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NOSSO SENHOR JESUS CHRISTO

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(A Valentina de Lucena)

Entardecia. Como o brilho do sol desaparecera, uma illuminação egual ameigava a paisagem. Os ultimos soutos de castanheiros transmontanos, pareciam nodoas de relva nas encostas dos montes. A escuridade cahia lentamente sobre os povoados, como um tenue orvalho. A physionomia das terras, em especial dos arvoredos, principiava a ser minhota. Havia mais d’uma hora que a carruagem rodava por uma estrada em declive. Disse-me o cocheiro, que algumas casas e uma egreja agglomeradas n’um valle, na margem direita do Tamega, formavam a povoação de Ribeira de Pena. Montanhas severas e apocalypticas emmolduravam este bocadinho de campo, no qual eu principiava a reconhecer a paisagem querida dos meus primeiros annos.

Vinha só e sentia-me triste sem motivo. O continuado e monotono barulho da carruagem, o assobio dolente e vago do cocheiro, a amortecedora luz do crepusculo infiltrando-se por entre as penedias das encostas, os renques d’arvores do valle tinham-me lançado n’um estado de inconsciente melancolia. Já cançado da jornada, ainda me faltavam muitas horas para chegar ao Arco, logar onde ficaria essa noite. N’um estado intermedio ao somno e á vigilia, as ideias perpassavam-me no cerebro, umas vezes, como nuvens transparentes e macias recordando momentos d’agradavel convivencia; outras vezes, encastelladas e escuras, como são as ideias proprias d’aquelles que vão perdendo o contente palpitar da mocidade!... Oh! minha encantadora e modesta infancia, eu que sou um dos homens que mais tem rido, dize-me tu se já algum dia fui alegre, despreocupadamente alegre!...


Á ponta da noite, no momento em que á luz indecisa, os objectos tem adquirido um esfumado que os avoluma, a carruagem parou á porta d’uma taberna para se desaguarem os cavallos. Os meus nervos foram chamados á realidade com energia. N’um banco de pedra, d’esses toscos e muito usuaes que se encontram juncto das habitações dos camponeses minhotos, estava sentado um velhinho magro, tendo ao lado um saquito enfiado n’um páu e uma pequena almotolia d’azeite presa á cintura por uma correia. O seu rosto sumido era gracioso e terno como o d’uma creança; o sorriso natural, que lhe resaltava da expressão, parecia sahir d’um berço.

Havia o quer que fosse de inconsciente e ethereo, de amoravel e bondoso, no rosto d’esse pobresinho. Ali ninguem o conhecia; mas elle olhava para todos com uma attenção familiar e intima. Um porco atrevido roçava-se-lhe pelas calças, roncava-lhe junto á cara e elle afastava-o com humildade e carinho, dizendo-lhe até palavras de conselho. De certo os seus nervos delicados se encommodavam com aquelle grunhir insolente; mas nem por isso se mostrava menos attencioso, para com o bruto. Fallava a todos tão suave e brandamente que a sua voz semelhava um murmurio e uma consolação á cabeceira d’um enfermo. O seu olhar, d’uma tranquillidade de justo, prolongava-se pelo espaço infinito, quando olhava para o ceu. Os cabellos brancos, enquadrando-lhe o rosto pacifico, eram limpos, finos e fluctuantes como floccos de neve, tinham a transparencia do nimbo dos sanctos. Tocou-me aquella bondade, aquelle ar compadecido e altivo. Pareceu-me um pedinte e olhei-o com attenção antes de o interrogar. Elle sorria-se para mim, com a expressão d’uma pessoa que conversa junto d’uma lareira aldeã, quando a fogueira crepita e o vento uiva victoriosamente sobre o telhado. Sentia-me attrahido para elle e então perguntei-lhe mesmo de dentro da carruagem:

—Vocemecê vem de longe?

Parecera-me que sim. Os pés tinha-os doridos, talvez d’uma longa caminhada. Estava alli a descançar. A dona da taberna disse que o não conhecia e que não era das redondezas. O velhito, como eu lhe fallei, levantou-se sorrindo e approximou-se. E n’um tom de mysterio, para que mais ninguem o ouvisse, segredou-me:

—Se venho de longe? De muito longe. Nem eu mesmo o sei.

Tomei estas palavras como de soffrimento resignado e tive piedade.

Não sabia d’onde vinha, estava alquebrado pelo cansaço e não encarecia as suas dores para me pedir esmola! Conheci-lhe pela expressão dolorida do semblante, quando pôz os pés no chão para me vir fallar, que andára muitas leguas a pé. Talvez para ir ver uma filha enferma! talvez para exprimir outro grande affecto que lhe restasse no coração! Tantas terras percorrera, que até a sua memoria enfraquecida pela edade não retivera os nomes! Ter-se-hia perdido no caminho?...

Insisti com modos de incredulo:

—Essa é boa! Então não sabe d’onde vem?

Olhou-me com ar sereno e firme como de quem tinha dicto uma coisa perfeitamente exacta.

—Não senhor. Ninguem sabe!...—segredou-me com extrema reserva.

E acrescentou sorrindo intelligentemente:

—A mim ninguem me conhece; mas eu conheço todo o mundo. Bem sei quem o senhor é... É o senhor conde. Ah! cuidava que não sabia?...

No rosto do pobresito appareceu uma aurora de triumpho. Para lh’a sustentar perguntei muito baixo:

—Mas como advinhou? Quem foi que lh’o disse?

A enormidade do seu poder reconheci-a no desdem superior com que me olhou. Continha lá dentro infinitos thesouros de sabedoria e perspicacia, á qual não resistiam os insondaveis mysterios do amplo ceu. Quem era eu, um misero conde, diante d’aquella omnipotencia que considerava o globo terraqueo como uma insignificante bolinha de pão?! Na minha tristesa e confusão devia-se reconhecer que o comprehendi; pois que o velhinho, para me consolar acrescentou:

—Eu sei tudo, advinho tudo. Se não digo d’onde venho é porque ando por todo o mundo. Agora ahi vou eu para Hespanha ver se componho aquillo e se acabo com todas essas questões que por lá vejo. Levo aqui—designou o saquito—os papeis e livros necessarios para dar luz e felicidade a todos—sublinhou.


Entristeceu-me ver tamanho valor e convicção reunidos n’um corpo assim fragil. Pedi-lhe com interesse e bons modos que me deixasse examinar os seus thesouros. Accedeu da melhor vontade abrindo primeiro o sacco d’estopa, dentro do qual estava um de panno preto, contendo ainda outro de chita de ramagens. O cocheiro e a dona da taberna aproximaram-se ironicamente para disfrutarem o pobre; mas elle, com um verdadeiro olhar altivo e nobre, afastou-os significando, que taes segredos não eram para espiritos grosseiros e motejadores. A meu pedido os indiscretos retiraram-se e por fim o pobresito mostrou-me envolvidos em farrapos e bem ligados com fitas de cores e cordeis, tres velhos alfarrabios em lingua hespanhola e algumas folhas manuscriptas, d’uma lettra amarella e inintelligivel. Pelo meio havia folhas seccas de castanheiro, algumas flores mirradas e pequeninos ramos d’alecrim. Examinei com escrupulosa attenção estas preciosidades, dando-lhes grande valor! Elle seguiu todos os meus gestos e movimentos faciaes com olho sagaz e aspecto orgulhoso. Quando lhe entreguei as suas preciosas reliquias, encarecendo-lhas elle concluiu:

—Já o senhor conde vê que não é ninguem ao pé de mim.

—Oh! de certo!...

E depois que já tinha guardado os seus livros e papeis inestimaveis perguntei-lhe:

—Mas como vem de muito longe deve trazer fome. Quer que lhe dê alguma coisa?

Sem altivez respondeu:

—É da lei acceitar sempre a esmola. Fome não tenho. Ando por aqui ha um rôr de seculos e nunca senti fome.

E com um sorriso delicioso, como quem faz uma revelação:

—Isso é para vocês que são d’este mundo. Para mim não, que não sou de cá.

—Ah! vocemecê não é de cá?

—Eu sim!...

E sorriu-se da minha estupidez, da minha falta de comprehensão, abrangendo n’um infinito olhar toda a amplitude da terra ao ceu! Habitava essas regiões ideaes e interminaveis do azul, suspenso na serena ondulação do ar, e bafejado da poeira brilhante da luz. A expressão humilde e conformada do seu rosto, a grandesa e compaixão que lhe resaltava da voz fraca e singela, o seu triumphante sorriso de tranquillidade... convenceram-me de que este velhinho resumia em si uma entidade poderosa. Quem julgará elle representar n’este mundo?—perguntei a mim mesmo. Talvez algum sancto milagroso, algum lobis-homem das lendas, algum bruxo afamado entre o povo!... A convicção da sua immaterialidade e do seu immenso poder reconhecia-se que a tinha, pelo tom desdenhoso e superior com que se referia a tudo que o cercava. D’elle só veriam sahir protecção e bondade:—os beneficios que um acto rudimentar do seu querer podia espalhar sobre a terra eram incalculaveis. Um simples designio da sua vontade tornaria os homens eternamente felizes ou desgraçados. Não comia, não se cançava, não havia ponto na terra d’onde tivesse partido ou que devesse occupar...—o mundo, o ceu, os espaços inconcebiveis eram a séde da sua ubiquidade. Nem a dôr, nem o falivel o tocava. A misera fraquesa humana não a sentia, a contingencia do globo merecia-lhe um pensamento compadecido. Sereno e grande vivia no seu reino especial!...

Qual seria pois, o personagem imaginario que este velho magro, de rosto sumido, alegre, bondoso, expressão de soberba e de compadecido, julgava representar? Perguntei-lh’o com a premeditada cautela que elle empregava nas suas palavras:

—Então quem é vocemecê?

—Pois ainda não advinhou?! Olha bem para mim creatura!... Nosso Senhor Jesus Christo!

E fixando-me com tremenda piedade concluiu:

—Ando aqui para os salvar a todos.

Dei-lhe uma esmola. O pobresito retirou-se serenamente, depois de me recommendar:

—Agora caluda, por causa d’esta gente. São hereges, não acreditam.

Janeiro de 85.



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