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A MINHA MORTE

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Estava na convalescença d’um typho. Não teria doze annos, mas na minha imaginação representa-se ainda nitidamente esse longo periodo de febre e de terriveis visões. Apesar de debil e quasi enfesado resisti heroicamente ao soffrimento e á molestia. Sempre de costas na cama, passava o tempo a contar e recontar as tabuas do tecto e a fileira de cachos dependurados ao longo da parede branca. Sentia-me embebido em estupidez; as perguntas que me faziam, ácerca do meu estado, do sabor dos remedios e do apetite, ficavam sem resposta. Olhava para todos sem comprehender o que diziam, ou, pelo menos, sem ter os meios de exprimir tudo quanto de violento e de extraordinario se passava em todo o meu corpo. Era como um empastamento geral da minha carne, uma liquifação do meu cerebro, a ausencia de mim mesmo para sentir. Até as dores que soffria, tendo um resto de consciencia para saber que se passavam em mim, attribuia-as mais facilmente a outro corpo. O meu interior era o de uma enorme fornalha; o proprio halito parecia-me de labaredas brancas, formadas de ar incandescente. As minhas sensações reduziam-se a uma sede permanente, que se não podia mitigar. Por mais que me humedecessem a lingua, nem por um instante m’a podiam tornar molle e flexivel: era uma lingua de papagaio, que seria facil quebrar como se fôra um caco. Ainda me recordo de quanto me custava a supportal-a na bocca e de ter, por vezes, desejos de a arrancar.

Mas depois fui melhorando. A volta das sensações ordinarias fazia-se uma a uma, como pombos escorraçados d’um pombal. Era um renascimento gradual, e noto que appareceram primeiro as sensações mais elementares, aquellas em que o homem tem menos imperio. Todos os dias a febre decrescia, reconquistava um pouco do viver antigo, como se eu tivesse feito uma viagem ao chimerico paiz das sombras, e de lá voltasse por um comprido corredor de muitas legoas, approximando-me instante a instante da benefica luz do sol, que se visse brilhar ao fundo, cá n’este mundo vulgar que todos habitamos. Entrei por fim em convalescença. O facultativo consentiu que me levantasse todos os dias um nadita. Já podia ir fazendo tentativas de chupar a minha aza de frango. O enjôo da comida ainda era grande, por isso o meu desgosto era enorme. Reconhecendo-me melhorado não estava nas condicções das outras pessoas...

No emtanto a minha alegria e satisfação voltaram com o franco apetite. Tudo era pouco para mim, não havia coisa que me satisfizesse e era preciso que me ralhassem para não ser tão guloso, que me podia fazer mal. Até não queria que os outros comessem ao pé de mim; porque isso me dava inveja, e até raiva, ficando a reparar com olhos avaros e insaciaveis. O medico argumentava que o meu estomago devia estar fraco, que não supportaria sem damno grandes quantidades; mas eu sentia-me como uma grande planta, que lançasse por toda a parte as suas ambiciosas raizes, para se sustentar á custa da seiva que pertencia ás outras e roubar-lh’a com o poder absorvente de uma enorme bomba. A comida de predilecção n’essa minha convalescença eram as boas sardinhas de Vigo, cabeçudas e grandes, que os gallegos iam vender á minha terra. Á distancia de 26 annos, ainda hoje sinto no paladar o sabor d’essa incomparavel comida.

A chuva d’esse aspero mez de dezembro era frigidissima, o vento assobiava pelas frinchas das portas. Como já podia andar por toda a casa ia de vez em quando ao mirante, olhar para os montes que estão ao norte, e contemplava-os todos cobertos de neve, como se fossem pyramides collossaes, formadas d’assucar.

Mas a chuva e o vento que soprava d’aquelle lado obrigavam-me a descer; pois que a janella não era guarnecida de vidraça. N’uma d’essas occasiões até, a saraiva me veio bater na cara e eu, com medo de recahir, fui-me logo sentar ao lume, que estava vivo, imponente, abrangendo grandiosamente em labaredas, os potes de ferro que estavam ao redor.

A nossa cozinha era comprida, terrea e de telha vã. A lareira, grande, coberta pelo enorme e phantastico chapeu da chaminé, muito farta de lenha—podia aquecer uma duzia de pessoas á vontade. Na vespera do sarrabulho ou na noite da consoada, essa cozinha tomava o aspecto glorioso d’um templo em festa. Havia maior numero de potes; as labaredas melhor sustentadas enroscavam-se umas nas outras sempre na mesma altura, como parafusos sem fim. Era manifesta e patente a alegria, a satisfação, o contentamento que este bom fogo produzia em todos, principalmente quando as castanhas estoiravam debaixo das brazas e sabendo-se que estava perto a enfusa de vinho.

Mas quando desci apressadamente do mirante, batido no rosto pela saraiva e com o tetrico medo de recahir, a cosinha estava solitaria e lugubre. Era dia ordinario, o lume bem acceso, o pote da ceia gorgolhava com a fervura, os gatos e os cães, fraternalmente misturados, enroscavam-se do lado do forno. Fui-me sentar ao meu canto, contando estar ali até á reza. Lá fóra das portas era quasi escuro, a chuva e o vento passavam ruidosamente sobre o telhado, produzindo ressonancia dentro da chaminé. Todo este barulho exterior e material tornava mais sensivel a minha solidão. Sabia que minha avó, estava á janella na dupla occupação de rezar as suas contas e de vigiar se os visinhos traziam sardinhas da praça, que era para tambem as mandar comprar. Porém o rom-rom dos gatos, o arfar do lume, o ralho da fervura e o sussurro do vento formavam um ambiente caracteristico de solidão ao qual se veio juntar a nota sentimental e lugubre do toque das trindades. A torre da egreja era sobranceira á cosinha e as nove badaladas cahiram-me espaçadamente no cerebro imprimindo uma sensação gemebunda e prolongada. Apezar da viva chamma do lume ser propria para desfazer tristezas, sentia sobre mim o lendario pezo da noite, com todo o seu imprevisto de sombras. E a enorme chaminé, negra de ferrugem, abria sobre mim um espaço indefinido, d’uma amplitude amedrontadora. Diante dos meus olhos, em correnteza, estavam pendurados os salpicões e eu contava-os machinalmente até á minha chouricinha e á de meu irmão, que estavam juntas, á esquerda. Fui pouco a pouco cahindo n’um longo esquecimento, fui perdendo a consciencia, a ponto de quasi se extinguir o meu ser.


Provavelmente o calor benefico do lume concorria para o entorpecimento. Já quando o sino acabou de tocar as «ave marias» eu voejava n’uma atmosphera de sensações vagas, como suspenso no meio do espaço. A cadencia das badaladas deu-me o impulso ondulatorio que me atirou por desconhecidas regiões, fóra de toda a contingencia. Um pingo d’agua cahia a compasso da torneira da cosinha e o som tristonho parecido com o gemer d’ave, feria-me levemente o ouvido como se fôra o desfallecer d’uma d’essas musicas ideaes, que só existem na região do azul. O estrepito do vento tambem se distanciára de mim, ouvia-o dilatado e longinquo, com a doçura e encanto do som d’um pinheiral. Estava envolvido, tapetado d’uma substancia isoladora que me fazia perceber attenuadas todas as sensações. O meu pensar vago e indeciso, traduzia esta especie de anniquilamento das minhas forças physicas e a perda das minhas idéas pessoaes. Reconhecia-me consubstanciado n’este mundo novo e abstracto, balouçando-me n’uma amplitude infinita como a da morte. Cá na minha, eu já não pertencia ao numero dos vivos apesar da memoria me reproduzir claramente toda a realidade material que eu gosára e soffrera, durante os annos da convivencia terrestre. Confesso que tive saudades do que fôra. Gostava da vida, mesmo simples e humilde como sempre a passára. Viver por viver e para viver, é que me enthusiasmava e não as altas posições da fortuna e da gloria. Todo o homem tem dentro em si tantos meios de ser feliz, que não saber aproveital-os é signal de desequilibrio e doença. Por isso, a idéa de ser um morto não me alegrava e, bem pelo contrario, principiei a apavorar-me á maneira que percebia que isto era sério. Deixar assim de repente, sem uma despedida, a vida terrena, na qual eu ia sonhadoramente gosando a minha obscuridade, lá me parecia duro. E sem enterro, sem chôro de parentes, sem nenhuma pompa funebre... como é que eu tinha morrido? Depois, independente da questão do céu e do inferno, aquillo lá pelo outro mundo não é satisfatorio. Antes de entrar nas regiões da perpetua ventura ou do infinito castigo eu não via senão caras tremendas, que nada tinham de commum com as expressões minhas conhecidas. Os que riam era com esgares terrificantes, boccas arrepanhadas e olhos de fogo que me faziam medo; os que choravam abriam taes guelas, e figuravam-se-me tão pavorosas as suas cabelleiras formadas de florestas, que me senti gelado, não podendo sequer encaral-os.

Não me faziam mal, não se approximavam de mim; mas eram desagradáveis companheiros na sua impavidez sinistra. Tambem, lá por esses espaços, que levianamente se chamam sideraes, eu não encontrava senão precipicios, abysmos sem fim, montanhas cujos pincaros a minha vista não podia alcançar. Por cima da cabeça tudo eram nuvens encastelladas e carrancudas, que deviam conter fogo e tempestades para myriades de seculos. Um raio de sol palpitante rompeu n’um momento esta espessura; mas isso, maiores saudades me fez, por me lembrar com entranhado amor tudo quanto tinha perdido de carinhoso e bom. Nunca senti como n’esse instante o preço da vida. A epopeia grandiosa da eternidade, attrahia-me muito pouco, não seduzia, com as suas magnificencias, a imaginação simples da creança. Por isso a minha anciedade, a minha tortura cresceu progressivamente. Nunca mais voltaria a gosar a tranquilla convivencia do rio, dos montes, das campinas e dos penhascos?!... O canto dos passaros, as paizagens floridas, o melancholico luar do outono, a exhuberancia da primavera, os gosos familiares, as festas, as vindimas, as amizades... tudo teria acabado para mim?!

Que tristesa, que amargura, que saudades me torturavam! As lagrimas cahiam-me em fio, sentia-me soluçar, a minha admiração pelos sublimes coros celestiaes, diminuia d’um modo consideravel. E tamanha era esta saudade e esta dôr que nem o aspecto patente do fogo da querida lareira, dos potes a ferver, dos salpicões pendurados diante dos meus olhos, me dava a precisa tranquilidade e resignação. Não me lembro mesmo se cheguei a considerar estas visões enganosas, como perfidos meios de transacção, para eu me habituar á outra vida. O meu desespero só fazia augmentar, sentia pungentissimamente quanto perdi. A minha chouricinha, que estava ali em frente de mim, já eu não a poderia saborear, em quanto que meu irmão, que era um vivo, havia de comer as duas e talvez muito regalado.

Principiava a reconhecer-me fatigado, exhausto de forças e ambicionava um momento de repouso. Visto estar morto, a tormentosa viagem atravez dos espaços infinitos havia de acabar. Decerto era este o pavoroso caminho da eternidade, que teria no fim o ceu ou o inferno. Bem sei que logo para começo podia ser o purgatorio, como logar de purificação; mas declaro francamente que esta transigencia nos soffrimentos não me foi muito consoladora. Talvez pelo receio de ter a vida cheia de peccados, julguei mais provavel não vir a ser um dos eternos habitantes do paraizo!... Estaria mais satisfeito, se o meu destino estivesse no ceu—atmosphera ideal, mais pura que o diamante, de cor mais serena que a perola, logar onde não ha noite, nem sombra, onde os cantos são perpetuos, como é perpetua e renovada de instante a instante a floração d’aquella primavera sem fim. No entretanto, se me fora licito ter uma opinião, haveria declarado preferir a todas as sublimidades ideaes, o continuar na terra contingente, com todos os seus males, desgostos e contratempos. Porem já que me achava no outro mundo desejava antes o paraizo do que o inferno, ou mesmo o purgatorio. Infelizmente este horrendo caminho que seguia, com a velocidade d’um cyclone, não me dava esperanças de me levar á patria eternamente luminosa e bella. O ultimo precipicio em que estava era d’um horrendo incomparavel. Por todos os lados a treva sem limites, e para o fundo um inconcebivel funil por onde ia resvalando!

Como no terrivel naufragio do conto de Poe, no qual todos os destroços eram engulidos pelo redemoinho infernal do Maelstrom, assim o meu corpo, o meu cerebro, o meu pensamento soffriam as torturas d’um movimento concentrico. Sentia que de instante a instante me apertavam mais e mais as paredes d’esta nova prisão. Descendo sempre estava cruelmente atormentado e os meus olhos cheios de pavor não percebiam a menor restea de luz. A minha existencia conhecia-a sómente pela dor d’uma perna onde cravára com desespero as proprias unhas. A superficie interna do funil era lisa a ponto de lhe não perceber o contacto.

Os circulos que eu descrevia eram cada vez menores, a ponto de para o fim redemoinhar em volta de mim mesmo, como se houvera um eixo material, servindo de ponto fixo. Evidentemente estava a chegar ao meu pavoroso e tetrico fim! Uma sensação de frio penetrava-me até á medula dos ossos, apesar de que, por uma inexplicavel contradicção, conservava no meu corpo viva reminiscencia do meu calor natural e procurava concentrar-me, aconchegar-me, metter-me por assim dizer, para dentro de mim mesmo.

Veio uma onda de calor que me lambeu a cara... Talvez o desmoronamento da pilha d’achas que formavam a fogueira. Esta sensação, de certo agradavel em outras circumstancias, poz-me em grande terror; pois que mais me confirmou na ideia da proximidade do inferno. Lá ia eu cahir n’esse fogo perpetuo, que tão horrendo antevira nas descripções dos missionarios! E apesar do pavor, irritava-me esta evidente injustiça d’um poder sobrenatural. Que peccados teriam commettido os meus doze annos, para merecerem tão severa punição? Já não tinha lagrimas, sentia-me anniquillado e sem força para me oppor. O meu incomparavel infortunio, não se limitava a perder o gozo da vida terrena, que tanto amava. E transigia covardemente: Se, ao menos, fosse trocar o mundo, a familia, os brinquedos, a caça aos pardaes, a pesca aos barbos, a minha chouricinha... pelo reino do ceu, vá lá. Não teria ganho, mas vá lá. Porem abandonar todas estas coisas sympathicas e ter para todo o sempre de gritar entre chammas, com o diabo a espicaçar-me e monstros horrendos a deitarem-me perpetuamente pelas guelas chumbo derretido, breu e azeite a ferver!... era o que eu não podia levar á paciencia. A grande afflicção em que me vi deu-me ainda um momento de revolta, que resultou d’uma onda de sangue novo que se me espalhou no cerebro. Por mais que esquadrinhasse na consciencia, por mais que posesse aberto e claro o meu passado insignificante, não me sentia merecedor de tão formidavel pena! Resolvi interpor recurso. Deus é infinitamente misericordioso e de certo me ouvirá—pensei. Alem de que eu tinha sobejos motivos para assim proceder, attendendo ao modo excessivamente escuro como correra o meu processo. Não me lembrava de ter apparecido na sua divina presença; não vira aquellas venerandas e compridas barbas, brancas como espuma do mar; não me recordava dos coros dos anjos e das virgens, nem das incomparaveis bellezas da celestial habitação... Quem sabe se eu ia para o inferno por engano! Quem me dizia não ser eu victima de manobras d’algum verdadeiro condemnado que tivesse tido artes de se trocar por mim?! A minha perturbada intelligencia comprehendia esta possibilidade. Por tanto—resolvi—levantemos um clamor bem alto, uma supplica formidavel, que alargando-se por este funil em que me acho, suba aos ouvidos justiceiros do bom Deus, grande e omnipotente. A convicção da minha innocencia, dava-me força para tamanha ousadia. E tomei enorme folego, enchi o peito d’ar, concentrei em mim todas as energias da terra. Da minha garganta sahiu um estridente brado que se dilatou pelos espaços! Ao mesmo tempo fugi pela cozinha fóra e fui-me agarrar a minha avó, que resava as suas contas encostada á janella. Contei-lhe toda a minha afflicção e os tormentos mentaes em que me vira. Ella reconheceu logo, bem como depois o confirmou um sacerdote nosso amigo, que este facto devia ser tomado como um aviso do ceu. Apesar da minha pouca edade, este toque divino, mostrava claramente que eu andava em peccado mortal. Uma confissão geral de todo o meu negro passado era urgente. Os esconjuros deviam completar esta obra de limpeza espiritual. Procedeu-se por esta forma e os exorcismos foram resados por um padre gallego, que era homem eminente em escorraçar demonios.

Janeiro de 86.



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