linda, tinha tudo o que um homem deseja numa mulher: vastos atributos feminis, cultura e um corpo belo. Era isto que aumentava a sua confusão psicológica: interrogava-se amiúde se aquela seria a mulher do seu destino e a conclusão, malgrado seu, era sempre abstrata. Por muitas interrogações à sua alma quando pensava numa esposa e companheira, não conseguia predefinir o tipo de mulher que desejava e, quando em tal cismava, a mente, sempre sádica, ressuscitava aquela malfadada noite em Birkenau. Não bondavam já os malditos pesadelos que lhe faziam recordar os tempos nefastos que tinham arrasado a sua dignidade de ser humano, aquela angústia de ter sido feito um fantoche ao serviço dos carrascos do seu povo, e mesmo agora que se via cidadão livre e integrado numa sociedade que tinha a liberdade por divisa, vinham ainda as reminiscências do tortuoso passado avivar-lhe a memória que lhe toldava o ânimo e lhe crispava o semblante. Eram de tal forma insistentes os pesadelos, que se via obrigado às vezes a recorrer à bebida para pacificar a consciência e fazer neutral o remorso. Mesmo embrutecido pelas libações que lhe toldavam o cérebro, aquele maldito momento de lubricidade pecaminosa não se apagava do seu presente. O olhar azeitona da cigana virgem continuava colado aos seus olhos, as palavras sinistras que pronunciara o acossavam como as fauces de lobos esfaimados e o faziam recordar:

— «O meu nome oculto te perseguirá para todo o sempre! Amaldiçoo-te até o último alento da vida que me roubas e a minha alma leva a tua figura maldita para a eterna peregrinação do teu penar!»

Ainda sentia a presença daquele corpo que contaminara com a sua perversão e via-o agitar-se nas últimas convulsões. Aquela mirada malvada continuava fixa em sua face mesmo depois do aperto final na frágil garganta. Aquele fantasmal rosto jamais abandonara o seu olhar e, sempre acusativo, permaneceu defronte aos seus olhos, mesmo depois de lhe ter quebrado a resistência e profanado a sua virgindade, o seu tesouro mais querido! Continuou ali, mesmo depois que seu corpo ficou exânime e se abandonou às sevícias, mesmo durante o desfrute do estupro. Ali continuara mesmo até o último anelo em que esconjurara seu espírito num blasfemo esgar ao seu porvir. Aquela maldita mirada jamais o abandonou e nem mesmo quando num acesso de raiva e náusea seus dedos esmigalharam de um sacão o elo cervical que lhe transportava o sopro último! Tinha escrito na mente, como um filme em retrospetiva, o malfadado momento em que, horrorizado com o anátema, arremessou o execrando corpo para o sinistro e gelado bosque de abetos.

Exausto e com a alma em farrapos, resolveu que tinha que recorrer a artifícios mediúnicos ou sortilégios de magia negra, quiçá a necromancia. Talvez quebrasse assim as amarras do encantamento maléfico. Lembrou-se que na Lei judaica tal era abominação, mas que as Escrituras se referem à feitiçaria como algo de que ninguém duvida e até o próprio José do Egito tem o arrojo de se vangloriar: «Não sabíeis que um homem como eu não deixaria de recorrer à adivinhação?»

Também tinha lido que Manassés, 14.º rei da Judeia, via profecias de bons e maus eventos nas entranhas ainda palpitantes das pessoas que sacrificava em nome de Azazel.

Continuou a beber até o último gole e quando topou o fundo da garrafa, ficou bestificado de tal sorte, que se deitou sobre o vómito ainda quente.

De manhã se enojou de si próprio e foi à procura de um xamã que lhe tinham indicado e que, segundo a informação, exercia as suas milongas clandestinamente num prédio abandonado. Quando lá chegou e olhou a entrada, ouviu a voz de um vagabundo que estava arrimado a uma das ombreiras:

— Se não és dos nossos, volta ao escurecer, que o bruxo te atende!

Resolvido a consumar de vez o seu enigma, resolveu dar uma volta pelos arredores e esperar o breu da noite. Entrou num bar e pediu vodka para amortecer e dissipar as brumas que teria de avivar na presença do bruxo. O feiticeiro o mirou fixamente uma, duas vezes, e de cada vez torceu a carranca como se o temesse. Fez uma pausa, ergueu a mão com os dedos em figa, recitou num murmúrio um estranho engrimanço e voltou a olhá-lo:

— Que maldição mais sinistra te rogaram, homem! Este foi mesmo um laço de amarração, o serviço foi bem feito e é persistente. Não vai ser fácil livrar-te dele. Conta-me como foi?

Quando iniciou o relato do que se passou naquela noite de maus instintos, do tripúdio estar que alterou seu viver, o bruxo contraiu novamente a carantonha, suspendeu o gesto e a sua respiração se tornou ofegante. Pendurou por momentos a palavra na garganta e em tom grave pronunciou:

— Tenho que rever o cerimonial dos mortos Romani, mas é um anátema muito forte e tétrico; preciso descobrir o nome secreto dela e para isso é preciso encontrar o ritual que usou. Aparece amanhã ao anoitecer, desce à cave e bate na porta de ferro pintada de negro. Ali ninguém tem a coragem de ir. Temos que iniciar nas trevas a procura e isso torna-se perigoso até para mim. Agora só te posso dar proteção para hoje com um engrimanço intercessor. Sê abstémio esta noite, de álcool ou sexo.

O ocultista ergueu a mão esquerda, passou sobre a sua face três dedos distendidos e virou-lhe as costas em direção à saída.

Quando chegou a casa, já bem alta era a noite; tinha sobre a mesa um bilhete de Erika que lhe pedia para se encontrar com ela cerca das dez horas no Centro Judeu.

A proteção das rezas do xamã tinha resultado; conseguiu adormecer em paz e sem evocar a maldita. Por paradoxo, até desfrutou de um sonho lindo que lhe veio à memória quando se levantou para dar atendimento ao pedido de Erika.

A proposta era simples — a Herold descobriu que ele era um voluntário para a Palestina. Como tinha sido prisioneiro de Auschwitz e era finalista de jornalismo, queriam contratar os seus serviços como repórter na Terra Prometida. Ora, para Berger nada de mais importante havia de momento do que ver camuflado o seu passado de colaborador dos nazis e conseguir uma maneira de fazer esquecer o tal tenebroso período da sua vida. Mais uma vez se dirigiu ao Centro Judaico para atestar o seu nacionalismo e outra vez assinou uma série de mentiras que comprovavam a sua versão sobre o extermínio de judeus e uma declaração sobre as câmaras de gaseamento sitas em Birkenau, conforme os relatórios fornecidos pelo exército soviético, que libertara os últimos prisioneiros. Tal revelação só esquecia de mencionar que os citados reclusos que ficaram foram aqueles que, por debilidade física, não puderam acompanhar a guarnição alemã na sua retirada. Até os jornalistas ocidentais se admiraram, porque os russos nunca consentiram que eles fizessem uma visita aos campos de Auschwitz antes que os seus técnicos acabassem a encenação meticulosa e destruíssem quaisquer provas que pudessem desmascarar as evidencias forjadas ou fomentar dúvidas acerca dos crimes relatados. Stein riu-se interiormente sobre as declarações fabricadas que iriam sustentar a tal fábula profética dos seis milhões. Pensou na proposta da Agência Herold e resolveu ir à secretaria da universidade adquirir um certificado sobre os seus estudos como jornalista, para assim assinar um contrato de trabalho vantajoso para os seus desígnios.

Já o crepúsculo dera lugar ao lusco-fusco do anoitecer, quando se lembrou da marcação que tinha com o bruxo. Comprou umas postas de arenque fumado e dirigiu-se a casa para tomar a frugal refeição da noite. Já a escuridão era total quando se pôs a caminho do local do esconjuro e por estranho que pareça, conseguiu mesmo, com as provações que tinha sofrido com a maldição da ciganita, manter-se calmo e alheio às maquinações sórdidas que a mente, em pródiga imaginação, tinha por costume fustigá-lo com o pertinente anátema do negativismo aterrorizante.

Junto ao decrépito edifício, dois dos vezeiros vagabundos lhe saíram ao encontro e o saudaram como se ele já pertencesse à mesma cambada.

— Boa noite, jovem! Tens por aí uns trocados para um copo de aguardente?

Esteve prestes a lançar uma imprecação de repúdio ante o aproveitamento dos vadios, mas lembrou-se do conselho do xamã para que fosse discreto para tal gente. Assim, tirou do bolso algumas coroas, estendeu-as aos pedintes que, quase sem o olharem, desapareceram rua fora à procura de um bar onde pudessem satisfazer o vício alcoólico.

Entrou no vetusto prédio e desceu as escadas de pedra, que levavam à cave. Deu um leve toque com os nós dos dedos na chapa da negra porta e quase de imediato assomou a carantonha do feiticeiro com uma onda de odor a cera e um misterioso cheiro a outra coisa que não identificou. Olhou com estranheza a enorme bacia de barro cheia com água, assente no chão e as velas de cera negra que a rodeavam eram cinco e estavam acesas. Esperou pela explicação e ao pensamento lhe surgiram as histórias bíblicas macabras sobre a necromancia praticada pelo rei Saul e pelo seu compatriota José, o místico que usava a água para os seus ritos de adivinhação. Todo esse arsenal de magia que, ao fim e ao cabo, veio a ser copiado pelos druidas com o seu caldeirão para trazer de volta a alma dos mortos. O bruxo ofereceu-lhe um banco baixo de madeira e mandou-o sentar-se em frente à tina com água. Dirigiu-se a um altar onde assomava a figura grotesca de uma mulher e clamou de mãos distendidas numa prece:

— Danahh! Danahh! Minha protetora e Senhora! Obriga aquela a quem vou invocar que obedeça, sem contrapartidas, à minha advocação.

Pôs-se de cócoras mirando a água da bacia e com uma vela negra acesa em cada mão ordenou:

— Exijo o teu nome e a tua presença aqui dentro deste fluido donde emanou todo o ser humano, por ordem do nosso Demiurgo!

Fez uma pausa de alguns segundos e voltou a invocar:

— Hida, o teu nome me foi sussurrado pela poderosa Danahh, minha patrona e tua deusa. Assim, pelo seu poder, te exijo que regresses da morte para tomares em atenção o que te ordeno!

Stein esteve quase a cair de costas com a surpresa e se arregalaram seus olhos de terror ante a visão daquele rosto de esgar malévolo, que apareceu por instantes no espelho aquoso dentro da tina. O bruxo impôs as mãos, agora livres, sobre a água agitada e recitou outra obscura reza, desta vez cantada, ergueu-se e, do altar, tomou um fio de cabedal que estava aos pés do manipanso que ele tratou como protetora, mergulhou-o no líquido do alguidar e prendendo nele um amuleto em cetim azul pendurou-o no pescoço de Stein, explicando:

— Este talismã contém as poderosas ervas de proteção da deusa Danahh. Deves usá-lo até cumprires o que o espírito dela, pela minha boca, te vai exigir.

Voltou a inclinar-se sobre a tina iluminada pelas cinco velas negras e, depois de uns segundos de concentração, recitou:

— Maldito continuarás pelo meu secreto nome e só te livrarás do meu anátema quando praticares a salvação de uma jovem em perigo de vida e a protegeres para sempre!

O xamã levantou-se, voltou a abençoá-lo com as mãos impostas sobre a sua cabeça e perguntou:

— Entendeste a sua ordem?

— Sim, compreendi perfeitamente. Oxalá esse mandamento não me custe a vida! Agora, diz-me, quanto te devo?

— Dá-me o que tens no pensamento neste preciso momento, sem esqueceres o valor do meu trabalho!

O judeu riu-se do enigma adstrito às palavras, tirou do bolso um maço de notas e completou com uma expressão de aprazimento:

— Fizeste um trabalho digno. Assim, se um dia precisares de mim, procura-me!

Saudou o feiticeiro e saiu para a aragem fria da noite. Em seu pensamento, uma vez mais os exemplos de magia negra relatados por um livro que anacronicamente chamam de Sagrada Escritura. Sentia-se como o Rei Saul quando convocou a feiticeira de Endor para invocar o profeta Samuel. Afinal, os rituais mágicos a que os antigos judeus recorriam colmatavam as falhas do seu deus Javé e tinham ainda poder no tempo presente!

Agora só lhe restava a fuga salvadora: a emigração para a Palestina como jornalista da Herold, nacionalista judeu e combatente da organização paramilitar terrorista Irgun, e lá, onde ninguém o poderia identificar com o kapo Stein ao serviço dos nazis, organizaria a sua vida. O pecúlio adquirido em Birkenau o ajudaria a singrar nos negócios.

O camião GMC carregado de produtos hortícolas e conduzido por Levy Cross estacou no mercado de Basel, uma importante cidade a norte da Suíça. Logo atrás estacionou Gilad mais a mulher com o outro camião. Era ali que Gilad faria a sua feira e esperaria a chegada de Abramowicz com a esposa do tenente.

O bem vestido cidadão comprou um bilhete de primeira para Mulheim e, sem ser interpelado pela polícia alemã, desceu do comboio e dirigiu-se à praça de táxis cujos condutores eram homens e mulheres já de idade. Consultou uma vez mais o endereço e deu a direção ao motorista, que estacionou um quarteirão antes. Ali escreveu à pressa um bilhete dirigido à Sr.ª Wolfgang. Bateu na porta da morada indicada pelo tenente e perguntou, num sussurro, depois de confirmar pela foto que tinha na mão:

— É a Senhora Rena Wolfgang? Seu marido, o tenente Wolfgang, encarregou-me de proteger a sua esposa. Não há tempo para mais perguntas e respostas, porque pode estar a ser vigiada. Queira ler esta carta escrita pelo punho do tenente e solicito que abandone sua casa, sem levantar suspeitas, e sem bagagem. Traga somente o seu filho e tome um transporte até Bamblach. Lá lhe darei notícias do seu esposo.

Avistou Levy Cross sentado no café perto do cais fluvial e fez-lhe um sinal impercetível. Este levantou-se com descontração e caminhou em direção a um grupo de árvores, onde simulou despejar a bexiga e indagou:

— Então, tudo sobre carris?

— Sim, Cross, só estou à espera que ela apareça. E o transporte?

— Deixa amigo, está tudo combinado. O barqueiro vai acostar aqui esta noite, não há mirones à vista.

Depois de comunicar a mensagem, dirigiu-se ao cais, onde tinha montada a sua cana de pesca e aguardou.

Era já no lusco fusco, quando a Sr.ª Rena tomou das mãos de Abramowicz um bilhete que lhe indicava uma pensão ali perto, onde devia dizer que esperava o marido.

O barco afrouxou e guinou em direção ao molhe. O piloto e a mulher aceitaram a ajuda do pescador, que prendeu a espia que segurava o cabo do atraco e perguntou:

— Então mestre, tudo como combinado?

— Sim, amigo. Onde estão os passageiros?

Quase não necessitou de responder. Abramowicz, a Sr.ª Rena e o garoto já vinham a caminho.

Shira, ajudada por um garoto cigano que contratara, desmontava a tenda na feira semanal de Basel, enquanto o camião GMC conduzido por Gilad estacionou para carregar a banca e as poucas sobras da mercadoria não vendida, oriunda de pequenos agricultores alemães da fronteira com a Suíça. Se beijaram e o cigano perguntou:

— Então, que tal correu o mercado?

Ela sorriu e confirmou:

— Sim, foi muito rentável!

Ao dizer isto, estendeu-lhe um volumoso maço de francos suíços.

Desde que o cigano convencera Abner Abramowicz a investir o seu dinheiro no seu jeito para o negócio enquanto terminava os seus estudos de medicina na Universidade de Zurique, via o seu investimento em crescentes dividendos. Por intermédio de Levy Cross, que se empregara como intérprete na Cruz Vermelha para fazer a ligação desta organização com as forças do exército americano na Alemanha, tinha conseguido a venda de dois camiões GMC para Gilad ampliar o raio de manobra para o seu comércio de bens alimentares, tão procurados depois da guerra. Foi também por intermédio de Cross e com a conivência da Sr.ª Golda que Gilad conseguiu um carregamento de latas de conserva de atum, proveniente de países nórdicos e destinados à Cruz Vermelha.

Também a amiga Debra Luski conseguiu uma bolsa de estudo para uma universidade americana, por intermédio do Centro Judeu, que a empenhou na promessa de regressar a Israel depois de formada, como professora de história antiga. Por intermédio de Abner e Cross, o casal de ciganos identificou-se como cidadãos judeus e até alterarou a sigla numérica marcada em seus braços no campo de Birkenau. O dinheiro voltara a comprar tudo, inclusive no Centro Judaico de Zurich, onde Gilad e Shira assinaram as suas declarações como testemunhas do gaseamento de judeus nos campos da morte de Auschwitz e abalizaram tudo o que lhes foi pedido, assim como a candidatura para emigrarem para a Palestina. Para o Centro Sionista, interessava o testemunho do maior número possível de pessoas. A sua origem era secundária e até aceitavam os testemunhos daqueles, judeus ou não, que nunca tinham estado em qualquer campo nazi. O apoio russo ao holocausto fictício dos 6 milhões começara a conquistar a simpatia e a repulsa dos povos do mundo e os americanos também tinham já mostrado a sua disposição para se aliarem ao repúdio do holocausto.

Em 27 de novembro de 1947, as Nações Unidas, subjugadas ao poder dos Estados Unidos da América, à corrupção do brasileiro Osvaldo Aranha, que presidia à Assembleia e ao poder do capital sionista, aprovaram no seu seio uma criação chamada Israel. Sabe-se hoje da indigna corrupção de alguns membros que votaram a favor da Resolução 181:

O embaixador da Costa Rica recebeu um livro de cheques em branco e as mulheres dos diplomatas dos países latino-americanos, incluindo o Brasil, ganharam casacos de vison. O voto do Haiti foi trocado por créditos bancários, assim como o da Libéria. O presidente das Filipinas foi ameaçado de morte para mudar o seu voto. A desonesta Assembleia das Nações Unidas, presidida pelo corrupto Osvaldo Aranha, desrespeitou todas as normas do Direito Internacional e afrontou a Carta das Nações. É assim que a trama judaica sionista oficializada por corruptos continua a massacrar os desgraçados povos da Palestina, verdadeiros naturais daquelas terras, que o maldito dinheiro dos Rothschild** não comprou.

Foi também como apoio de Cross que os pais de Shira e o pai de Gilad se puderam deslocar à Suíça para abençoar o casamento de seus filhos. Eles viajaram num veículo da Cruz Vermelha e puderam, assim, atravessar fronteiras tornadas intransponíveis pelas ditaduras impostas pelo poder soviético.

Foi com enorme surpresa e comoção que Shira e Gilad abraçaram seus pais e como o dinheiro de Abner era fértil um numeroso grupo de ciganos ali estabelecidos ergueu uma enorme tenda para festejar o consórcio matrimonial no rito romani, marcado para o dia seguinte.

A cerimónia começou com a pronúncia do ancião da tribo local em substituição do original. Este, revestido com o acordo dos pais dos noivos, começou por recitar as orações do ritual com a atenção e o sentido silêncio dos presentes. Levantou a mão e chamou à sua presença os noivos: uniu as suas mãos e deu um pequeno golpe no pulso de cada um, pôs ambos em contato para juntar os sangues dos dois pelo juramento sagrado e os convidados, num brado uníssimo, gritaram: «Brau!!!» De seguida, o pai da noiva aproximou-se do ancião e iniciou a declaração dirigida ao pai do noivo, em língua romani:

— Eu te dei a minha filha em casamento, mas um dia posso pegá-la de novo. Se cuidares dela, terás nora. Não é dinheiro nem ouro que te dou, mas sim um sangue meu.

Os convidados aplaudiram e, quando o pai do rapaz beija a noiva, o ancião da cerimónia fala nesse momento:

— Eu testemunho que estou presente neste casamento e mais tarde posso ver o final dele.

O idoso dirige-se ao pai da noiva e, em voz alta, proclama, para que todos oiçam:

— A tua filha está paga!

Em seguida, beijou os cônjuges. Os convidados aplaudiram ruidosamente e gritaram: «Brau!!! Eles estão casados.» Começa então a grande festa que durará três dias e três noites de farra, música, dança, cantares romanis e muita e muita comida. Uma das letras que nunca faltaria nesta cerimónia e é constantemente repetida é a seguinte: «Não queremos mulheres não ciganas!» No terceiro dia após a cerimónia, é feita uma pausa nos festejos — os convidados querem ver o resultado do desvirginamento, que é executado por uma tia. A mulher introduz o dedo na vagina da noiva, com o objetivo de rasgar o hímen e provocar o sangramento. Passou um pano imaculado nos bordos do genital para o manchar com o sangue derramado e mostra-o a todos os convidados. Esta é a prova da pureza da moça, que é dada ao marido. Uma gargalhada de Debra Luski chama a atenção de Gilad e este, surpreendido pela atitude da amiga, vê esta a aproximar-se de si e sussurrar-lhe no ouvido:

— Porquê? Como conseguiste preservar a honra dela e como resististe à tentação?

Gilad soltou uma gargalhada e murmurou-lhe:

— Minha querida, para uma cigana, a virgindade é algo de muito sagrado. Ela jamais permitiria que eu ofendesse a sua dignidade. Sempre soube satisfazer o meu amor e o meu desejo por ela!

Foi com uma expressão de alívio que tanto Gilad como Shira se desembaraçaram dos convidados e tomaram um táxi para regressar a casa. Estavam cansados de mais para continuar o folguedo, só que Shira não contou com a surpresa que lhe tinha reservado Debra: esta lhe abriu a cama e lhe mostrou um vestido de noite lindíssimo, como uma manifestação da sua amizade:

— Querida, sei que estás cansada de tanta festa e falta de privacidade. Este é o vestido que nós te oferecemos para comemorares em grande a vossa primeira refeição de casados. Fizemos marcação no restaurante mais chique perto do lago Zurich. Abre às oito. Desejo bom apetite e agora deixa que te chame pelo nome da tua comunidade, és Kalila!

Também Gilad teve uma surpresa ao entrar no apartamento. Estava derreado e desejava descansar umas horas antes de privar com sua esposa.

— Olá, amigo. Sei que estás estourado de corpo e alma. É bom que faças um sono sossegado, para entrares na tua lua de mel. Antes de iniciares o merecido descanso, estes teus amigos desejam que proves este conjunto de cerimónia para fazeres jus à estada de três dias, que te reservamos num hotel de cinco estrelas próximo do parque da cidade. Tens aqui este envelope que eu e o Levy te oferecemos, como prova da nossa estima e amizade eterna.

As lágrimas brotaram nos olhos de Gilad e, sem palavras, os três se abraçaram numa manifestação de afeto fraterno.

Os pais dos noivos foram convidados por Levy Cross a se instalarem num apartamento cedido pela Cruz Vermelha e foi-lhes oferecido uma autorização para permanecerem na Suíça até resolverem o que fazer no futuro.

Quem tivesse curiosidade de apreciar aquele casalinho vestido a rigor, que de mão dada contemplava o reflexo da lua sobre as tranquilas águas do lago, diria que eram um par de namorados fazendo vénia ao amor que os embalava na euforia do romantismo. Ambos olharam na mesma direção: era aquele o palacete, cuja entrada em forma oval, estava encimada pelo mesmo nome escrito no bilhete que os amigos lhes tinham oferecido.

A magnificência do local, só frequentado pela flor da sociedade, lhes causou temor; era uma aventura que jamais tinham acometido e aquela figura de uniforme vermelho com platinas douradas e botões brilhantes no mesmo tom inibiu-os de tal sorte, que estiveram quase a desistir. Tomaram coragem e aproximaram-se da bizarra criatura qu, para surpresa deles, saudou-os cordialmente em francês e lhes deu as boas vindas, apontando a entrada:

— Boa noite, Senhora! Boa noite, Senhor! Bem-vindos sejam, tenham a bondade, estamos ao vosso serviço!

Um outro engalanado a preto e branco fez-lhes uma saudação amiga e, antes que perguntasse, Gilad informou-o: — Temos marcação para a mesa 24!

— Façam o obséquio, eu próprio encaminho-os.

— Sentaram-se um frente ao outro e ambos esboçaram um sorriso escarninho. Nunca tinham sentido tal atenção e deferência!

Aproximaram-se os rostos e Kalila murmurou, constrangida com a confusão de copos e talheres que ladeavam os pratos:

— Querido, parece que aqui o hábito é que faz o monge e eu estou numa confusão, não sei qual o garfo ou o copo a pegar, para me servir.

— Deixa isso comigo, amor, eu já resolvo.

Quando o criado chegou para lhes entregar o cardápio, o cigano, contra todas as regras da etiqueta, segurou-lhe um braço e, em jeito de murmúrio, desabafou:

— Companheiro, não quero fazer figura de parolo para esses figurões e você gosta de uma boa gorjeta. Assim, ajude-nos nesta salada de talheres e copos. Comece por trazer-nos um vermute digestivo, de seguida arranje-nos uma botelha de um bom tinto da região de Bordéus, para comer um bom bife mal passado com batatas fritas à fartura e um ovo a cavalo, entendeu, meu amigo?

O criado sorriu e murmurou:

— Entendi, meu caro senhor. Não tenha problemas e posso adiantar-lhe que farão um figurão, pois há aqui aqueles que, de tão snobes, até se julgam cavalheiros de nascimento e na sua presunção nem dão pela rudeza da sua conduta, o que causa sorrisos dissimulados nos que os rodeiam.

Depois de uma sobremesa deliciosa aconselhada pelo simpático servidor, estepresto-lhes a respetiva vénia de despedida, ao mesmo temo que os informava:

— O táxi de vossas Senhorias já está à porta!

Novamente o embaraço na receção do hotel, só que desta vez foi Kalila quem tomou a iniciativa:

— Somos os Sauer e temos marcação para três dias!

O rececionista saudou-os e perguntou:

— Tem V.ª Ex.ª bagagem?

— Sim, uma mala de pele azul que vos foi trazida ontem, aquando da marcação.

— Queiram desculpar, o mandarete levá-la-á aos vossos aposentos!

Que alívio! Ambos caíram nos braços um do outro e Gilad exclamou:

— Ai, querida! Juro que nunca mais! Prefiro o nosso prato de folha, as calças de ganga remendadas e a camisa aos quadrados!

Abriram a mala e foi Kalila quem pronunciou, com um sorriso ambíguo:

— Tem bom gosto, esta nossa amiga, mas não sei, Gilad, se me queres de camisa de dormir.

Apagaram a luz e ambos sobre o leito procuraram-se naquele aconchego exigido pela atração dos corpos, porque o amor é uma força que impele outras energias e as conduz para a sexualidade despertada; exige que o fogo da paixão se consuma na venérea volúpia do sexo.

As bocas uniram-se naquele contato já ensaiado ao longo do namoro e saborearam, um do outro, o licor que lhes molhava as palavras. Naquele afã de procura, os dedos deslizavam na pele carente e já excitada na sensualidade, com a leveza de uma nuvem. Seus corpos eram jovens e necessitados de ternura. Na partitura dos carinhos, eles reviviam os trilos de longínquos suspiros de desejo não consumado. Excitados eram os pelinhos macios que bordavam os seus genitais e terminavam em circuitos erógenos, que reclamavam o delir do prazer venéreo.

Naquela procura agitada que fazia vibrar os sentidos como cordas retesadas de um violino, excitavam-se as fibras interiores e humedeciam as pétalas sedosas da flor, que ansiava ser desfolhada. Foi em êxtase que ela sentiu os lábios dele acariciando a sedosa pele dos peitos dilatados de anseio e a língua húmida e quente saboreando o orvalho que ressudava daqueles róseos mamilos empolados de desejo sensual. Ele voltou a saborear sua boca ao mesmo tempo que sentia o roçagar do seu sexo entre os lábios da vulva dela. Ela também deu conta da investida da glande intumescida e foi com um jeito dos quadris que permitiu a penetração daquela haste portadora do seu prazer e daquela guinada de dor aguda, na rápida transição do rasgar do hímen ao ser dilacerado para permitir a profunda penetração daquela carne túmida, que a inundou de estranhas e voluptuosas sensações, que se acenderam como luzinhas de cores brilhantes, no arco festivo do seu triunfal desejo:

— Ai, querido meu! Sinto-te em mim! Faz-me saborear o fogo que vem de ti! Delicia os meus privados jardins!

E naquele ritmo do ir e vir, no vir e ir entre as carnes tenras e cálidas como lava de vulcão, ela usufruía pela primeira vez o encanto sexual que havia nela. Ele sentiu as pernas feminis que gostava de acariciar, se colando em seus rins como uma echarpe estranguladora e ouviu seus gemidos:

— Querido meu, não me deixes sozinha neste delíquio celeste! Ai, amor! Inunda-me com a tua semente! Enche este vaso de ti!

Gilad não conseguiu controlar o seu tesão e naquela tempestade de cicios e gemidos, ele não se coibiu de lançar na ebulição dos sentidos o urro de macho empolgado de volúpia, ao sentir expelir de si o leite seminal que fez extravasar o dique das águas felizes dela, que deslizaram como regato manso entre as coxas já humedecidas de sucos vaginais. Como o abraço das pernas de Kalila sobre seus rins continuasse a reter o seu afã venéreo, ele sentiu desejo de mais uma vez usufruir o prazer que os fazia transpor a fronteira do aqui e agora. Era delicioso assentar a cabeça sobre aquele colo suave e macio no destoldar da modorra, depois de saciados o corpo e o espírito, do apetite sexual que os agitara na fogueira da paixão carnal.

No torpor do descanso do guerreiro, ele perguntou-lhe se alguma vez fizera ideia do ato sexual vivido e ela, com um sorriso ambíguo, delatou a vivência da sua indiscrição na tenda familiar:

— Ai, querido meu, quantas vezes eu, fazendo-me adormecida, assisti à fornicação de minha tia com o tio Rico e não sei se tu alguma vez sentiste o que vou contar-te: algumas vezes minha tia obrigava o marido a levantar-se e, naquela posição, ela ajoelhava na sua frente e abocanhava o sexo dele.

Gilad riu-se com ronha. Jamais conseguiu esquecer o que tinha acontecido quando ele era um miúdo ainda, teria uns 13 ou 14 anos, e tinha uma vizinha de 17 que já estava prometida em casamento havia muitos anos. Pelo anoitecer de um dia de verão assaz calorento, a vizinha pediu-lhe para acompanhá-la ao , pois desejava ver a lua cheia refletida no espelho das águas e como ele não mostrasse qualquer entusiasmo em servir de guarda à noiva, como se fosse um alcoviteiro, esta tanto insistiu que ele a acompanhou. Enquanto ela fazia pedidos à imersa lua com engrimanços aprendidos de ciganas mais velhas, Gilad se entreteve a atirar seixos à água, num jeito que os fazia bater no líquido fluido e saltavam duas e três vezes antes de se afundarem. Como Porcina o observava com curiosidade, ele desafiou-a a imitá-lo e esta, sem se fazer rogada, pediu-lhe para a ensinar naquela técnica de fazer deslizar as pedrinhas antes de se afogarem. Tudo começou quando ele, na tarefa de instrutor, deixou que uma mão deslizasse sobre um dos duros seios da cigana. Esta, com intenção ou por acaso, segurou-lhe a mão prevaricadora e pediu-lhe num sussurro:

— Gilad, eu sei que tu és um rapaz muito discreto e sabes que eu vou em breve casar, assim espero que continues a manter a boca fechada.

Ele sorriu com ronha, pois não era a primeira vez que ela o tinha treinado na arte de beijar e, esperando o seu pedido, deixou que fosse ela a tomar a iniciativa. Recordava-se bem daquele seio pequeno e duro de mamilo rosado que ela pediu para ele acariciar. A sofreguidão foi tal que Gilad não parava de sugar enquanto desnudava o outro também para acarinhar. Porcina ficou de tal maneira excitada que, dando fé do pénis dele a forçar o tecido da carcela, olhou-o com picardia e pondo um dedo em riste sobre os lábios como avisando para manter o silêncio, ajoelhou-se na sua frente, desabotoou a braguilha, beijou-lhe a glande tumefata, como se lambesse uma gulodice e… Kalila nem lhe respondeu, olhou-o daquele jeito enamorado, cujo gesto era um convite e ele, sem complexos, afastou o lençol e exibiu a haste em plena tumescência; Kalila soltou uma gargalhada e expressou:

— Ai, querido, eu nunca fiz, mas desejo satisfazer o meu homem como a minha tia sabia satisfazer o meu tio Rico. Soergueu-se e, sempre rindo, passou a polpa dos dedos pela glande como se fosse masturbá-lo; olhou-o fixamente e, ao sentir a sua aquiescência, beijou aquela cabeça encrespada de vigor. Numa arremetida sôfrega, abocanhou o falo na plenitude do seu orgulho e iniciou um ir e vir lento e suave sobre a pele brilhante e sedosa daquele membro que já lhe tinha provocado três deliciosos clímax, embora na primeira vez lhe tivesse causado um pouco de dor. Sentiu os dedos dele passeando sobre os seus cabelos e de repente aquele empurrar para baixo como se temesse que ela o deixasse a sós com a volúpia que o emergiu, naquela tempestade de prazer que ele não conseguiu silenciar:

— Ai, ai! Querida minha, tu matas-me de gozo, Kalila, meu amor, ai!

Ela libertou-se dele e correu para a casa de banho para cuspir aquela semente que podia ter valido uma gravidez. Lavou a boca daquele sabor e sentiu-se arrebatada de desejo. Sentou-se, abriu as pernas e com a polpa dos dedos deslizou no vértice das coxas, primeiro um roçagar lento e leve como o escorregar de uma pena, depois já afogueada de excitação, introduziu em si dois dedos e resvalou-os com sofreguidão entre os lábios interiores da vulva. Semicerrou os olhos para curtir em plenitude a lembrança daquele pénis que a devassara e sentiu a profusão de cores e luzes como se fossem asas de uma Fénix desabrochando ao sol. Possuída na urgência de expandir a luxúria que se acoitava na sua garganta, respirou fundo para evitar o grito de satisfação que lhe travava a respiração e a obrigava a cerrar os lábios contraídos, que prendiam o sustenido som suspenso em sua alma, porque o prazer de uma cigana também era propriedade do seu homem. Era sua obrigação contentá-lo e jamais se aproveitar da cópula para usufruir da luxúria dele. Riu-se com a sua obrigação, lavou-se e perfumou-se para novamente despertar o desejo de Gilad.

* Alves, Aníbal. O Cruel Josué: Josué, filho de Nun. Lisboa: Edições Ecopy, 2009.

** N. do Ed.: “A família Rothschild é uma família judia, com origem em Hamburgo, Alemanha, que estabeleceu uma dinastia bancária na Europa. Prosperou no fim do século XVIII, e chegou a ultrapassar as mais poderosas famílias bancárias rivais da época, como a família Baring e a família Berenberg.” (fonte: Wikipedia)

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